segunda-feira, 30 de julho de 2012

Vermelho.

      Três horas da tarde e ainda vejo a madrugada. O grunhido da chaleira e o arroxeado dos meus olhos grudados gritam que eu deveria ter evitado os dois últimos copos de martini. A porta entreaberta é sinal de que meu dinheiro foi-se. Margot sempre avisa às iniciantes que não devem beber em demasia antes de sair com um cliente. Homens não gostam de mulher embrigadas pelo álcool pago com o próprio suor. É deselegante, imoral e arriscado. Agarramos a ressaca e perdemos o lucro.
      Uma mulher com trinta e cinco anos já não pode ser considerada iniciante em nenhum aspecto. O único início de minha vida eu afogo todas as madrugadas em taças de champanhe e cinzas de cigarro. Margot tanto me avisou… Alguém como eu não deve acreditar em pontos finais.
      Há quatro anos, eu o conheci. Sobrancelhas grossas, olheiras profundas, boca ressecada com dois cantos imóveis. Vestia-se sempre com uma jaqueta de couro marrom e a camisa azul-petróleo vivia lá com seus dois espaços desabotoados. Extremamente másculo, decidido e coloquial. E nada me chamou atenção, fora sua carteira surrada com meus cinquentas reais. Decerto, um cretino, bem como todos os homens que procuravam meus beijos.
      Chamou-me de Amélia e pagou-me um conhaque. Naquelas redondezas os homens gritavam e sussurravam “Louise”. Um nome ordinário e curto assim como eu esperava que fosse a minha vida. Recusei-me a usar o nome de batismo desde o primeiro cliente. Eu não suportaria vê-lo sendo pronunciado por bocas bêbadas e mal cheirosas. Mas aquele patife chamou-me de Amélia, não se sabe o porquê. Eu, Amélia. Ele, mistério.
      O conhaque não descia tão bem quanto a vontade de esganá-lo. Eu odiava seus olhos pelo simples fato de pousarem em mim, eu repugnava a palha rangendo entre seus dentes, eu sentia meus ossos estraçalhando-se por pensar que em pouco menos de uma hora o meu corpo seria tocado pro aquelas mãos asquerosas. Quem era ele, eu nunca soube. O ódio veio e nada se explicou.
      Não me entenda mal. Eu, Louise, odiava todos os homens. Expunha os caninos e os pascácios ainda pagavam-me por mentir-lhes um falso desejo. Eu, Louise. Amélia morrera numa cama de motel. E eu odiava-lhe, talvez, por ter feito Amélia ressuscitar e enojar o que eu fizera com sua alma. Envergonhava-me, contorcia-me, repugnava-me. Batom vermelho, sombra de cinzeiro e decote vistoso. Uma fogosa vagabunda.
      Eu arrancava forças do inferno para olhar o homem que levou toda o meu mínimo de moral para o esgoto. Mas o que foi pago deveria ser cumprido. Deitei-me com ele. Pela primeira vez senti vergonha em deixar uma barba malfeita tocar meu corpo despido. E o que era o meu início, aconteceu. Eu, Amélia, o pertencia. Louise corria atrás de outro par de calças em um bar trivial. Mas eu, não. Eu era dele, ele era meu. Jamais possui nada que não fosse bebida, batom, jóias falsificadas e tristeza. Jamais quis me possuir. Deixava esse desgosto para os homens que bancavam os meus gemidos de dor camuflados de prazer.
      Foi o meu primeiro e único começo. Aquele corsário contemporâneo que a pouco fizera-me revirar os estômagos, fazia-me naquele instante repentino… Feliz. Eu, uma prostituta de esquina. Eu, Amélia.
      Jogou as notas amareladas em cima da cama e partiu, assim como partira o meu coração, que pela primeira vez senti que vivia. Eu, Amélia, apaixonei-me pela primeira vez.
      E nunca voltei a ser Louise novamente. Já não era eu que dependia da minha beleza, já não era eu que respirava nicotina. Os que vieram depois, viraram o próprio depois. Os que vieram depois, pegaram o trem atrasado. O vagão da luxúria estava vazio. Eu iniciara a viagem de estação em estação, atrás daquele que me foi como carvão, que fez renascer Amélia, a doce Amélia que acreditava em inícios.
      Mais do que um início, eu ansiava por um final. Eu ansiava por um abraço no fim do dia ou um beijo de amor. Eu, Amélia, estava de luto por Louise. Eu, com todas as faces e cheiros, amei de verdade.
E é para matar este maldito começo que embriago-me. É para curar a saudade do gosto daquele conhaque barato, é para baratear a dor do meu vestidor rasgado no canto daquele quarto úmido. O batom forte é para desenhar uma nova boca, uma boca que nunca tocou os lábios de quem se ama, a fumaça do cigarro é para que a neblina impeça meus olhos de voltarem a encontrar os dele.
      Eu não sei se uma prostituta em decadência tem o direito de acreditar em Deus. Mas se houver um céu, meu bem… O céu é vermelho. Exatamente da cor do sangue que corre por entre os pecadores. Se houver um inferno, ele tem o teu cheiro. E Louise me receberá de pernas abertas. Não permita. Arranque o copo da minha mão e leve-me para o purgatório do teu amor. Eu, Amélia, ainda não gastei as tuas notas amareladas, esperando que exista troco. Eu, Amélia… Ainda te espero, para iniciarmos com nomes e beijos. Que o céu seja uma mesa de bar, que o céu seja vermelho.

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