segunda-feira, 2 de junho de 2014

sobre todas as coisas que eu deveria ter feito, mas não fiz

eu deveria ter lido tudo o que podia enquanto tinha tempo e não sabia
eu deveria ter aproveitado mais dos meus amigos quando eles ainda não tinham smartphones
eu deveria ter amigos que não têm smartphones
eu quase não tenho mais do que me lembrar
eu deveria ter olhado pro céu enquanto eu não achava isso uma grande besteira
porque o céu não muda de posição
e se eu olhar pra ele agora ou daqui a vinte anos, de qualquer forma não vou conseguir decorar a posição de cada estrela.
deveria ter mandado aquele trabalho pro inferno e reprovado de ano
porque eu sempre odiei matemática
e eu poderia dizer ao mundo que odeio matemática
porque o mundo ainda não me obrigava a ser um idiota adestrado
o mundo não. talvez, só a minha mãe.
eu não deveria ter apagado do meu mp3 aquela música melosa que eu só gostava do refrão e nunca parava pra escutar completamente. eu queria escutar de novo, mas não lembro o nome.
eu deveria ter dito mais nãos na minha vida
não para garotas que só chupam a minha alma
não para garotas que chupam tudo, menos a minha alma
mas ainda há coisas que eu posso evitar.
eu posso evitar fazer um pós-doutorado
eu posso evitar acordar daqui a 50 anos sem saber que eu existo
eu posso evitar acordar daqui a 40 anos sem saber o que fazer pra existir
eu posso evitar acordar daqui a 30 anos sem saber por que todo mundo existe, menos eu
eu posso evitar acordar daqui a 10 anos sem saber quem é que realmente existiu na minha vida
eu posso evitar acordar amanhã sem saber quando eu vou existir
acontecer
quando eu vou brotar
e me pôr.
me gerar
me parir.
eu deveria ter assistido mais filmes quando eu não me identificava tanto assim com todos os azares que acontecem com os protagonistas
quando eu não sabia que me identificava mais nas falas dos vilões
eu deveria ter comprado pelo menos um pássaro numa petshop e aberto a gaiola na frente do vendedor
porque naquele tempo eu não sabia que estava ajudando no tráfico de animais
eu contribuiria com a liberdade daquele único pássaro que morreria amassado nas patas de um gato dias depois
passarinhos mortos são as coisas mais tristes que podem aparecer na vida de alguém.
é tão triste que podia ser um elogio. você é tão poético quanto um passarinho morto. você é tão bonito quanto um passarinho morto. você é tão passarinho quanto um morto.
eu poderia ter comido mais churros e me olhado menos no espelho
poderia ter ficado esperando quando você me disse pra ir embora
eu poderia ter calado a boca e guardado mais segredos
desabafado menos. 
continuaria sofrendo só pra mim, entende? como os budistas
o sofrimento individual
o egoísmo edificante
dos budistas, ateus, protestantes e umbandistas. o sofrimento de si.
poderia entender que o amor é uma coisa bizarra
que eu nem vou falar muito aqui
porque amar é uma coisa que eu deveria ter feito, sim
mas eu fiz demais
e amor
eu fiz de menos.
poderia não ter rido de alguém que estivesse pior do que eu, porque nunca se sabe o dia de amanhã
eu, por exemplo. não sabia. infelizmente, eu não sabia.
se soubesse, não mudaria nada. mas como eu não sei, sempre tem uma coisinha ou outra que eu gostaria de mudar.
eu deveria ter amado o cobrador de ônibus que me deseja bom dia
eu deveria também ter amado as pessoas que seguram as minhas coisas quando não tem mais lugar pra mim
e dizer: ei, cara, eu tava me sentindo sozinho, mas você me basta. obrigado por segurar o meu peso.
porque isso realmente basta pra curar a solidão de alguém
eu deveria ter me declarado mais, mesmo com o risco de levar um chute
ido pra mais shows escondido, me ferrado mais
ter pedido menos desculpas. eu odeio pedir desculpas. abaixar a cabeça não é comigo e nunca foi.
desculpo porcaria nenhuma
porque a culpa é dessa legião de camisinhas estouradas que me rodeia
pessoas indesejadas
sonhos indesejados
traumas indesejados
e freud enlouqueceria agora.
eu deveria ter tido um desejo de criar uma escola nova onde ninguém fosse obrigado a fazer provas de literatura. (e uma faculdade onde ninguém precisaria falar em público)
porque eram um saco
mas eu só tinha o desejo de tirar notas boas
sem saber exatamente o motivo, mas de tirar notas boas e impressionar as pessoas que pagavam a mensalidade do melhor colégio da cidade
onde eu fui suspenso por beijar na boca no recreio.
sem entender uma vírgula de literatura. e sem entender porque o poema no drummond não poderia significar aquilo que eu sentia que significava. mas não tinha essa opção na prova. e eu nunca me importei, quando eu deveria ter me importado. 
eu passei no vestibular e não sei dizer eu te amo sem me importar com a resposta
eu deveria ter falado mais ao celular quando eu não sabia que falar ao celular seria uma das coisas mais raras do mundo
e não é nenhum vício em whatsapp
é porque eu não tenho pra quem ligar mesmo.
aquele alguém que eu gostava tanto, mas tanto, tanto mesmo, e eu briguei e não lembro o motivo
é no colo desse alguém que eu deveria ter deitado e chorado mais vezes
assim, mesmo sem ter pra que chorar
chorar como forma de dizer adeus. chora, que dói menos.
silêncio como forma de eternizar uma saudade
uma futura saudade
eu deveria ter um dívida enorme com aquelas pessoas que eu magoei por causa de orgulho
eu deveria, mas não devo.
eu deveria ter ido menos vezes ao zoológico
porque aquilo é desumano
ou melhor, é humano demais.
todas aquelas vidas encarceradas
diariamente assistidas
mantidas através de alimentos e exibição gratuita
deus deveria ter transformado a terra numa coisa mais original do que o inferno.
sobre as coisas que eu não deveria ter feito, mas fiz: 
sofrer
escrever
crer
ver
e só.