sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Boa noite.

A cidade tá um forno nos últimos meses. E o pior é que a única coisa que o ar-condicionado faz é molhar as minhas paredes. Eu não arrumei coragem ainda nem pra tomar um banho. Até entrei no banheiro. Olhei no espelho, vi as olheiras enormes escondidas atrás de um óculos velho e desisti, só molhei mesmo o rosto e pronto. Eu poderia ao menos me dar ao trabalho de saber que dia da semana é hoje, mas não. Consequência do recesso… Desliguei da tomada tudo aquilo que fosse além das necessidades biológicas. E eu acho que vou sobreviver sem olhar pro calendário. Eu ainda me pergunto qual é o critério que os cientistas usam pra saber se um dia terminou ou não, porque pra mim parece sempre tudo a mesma coisa. As horas são superficiais demais. Inclusive, imagino o relógio como um escultor que, aos poucos, vai esculpindo no meu corpo as marcas dele. O tic-tac que compõe as minhas rugas chega a ser insuportável. O apartamento parece ainda menor quando sou obrigado a reparar nele. Se não fosse pelo dinheiro, eu já teria largado a porcaria do meu trabalho e me mudado pra uma cidade menor, onde o concreto não me isolasse de uma maneira tão perfeita que faz até com que eu pareça parte dele. Às vezes, sinto os pássaros se suicidando na minha cara e me sinto o próprio arranha-céu que, inclusive, é meu vizinho. Mas eu não posso largar nada agora. Estou naquela idade entre nascer e morrer que o futuro dá medo. Ainda lembro de quando decidi morar sozinho… Geladeira, fogão, cama, mesa e algo que se parecesse com a decoração de um jovem-adulto-trabalhador-moderno-independente, mas a primeira coisa que eu comprei foi a televisão. A necessidade de escutar outras vozes, sabe? De ver o mundo. E ela continua ali ligada, sem ter ninguém pra ouvir. Eu poderia criar mil e uma metáforas com o fato de ninguém se importar com nada do que “a televisão diz”, mas vocês já sabem. A prioridade agora é só não enlouquecer de silêncio mesmo. Às vezes, funciona. A pobre da jornalista que trabalha no Jornal Nacional é a melhor psicóloga que existe. E nem é reconhecida por isso. E eu nem mesmo sei como ela se chama, porque faz bem uns três meses que eu não leio as letras miúdas que aparecem embaixo na tela. Mas escutar a voz dela é a melhor parte do meu dia. Certa vez, comentei com uma pessoa que eu não lembro mais quem é sobre o fato me sentir sozinho. Solidão assusta mais que o câncer, pode ter certeza disso. As pessoas se sentem culpadas por algo que foge da responsabilidade delas. Culpadas por existirem e não serem suficientemente grandes e importantes para existirem, de fato, na vida de todo mundo. Culpadas pelo papo delas não ser tão legal assim quanto elas pensam, culpadas por estarem dormindo nas madrugadas em que bêbados e prostitutas choram suas dores, culpadas por terem medo de bêbados e nojo de prostitutas, e culpadas por eu não ser nem um bêbado e muito menos uma prostituta, e mesmo assim precisar gastar saliva ao invés de lágrimas pra pedir socorro. Ele olhou bem no fundo dos meus olhos e eu juro que se ele pudesse e se fosse um procedimento racional, teria ligado pra polícia. Primeiro, imagino que ele deva ter sentido raiva, ou uma espécie de indignação profunda por eu ter tocado nesse assunto. Depois, provavelmente, pena. O último estágio e talvez o que eu mais goste é a empatia. Aí ele me recomendou que eu comprasse um cachorro. E contou também a história de uma amiga dele que se sentia assim, “exatamente como eu”, e que melhorou bastante após fazer terapia e participar de um grupo de oração. Eu disse “obrigado, mas eu vou ficar bem” e fui embora. Isso deve ter acontecido há uns dois meses, mais ou menos. Engraçado é que um dia desses, quando meu carro foi pra revisão e eu estava me sentindo a pior das pessoas por ter que voltar de ônibus pra casa (não pelo fato de usar o transporte público, mas sim pelo fato do cobrador não ter me dado bom dia e eu ter sentido falta disso, falta de inclusive ignorar o bom dia dele), vi um cachorro pequeno, preto e branco, quase sendo atropelado. Claramente, não era um cachorro de rua. Assobiei, bati palmas, chamei de todas as maneiras, mas ele não deu a mínima. Quando ele estava quase vindo, um carro passou de raspão e ele se assustou, correu, e ficou esperando no portão do vizinho da frente, como se soubesse que ali estaria seguro. Fui até lá e segurei ele no colo. No mesmo instante, a senhora abriu o portão e quase agarrou o meu pescoço de tanta felicidade. Ela disse que mal podia acreditar que a Princesa tinha voltado pra casa. Me agradeceu, disse que eu era uma boa pessoa e disse pra Princesa nunca mais aprontar uma dessas com ela de novo. Eu sei muita pouca coisa dessa mulher, mas sei que é casada e mora com os três filhos. Um dos filhos dela é psicótico e acabou fugindo de casa, mas voltou recentemente. Olhei pra cadela encolhida nos braços dela, lembrei do que o cara do escritório falou e senti vontade de dizer que “sei exatamente como ela se sente”. Uma das grandes queixas de quem mora numa grande metrópole é não conhecer as pessoas que estão ao redor. Mas o mais assustador é que a gente conhece. A gente conhece quem a gente não sabe nem o nome, e a gente conhece quem a gente não sabe nem que existe. Isso é mais assustador que câncer. Eu só acho que todo mundo deveria ser obrigado por lei a ter um cachorro. Ou uma televisão.