segunda-feira, 30 de julho de 2012

Refúgio - Parte III

      Minhas mãos estão trêmulas. Vejam, vejam! Estão trêmulas, sim. Hoje acordei um tanto indisposto e a enfermeira enfiou um doutor com três palmos de bigode dentro do meu quarto, apesar das insistências em uma leve queda de pressão que não precisaria ser tão desesperadamente remediada. Achei que aquele mequetrefe não fosse embora nunca. Devo dizer-lhe, amigo, que é extremamente desconfortável para um homem com suas próprias rugas como eu abrigar dentro do quarto um senhor de meia idade com mãos atrevidas demais para o gosto de qualquer ser humano. Mas é isso. Envelheça e acostume-se com a ausência de uma frase tão simples: "Eu não quero ser incomodado, idiotas". Ao menos posso escrever em paz agora. As mãos já aquietaram-se um pouco. Onde estávamos? Oh, sim. No lago.
      Eleonora... Ah, Eleonora. Caso Deus oferecesse a ti um dia de minha vida, veria como tuas feições serenas mudaram para sempre a rotina do pobre menino Emílio. Já não comia, não bebia, e as noites de sono tranquila eram uma raridade. Papai improvisou um suador para que eu pudesse livrar-me da constipação que nada mais era do que uma tonta febre de amor. Gonçalves ainda visitou-em três dias para entregar a lição, mas desistiu ao ver que os cadernos continuavam empilhados na mesa da mesma maneira em que ele deixava.
      - Ah, Emílio! Não vai à escola hoje de novo?
      - Olhe bem para mim e veja se estou em condições de ir à escola, Gonçalves.
      - Caso continue assim, teu pai te levará ao médico. E se for alguma praga d'água? Já é bem sabido que você não é mais resistente que uma donzela constipada. Saberá que andou matando aula novamente para nadar no lago. Estarei perdido! Melhore, Emílio, ande. Faça um esforço e vá comigo amanhã.
      - Ora, deixe de molhar as calças, não é nada grave. Trouxe os livros que pedi?
      - Trouxe. Custaram-me três pontos na biblioteca da escola, já não posso pegar mais nenhum livro até vossa majestade resolver devolver estes aqui. Ainda tive que passar vergonha na frente das coordenadoras. Só você, Emílio. Só você! Desde quando se interessa por poesia?
      - Tu que deverias, ler, bobalhão! É arte...
      - E esse jeito de falar esquisito? Até parece aquela moça espevitada que vimos outro dia... Aquela pequetita.
      Nesse instante, meu pai escancarou a porta, com a brutalidade dos velhos roceiros e disse:
      - Emílio, trouxe a enfermeira nova que veio da cidade, Srta. Laninha. Está passando uns dias por aqui e ofereceu-se para ajudar, já que o posto de saúde que eu te levaria amanhã fica a alguns quilômetros da fazenda. Seja um bom menino, sim? Gonçalves, venha me ajudar a pegar travesseiros novos, por favor.
      Revirei os olhos. Não era do feitio de papai pedir por favor e nem falar com voz tão afável. E ele disse mesmo enfermeira? Oh, eu já sentia a dor fina da injeção no meu traseiro. Enfiei a cara nos lençóis e apertei bem os olhos, mas não chorei. Eu já era homem feito!
      Não demorou muito e Gonçalves apareceu pulando como um canguru, quase afogando-se nos travesseiros que trazia e topando no primeiro par de chinelas que encontrou pelo chão.
      - Endoidou, Gonçalves?
      - É ela, Emílio! É ela! Feito fantasma.
      Oh sim, Gonçalves, era ela. A enfermeira trazia consigo uma maleta de instrumentos médicos e uma pequena ruiva escondida atrás das saias, cutucando o adesivo que descolava do potinho com água e sabão que carregava na mão.
      - Com licença, menino Emílio. Vamos começar os exames? - e largou a maleta em cima da cama, fazendo gesto para que Eleonora sentasse na ponta e ficasse quieta.
      - Cla... Cla...
      - Ah, não se esforce tanto.
      Eleonora parecia não lembrar de mim. Mostrou-se indiferente o tempo inteiro, soprando as bolhinhas de sabão que decoravam meu quarto e vez ou outra encostavam em mim, causando-me arrepios que tenho certeza que eram mais causados pela presença da minha amada dentro do quarto.
      O pai de Eleonora falecera meses antes, e a mãe teve que sustentar ela e o irmão mais novo, que morrera de pneumonia um pouco mais tarde. Vendo-se completamente endividada e com uma filha para criar, resolveu passar um tempo no campo já que trabalho naquele lugar não faltava. Era raro ver um roceiro que nunca tivesse sofrido acidentes de trabalho, ou uma grávida sem problemas na gestação. Fora as infestações que nos tempos de seca nos assolavam. Trabalhadores ardiam em febre, e o posto de saúde mais próximo ficava inviavelmente longe.
      - Vamos lá, diga "a". - Disse Laninha, enfiando-me um palito com gosto amargo na boca.
      Gonçalves manteve-se quieto, pálido, encostado no canto da parede e roendo as unhas. Não entendia o porquê de tanto nervosismo. Quem deveria ficar uma pilha era eu. Além do estetoscópio frio no peito, senti também uma fisgada de ciúmes. Gonçalves olhava demais para Eleonora e talvez ele compartilhasse do mesmo sentimento que eu. Por Deus, eu mal havia saído das fraldas e já queria estrear o punho por causa de uma mulher que ainda brincava de boneca. Passado o breve momento de cegueira, Gonçalves parecia assustado demais para a surpresa de um simples apaixonado. Estava era morrendo de medo que Eleonora o dedurasse. Ri comigo mesmo.
      - Não se mexa, por favor, benzinho.
      Benzinho. Apenas a minha mãe chamava-se assim. Ainda sentia falta dela, preferia vê-la como morta do que como mulher adúltera. Abandonou papai quando as pontas apertaram. Mamãe sempre foi uma mulher cara, um peça de leilão. Naquele tempo ainda tinha esperanças que a louca voltasse para casa, com malas e cuias, ajoelhando-se em sinal de arrependimento e dissesse que me amava. Mas ela nunca voltou.
      Eleonora parecia não se importar com minhas olhadas. As bolhinhas foram ficando mais fracas e estouravam fácil, pouco depois de largarem o arco. Ela era obrigada a olhar para mim, caso não quisesse morrer de tédio enquanto a mãe não terminava o exame enfadonho. Ajeitou os cabelos para trás da orelha e deu uma apertada no laço de fita que os amarrava, deixando apenas alguns fios cor de bronze para que eu pudesse vê-los brilhando por conta do Sol que invadia as persianas da janela caindo aos pedaços. Lançou um sorriso brando. Sorri de volta, mesmo com um termômetro incomodando-me debaixo do braço. Ela revirou os olhos num sinal de protesto e a mãe deu-lhe um delicado pisão no pé, alertando-lhe que fosse mais educada. Sorri mais largo ainda.
      Papai finalmente entrou no quarto e quebrou aquele clima de romance muito desajustado. Srta. Laninha disse que eu estava ótimo e aquilo não passava de fadiga passageira. Receitou-me uns remédios caseiros e muito repouso. Ela podia-me receitar também uma dose diária de Eleonora. Tenho certeza que ficaria curado muito mais rápido, se é que a primeira paixão pode ser considerada uma enfermidade.
      - E se ele não melhorar, moça? Posso chamá-la aqui novamente?
      - Estou indo embora amanhã de manhã, senhor.
      Levantei-me da cama como uma lebre em fuga, derramando o copo d'água quente que estava perto do abajur e recolhendo todos os quatro pares de olhos assustados para mim. Espere um momento. Ela disse mesmo... "Indo embora amanhã"?

Vermelho.

      Três horas da tarde e ainda vejo a madrugada. O grunhido da chaleira e o arroxeado dos meus olhos grudados gritam que eu deveria ter evitado os dois últimos copos de martini. A porta entreaberta é sinal de que meu dinheiro foi-se. Margot sempre avisa às iniciantes que não devem beber em demasia antes de sair com um cliente. Homens não gostam de mulher embrigadas pelo álcool pago com o próprio suor. É deselegante, imoral e arriscado. Agarramos a ressaca e perdemos o lucro.
      Uma mulher com trinta e cinco anos já não pode ser considerada iniciante em nenhum aspecto. O único início de minha vida eu afogo todas as madrugadas em taças de champanhe e cinzas de cigarro. Margot tanto me avisou… Alguém como eu não deve acreditar em pontos finais.
      Há quatro anos, eu o conheci. Sobrancelhas grossas, olheiras profundas, boca ressecada com dois cantos imóveis. Vestia-se sempre com uma jaqueta de couro marrom e a camisa azul-petróleo vivia lá com seus dois espaços desabotoados. Extremamente másculo, decidido e coloquial. E nada me chamou atenção, fora sua carteira surrada com meus cinquentas reais. Decerto, um cretino, bem como todos os homens que procuravam meus beijos.
      Chamou-me de Amélia e pagou-me um conhaque. Naquelas redondezas os homens gritavam e sussurravam “Louise”. Um nome ordinário e curto assim como eu esperava que fosse a minha vida. Recusei-me a usar o nome de batismo desde o primeiro cliente. Eu não suportaria vê-lo sendo pronunciado por bocas bêbadas e mal cheirosas. Mas aquele patife chamou-me de Amélia, não se sabe o porquê. Eu, Amélia. Ele, mistério.
      O conhaque não descia tão bem quanto a vontade de esganá-lo. Eu odiava seus olhos pelo simples fato de pousarem em mim, eu repugnava a palha rangendo entre seus dentes, eu sentia meus ossos estraçalhando-se por pensar que em pouco menos de uma hora o meu corpo seria tocado pro aquelas mãos asquerosas. Quem era ele, eu nunca soube. O ódio veio e nada se explicou.
      Não me entenda mal. Eu, Louise, odiava todos os homens. Expunha os caninos e os pascácios ainda pagavam-me por mentir-lhes um falso desejo. Eu, Louise. Amélia morrera numa cama de motel. E eu odiava-lhe, talvez, por ter feito Amélia ressuscitar e enojar o que eu fizera com sua alma. Envergonhava-me, contorcia-me, repugnava-me. Batom vermelho, sombra de cinzeiro e decote vistoso. Uma fogosa vagabunda.
      Eu arrancava forças do inferno para olhar o homem que levou toda o meu mínimo de moral para o esgoto. Mas o que foi pago deveria ser cumprido. Deitei-me com ele. Pela primeira vez senti vergonha em deixar uma barba malfeita tocar meu corpo despido. E o que era o meu início, aconteceu. Eu, Amélia, o pertencia. Louise corria atrás de outro par de calças em um bar trivial. Mas eu, não. Eu era dele, ele era meu. Jamais possui nada que não fosse bebida, batom, jóias falsificadas e tristeza. Jamais quis me possuir. Deixava esse desgosto para os homens que bancavam os meus gemidos de dor camuflados de prazer.
      Foi o meu primeiro e único começo. Aquele corsário contemporâneo que a pouco fizera-me revirar os estômagos, fazia-me naquele instante repentino… Feliz. Eu, uma prostituta de esquina. Eu, Amélia.
      Jogou as notas amareladas em cima da cama e partiu, assim como partira o meu coração, que pela primeira vez senti que vivia. Eu, Amélia, apaixonei-me pela primeira vez.
      E nunca voltei a ser Louise novamente. Já não era eu que dependia da minha beleza, já não era eu que respirava nicotina. Os que vieram depois, viraram o próprio depois. Os que vieram depois, pegaram o trem atrasado. O vagão da luxúria estava vazio. Eu iniciara a viagem de estação em estação, atrás daquele que me foi como carvão, que fez renascer Amélia, a doce Amélia que acreditava em inícios.
      Mais do que um início, eu ansiava por um final. Eu ansiava por um abraço no fim do dia ou um beijo de amor. Eu, Amélia, estava de luto por Louise. Eu, com todas as faces e cheiros, amei de verdade.
E é para matar este maldito começo que embriago-me. É para curar a saudade do gosto daquele conhaque barato, é para baratear a dor do meu vestidor rasgado no canto daquele quarto úmido. O batom forte é para desenhar uma nova boca, uma boca que nunca tocou os lábios de quem se ama, a fumaça do cigarro é para que a neblina impeça meus olhos de voltarem a encontrar os dele.
      Eu não sei se uma prostituta em decadência tem o direito de acreditar em Deus. Mas se houver um céu, meu bem… O céu é vermelho. Exatamente da cor do sangue que corre por entre os pecadores. Se houver um inferno, ele tem o teu cheiro. E Louise me receberá de pernas abertas. Não permita. Arranque o copo da minha mão e leve-me para o purgatório do teu amor. Eu, Amélia, ainda não gastei as tuas notas amareladas, esperando que exista troco. Eu, Amélia… Ainda te espero, para iniciarmos com nomes e beijos. Que o céu seja uma mesa de bar, que o céu seja vermelho.

Não acabou.

      A cama está fria, o cabelo desordenado e eu esqueci de escovar os dentes esta noite. Eu sinto sua falta. Os olhos que herdei da tua poesia já não me são suficientes. Sinto falta da forma como as estrelas cantavam para mim, sinto falta da companhia debaixo da cama e ainda sinto o gosto de chocolate derretido na boca ferida. Tristes histórias começam com um final feliz.
      O meu maior medo é não ter medo. Não ter medo do escuro, não ter medo da vida e não ter medo do teu anjo negro e oculto que cantarolava a tua última cena de adeus em meus piores pesadelos vividos. Pedi para que fosse forte, mas a fraqueza da tua desistência ainda habita em mim. Culpei-te por um crime que eu sozinho cometi, ainda que sozinho eu nunca me vi. Quisera eu quebrar todos os relógios que tenho em casa para não mais ouvir o barulho da perda dos anos. Esqueci a porta da gaiola aberta mais uma maldita vez. E por um segundo, achei que o canário partiria. Por um segundo, esqueci de chorar.
      Abrigo muitos de mim. Abrigo o menino assustado, o velho enfraquecido e o cinza desbotado. E suicidam-me, trucidam-me sem dó e com muita piedade. Eu já não sei se me é digno possuir a cor dos teus olhos de castanheiras, tampouco o sorriso ácido. Quis sonhar, mas esqueci de abrir os olhos. As lanternas falharam, a luz nunca existiu. Tu não voltaste, ou eu perdera a tua chegada.
      Sentiria orgulho de mim caso eu dissesse que virei poeta? Mas não, eu não virei. Eu virei assassino de dois de mim. O branco dos impuros me atingiu, virei cordeiro em pele de lobo. Pode parecer que nada mais faz sentido, mas para mim o sentido é que não aparece. Sentiria orgulho de mim caso eu dissesse que nunca te esqueci? Pois sim, eu te esqueci. Eu te esqueci de raiva ao lembrar dos teus olhos fechando-se para sempre, eu te esqueci na dor de ser sozinho e multidão.
      Apiedei-me de mim mesmo. Diante do meu próprio egoísmo, esqueci que não venci sozinho. Esqueci do sofrimento e da perda que me criaram longe dos dentes sujos de açúcar. E hoje, sou filho da terra infértil. Sou filho do teu túmulo e não mais das tuas memórias. Há uma certa libertação em abandonar-te. Liberto do peso das mentiras em dizer que nunca te amei como deveria. Por orgulho e desespero, eu larguei a sua mão. Pela primeira vez em longos anos, eu não olhei para os dois lados antes de atravessar a solidão.
      Olhe para trás, se ainda puderes mover-te. Olhe para trás e veja uma criança pálida no colo de uma mulher com cabelos longos e saias floridas. Incline mais a cabeça e veja o quanto o menino implora para que não seja ela o culpado da tua desgraça. Graças à três beijos na testa antes de dormir, no meio da tempestade de jardins descascados, eu digo que fui amado. Olhe para trás. Você os reconhece?
      Não acabou. Eu insisto, não acabou. Peço para que diga às estrelas que cantem mais uma vez. Talvez as nuvens dancem nostalgicamente e as minhas palavras ganhem vida. Sinto falta dos olhos que pintaram os meus, eu repito. Sinto falta das mãos que desenharam os meus cabelos. A permanência acabou e a tela ficou por cessar. Eu não sou artista, eu só tenho o cinza que me bebe diariamente. Fui fraco para aceitar a morte como destino e quis concluir-me sem a tua ajuda. E é por isso que matei as tuas cores, como assassino poético que sou. Eu te odeio pelo simples fato de você ser verdade, pois a mentira ainda vive. E você… Abandonara-me.
      No último gole de egoísmo e lágrimas, eu te peço perdão. Eu te peço perdão pela cama fria e desarrumada, pelos porta-retratos que quebrei, pelos amores que não te apresentei, pelos olhos que adormeci e pelo cinza que me tornei. Eu te peço perdão por esquecer a janela aberta na esperança de um sopro de vida qualquer. Eu te peço perdão por não conseguir te amar. Eu não acredito em monstros. Eu não acredito em céu. E é por isso que eu te guardo eternamente no inferno do meu coração.

"S" maiúsculo.

      Três pontos a menos. E ele tirou 5,0 em um tema que todos obtiveram nota máxima. Ele era péssimo em gramática ou estava simplesmente fazendo pilhéria. Por seis meses consecutivos o mesmo erro. E eu fazia questão de colocar a correção em vermelho, para que na próxima meus olhos não doessem com uma falha tão banal para um menino de terceiro ano. Foi então que eu o chamei até a minha mesa.
      - Serafim, por que não leu o que escrevi na redação anterior?
      - Eu li, professora. E li o que escreveu nessa também.
      - E por que não corrigiu?
      - A senhora está errada.
      - Errada? Ora, quanta audácia. Não estou, Serafim. Veja aqui, bem aqui, onde circulei.
      E mostrei-lhe novamente o equívoco, dessa vez apontando com a armação do óculos e testas enrugadas com o descaramento. Serafim havia colocado novamente quase tudo em letras maiúsculas.
      - Está na sua gramática, menino... Se você ousasse desgrudar suas páginas, saberia. Amor, mentira, amizade, raiva, ciúmes... Nada disso é nome de gente.
      - Mas é gente sim, professora.
      - Bobagem. Você conhece ou já tocou o amor? Já conversou com a raiva?
      - Eu já.
      Pobrezinho. Estava doido.
      - Não é possível, meu querido. Sentimento a gente só sente. O próprio nome já diz. só devemos colocar em letra maiúscula aquilo que vier depois de ponto final ou for nome próprio. Já estudamos isso... E veja aqui. Você assinou o próprio nome com letra minúscula. Você não é gente, criatura?
      - Não, não e não! Professor... Amor também é gente, não ofenda-o. Eu que não mereço letra maiúscula, pois nada faço. Sou apenas um segundo de vida, que importo para o mundo? Ser letra grande é merecimento. S grande é de Sabedoria.
      - Não, meu amor... Seu nome é próprio.
      - Que propriedade, professora? Como Serafim existem vários tantos por aí. Amor, Raiva, Amizade, Ciúmes... Só existem eles.
      - Está bem, Serafim. Peça ao "Amor" para que arredonde a sua nota, então.
      - Mas o amor tem mais coisas pra se preocupar do que com a prova da senhora, professora.
      - Então escreva-me outra redação, com quantas linhas quiser e sem parágrafos. Explique-me quem são seus "S"entimentos.
      O menino vibrou. Arrancou a folha do caderno às pressas e pôs-se a escrever. Duas horas depois, lá vinha dois olhinhos verdes com o papel na mão todo rabiscado. E fui ler.
      "Tudo começou quando o Amor, barbudo e sentado na esquina, estendeu a mão mais uma vez para pedir esmola. Era um mendigo feio, que ninguém olhava, mas que estava nas estatísticas de miséria do mundo todo. Ele tinha sim a sua importância, faltava as pessoas pararem de o idealizarem como número. Mas o coitado escolheu a hora errada de manifestar-se. Falou com a Raiva, aquela velha raquítica que deve ter mais de cem anos. A Raiva mando-o trabalhar, sem saber que o Amor já estava fazendo seu papel de mendigo. O Amor, coitado... Só sabe mendigar. As pernas amputadas, os óculos escuros e o cigarro na boca querendo queimar-se por dentro eram prova disso. A Compaixão aproximou-se. Compaixão é a secretária do banqueiro da cidade, Mentira. Compaixão olhou de cara feia para a raiva e deu quatro moedas ao pobre Amor. O banqueiro aproximou-se... Disse à Compaixão que aquele dinheiro lhe dizia respeito, afinal era ele quem pagava seu salário. A Raiva sorriu, mas o Sorriso de verdade só chegaria depois. Era o recém-formado em direito, acompanhado da namorada, a Lágrima. O homem disse que as moedas pertenciam ao mendigo, que sorriu junto com o Sorriso dos desamparados. Mas se é mendigo, não há o que pertencer-lhe, argumentou o banqueiro logo em seguida. A Lágrima fez o sorriso voltar pra casa, alegando que ali não era lugar para ele ficar. Sorriso tinha fama de dominado pela mulher. Foi aí que a Amizade apareceu, com roupa de ginástica e caminhando com o cachorro gordo. Perguntou à Raiva o que estava acontecendo e ela simplesmente disse que o Amor estava roubando-os. Mentira confirmou. Compaixão só sabia chorar. Amor sorria. Nesse instante a Raiva quis bater no mendigo risonho. Foi aí que o policial chegou, o senhor paixão. Paixão só sabia agir quando os ânimos esquentavam-se e a Razão o liberava do expediente. Todos estavam detidos. A Raiva foi logo dizendo que eram todos uns incompetentes. A Compaixão teve pena dos outros prisioneiros. A Vida e a Morte estavam na mesma cela. Morte era acusada de sequestro relâmpago e a Vida era sua cúmplice. Especializadas em suicídio armado, a Vida dava motivos e a Morte concretizava o serviço. O Tempo também estava preso, com fama de querer sempre fugir. A Justiça chegou, sempre atrasada. A Raiva disse: É tudo culpa da Compaixão. A Compaixão foi logo tratando de se defender, dizendo ser escrava da Mentira. Mentira negou tudo e disse que as coisas só pioraram quando a amizade chegou. A Amizade, frágil, desmaiou. E o Amor sorriu. A Justiça deu o caso por encerrado sem antes ouvi-lo. Justiça era meio surda de um ouvido, mas ninguém sabia. Todos foram libertos, mas o Amor ficou. Amor é aquele mendigo que mesmo quando não faz nada, é culpado de tudo. Culpado pelo azedume da Raiva, pela benevolência da Compaixão, pelas armas da Mentira, pela desistência do Sorriso, pela presença da Lágrima, pelo silêncio da Amizade, pelos ímpetos da Paixão e pela burrice da Justiça. Prisão perpétua para o Amor que só queria mendigar."
      Ainda não sei se Serafim tem Razão... Mas saí da escola aquela manhã com a certeza que eu, eu mesma, havia negado fortunas ao Amor durante toda a minha Vida. Nota máxima e não se fala mais nisso. Serafim de um Sorriso... Mas dessa vez, a Lágrima separou-se dele e veio morar em meus olhos. Que um dia eu me torne maiúscula. Ou quem sabe, que um dia eu me torne sentimento.