terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Se ontem amei alguém na vida, hoje tirei do túmulo uma espécie de amor.
Se ontem amei alguém com cabelos e cheiros, unhas e sexo, lábios e beijos, olhos e sonhos, hoje descobri que o amor é feio e fede como um cadáver.
Não há ainda nesse mundo necrofilia que faça o que amei voltar a ser o que amo.
E por mais que eu chore, por mais eu peça, por mais que eu lamente por alguma coisa parecida com saudade, por mais que eu saiba que amei, sim, alguém na vida, eu jamais, de maneira alguma, diria que ainda amo alguma coisa na vida.
O amor sugere que eu ame
suas vísceras,
seus exames de fezes,
suas menstruações,
seu café açucarado,
suas doenças,
suas crises,
seus ossos,
seus fracassos,
seus miolos estourados,
seus bebês que jamais nasceram e apodrecem no seu útero,
seus membros engordurados,
suas dores de cabeça,
seu passado,
sua morte.
O amor sugere que eu ame tudo isso sozinho.
Fica em mim a vontade de invadir o cemitério, roubar o seu corpo e colocá-lo pra dormir no meu colo, enquanto seus olhos que já foram poesia reconquistam a vida através dos vermes que saem deles.
Hoje eu não amo, mas amei, sei que amei.
Mas se o amor é isso, a vida não é, a vida é crime, é pecado e, mais do que tudo, é sanidade.
O amor não espera nem Deus e nem justiça, e muito menos eu.
Se ontem amei alguém na vida,
hoje eu lavo as minhas mãos com sabonete antisséptico e álcool em gel.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

É, na verdade, um medo inexplicável do futuro. Um medo, inclusive, irracional, de me encontrar daqui a cinquenta anos preocupado com a bolsa de valores, com as contas, com a vida em si, pura e simples, da forma mais difícil de se engolir assim como um bom litro de vodca, preocupado com o ato de me manter sobrevivente num mundo concreto e de concreto. Nos meus tempos de choro liberto, eu acreditava que ser adulto era não mais ter tempo pra sofrer. Agora, cultivando não tantas flores quanto olheiras e adquirindo aos poucos um vício por páginas de humor barato e novelas, eu vejo que o medo da solidão é o pior sofrimento que alguém pode amadurecer ao longo dos anos. As velas no bolo avisaram que a natureza quase indestrutível do homem é o fato, muito mais do que o ato, de se fazer constante em dor. Crescer é resolver as noites de insônia com um remédio pra dormir, ter a carência apagada com um sopro de trabalho, ir ao psiquiatra ou psicólogo falar mal dos seus amigos, colocar o presente de dia dos namorados nas contas do fim do mês. Crescer é tapar os buracos de uma estrada longa, cujo destino eu desconheço, mas sei que não me levará a lugar nenhum e que, provavelmente, eu já devo ter passado pelo fim sem perceber, porque tudo se resume à minha falta de tempo em perceber as coisas. Mas os buracos continuam lá, mesmo tapados. O meu medo é acordar daqui a poucos anos e não lembrar mais que estão tapados. O que é tão bonito e tão assustador em amadurecer não é começar a sofrer por coisas ditas reais e aceitáveis, e sim entender o amor (ou a falta dele) como uma coisa irreal e inaceitável e, mesmo assim, sofrer por ele. Me imaginar daqui a vinte e cinco anos sentado numa praça de alimentação sozinho, aproveitando o horário de almoço, enquanto deixo de existir lentamente, é quase um pesadelo. Hoje, sentar numa praça de alimentação sozinho, aproveitando o horário de almoço, enquanto deixo de existir lentamente, é quase um costume. Hoje, coincidentemente, já não sei mais pra que chorar. Daqui a vinte e cinco anos, vou sentar em frente à televisão e chorar por aquilo que não sei chorar agora. Vou sofrer escondido no meu apartamento de dois quartos, um banheiro e uma cozinha mal arrumada, vou sofrer escondido quando dormir do outro lado da minha cama de casal só pra deixá-lo quente também e vou sofrer escondido quando olhar os porta-retratos em cima da cômoda e não reconhecer o rosto de ninguém além do meu. Vou esquecer que meus buracos estão tapados cada vez que um colega de trabalho estapear as minhas costas e dizer que estou um pouco abatido, mas que amanhã é outro dia. O amanhã ainda existe e amanhã é sempre um atraso.

sábado, 3 de janeiro de 2015

uma vez, alguém me perguntou se eu não cansava de ser sozinho. é espantoso como as pessoas te esbofeteiam simplesmente pelo fato de se importarem com algo mais exposto que a sua superficialidade atraente. expliquei ao mundo que eu gostava de ser o que eu sou. inclusive, expliquei milhares de vezes tentando me convencer. parei pra pensar no que a expressão "gostar de ser o que é" significava, além, claro, do clichê óbvio e açucarado, ideal pra quando alguma coisa implícito no seu sorriso começa a desmoronar. gostar de ser o que é, pra mim, é se auto satisfazer, numa espécie de masturbação sentimental infinita. a ideia não é muito agradável, claro, mas os hormônios da solidão deixam claro que eu me satisfaço com o mínimo de coisa que não seja propriamente minha. é, pior, além de masturbar os seus sentimentos, você ainda dá uma de cafetão do cérebro alheio. me satisfaço escutando música de terceiros, lendo livros de terceiro, apreciando arte de terceiros, vendo filmes de terceiro, comendo comidas preparadas por terceiros, olhando as estrelas de terceiros, quartos e quintos amantes, amando terceiros. ser só é me apaixonar o tempo inteiro por tudo o que não me pertence, desde as garotas que pegam o mesmo ônibus que eu até os olhos claros de alguém que passa na rua. ser só é se apaixonar por sardas, pintas, rugas, estrias, fios de cabelo branco que nascem em pessoas ainda jovens, sinais, gestos, boca descascada, suor. qualquer coisa que pode ser de qualquer um. eu gosto de ser sozinho, na maioria das vezes. amar de longe é uma companhia sufocada e solidária. mas a gente sabe que dar prazer a si mesmo nem sempre é o bastante. prazer, aliás, nem sempre é o bastante. curtir a minha companhia ofegante e cardíaca nem sempre é o bastante. uma pequena parcela de mim ainda quer decorar a cara de alguém com memórias, desencontros, angústia, amor e coisa do tipo. é fácil, na teoria. chega um certo estágio da solidão, quando ela, infelizmente, vira autossuficiência, que passamos a perceber que a nossa alma age como uma enorme máquina de lavar. você não sabe mais onde é que começa e onde é que termina. tudo é reciclável e reaproveitável. as feridas cicatrizam tão depressa que não há tempo de saber o que nos feriu e, então, não há como esquecer. as lágrimas funcionam como o ácido do nosso estômago quando as ingerimos. não existe meio termo, é só uma reta sem fim. então, nossa alma começa a ficar escura e passar por uma espécie de blackout. ser só é admitir que tudo o que você procura nos outros está exatamente em você, de forma tão explícita que chega quase a ser pornográfico. o que dá medo, porém, é voltar os olhos pra si e descobrir o medo profundo e sombrio que você sente de morrer sozinho, a angústia de nunca se encaixar, o orgulho, que você alimentou durante todos esses anos olhando as dores dos outros, pensando que jamais se repetiria da mesma maneira contigo, justamente porque você sabe que a única agressão é a que você se provoca, pequeno e acoado, medroso, faminto... o medo de olhar pra si e descobrir que não gostamos tanto assim de ser o que somos. amar a solidão é odiar profundamente o fato de sermos sempre sozinhos.