A estante de troféus está vazia, a porta roída pelo descaso jamais ameaçou tremer a maçaneta. Nenhum movimento de espionagem porque ainda sou pequeno demais para janelas e decepções. A estante de troféus está vazia porque todos os meus herois foram devorados pelas traças, tristezas e outros monstros escondidos no fundo da gaveta.
- “Vem! Olha pra mim, vem pra cá. Isso mesmo, vem pra mim. Bom menino… Um passo de cada vez, um pouco mais de força nos pés e você consegue fazer isso sozinho. Pegue a câmera, ele está andando!”. Eu esperava haver um nome no fim do corredor. Eu não precisava de brinquedos ou doces, eu só precisava de você do outro lado. Eu só precisava ver você agachado, com os braços estendidos para mim, sorrindo para contrastar com a barba mal feita. Eu andei em cima de grãos de milho e brasa fervente, mas nunca marquei o teu tapete preferido com minhas minúsculas marcas de sapato. As cicatrizes são pés que correm sem antes terem aprendido a caminhar.
- “Pule, pule! Eu te seguro. Bata os pés com força. Só mais uma vez, vamos. Eu estou aqui, eu estou aqui. Confie em mim, eu nunca vou deixá-lo cair. Confie em mim, confie…” Eu devo admitir que por vezes vi o seu torso mergulhado no lado mais raso da piscina. Eu devo admitir que mirei em olhos imaginários quando meus pés desprenderam-se do chão, que o som das pequenas ondulações faziam da tua voz mais imponente que cachoeiras inteiras. Eu confiei naquilo que poderia ser você. As cicatrizes são pulmões cheios d’água.
- “Não tenha medo, eu estou te segurando. Eu não vou soltá-lo, acredite. Eu nunca vou soltá-lo, pedale mais firme, enxugue o suor das mãos. Não olhe para baixo, nunca olhe para baixo. Olhe para mim, eu estou aqui. Estou aqui com você”. Eu te esperei pela primeira vez. Eu te esperei para que me salvasse dos abismos abaixo do velho pedal enferrujado. Eu te esperei para que falasse alto comigo quando eu quisesse desistir. Eu te esperei para que você me chamasse de campeão, para que marejasse os olhos com a minha risada quase inaudível afastando-se sob duas rodas. Eu despenquei. As cicatrizes são joelhos feridos.
As cicatrizes são sobrancelhas caídas e medo de espelhos por não saber qual outro rosto possui o mesmo reflexo. Eu costurei quatro estrelas no meu próprio peito por sentir a falta da única que brilhava no céu. Eu guardei moedas que já saíram de circulação porque sabia que alguns de você colecionam antiguidades. Eu completei álbuns de figurinhas por ter a certeza que ficaria orgulhoso de mim. O treinador dizia que eu era o melhor atacante do time de futebol, mas o meu técnico nunca estava na arquibancada. Desculpe, eu desisti de tentar ser o seu filho.
Caso ainda queira me ver caminhar, a filmadora ainda não falhou. Se quiseres voltar, a bicicleta ainda está no porão. Se quiseres tentar novamente, ainda tenho boias que cabem no meu braço. Se quiseres assoprar uma das velas comigo, renascemos juntos. Quando você vai querer que eu nasça, aliás? Daqui a um, dois, quarenta anos? Feito. Uma foto é tudo o que eu peço, um nome é tudo o que eu quero, e o seu amor eu mesmo invento.
Eu te quero como uma última peça do quebra-cabeças da minha melancolia de um gênio precoce. Eu te quero como uma última chance ou a última chance para o primeiro adeus. Um olá para você e uma despedida para mim, pois nossas mãos já são do mesmo tamanho, caminhamos no mesmo ritmo e afogamentos só acontecem dentro da minha alma, do nosso esquecimento. Sempre foi tarde mais para mim, pois você já tinha partido quando chamei teus olhos em prantos. Eu esperei por você, eu esperava conseguir amar você. As cicatrizes são gotas de sangue desconhecido correndo em minhas veias. E a saudade é você, pai.
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