terça-feira, 4 de junho de 2013

Urubu-correio.

Quando eu morrer, diga à criança que virei estrela. Diga pra inocência que fui pro céu brincar com Deus, e que ela não saiba jamais que, até o último suspiro que me restou (naquela noite que virá), tive amigos imaginários, muito mais imaginados do que amigos. Enquanto ela chorar doce e profundamente, diga à criança que esse mundo não me cabia, e deixe-a guardar os brinquedos no baú para economizar espaço. Economia é a doença do século, e não a depressão. Quando ela perguntar por mim, diga à criança que fui viajar. Deixe-a que percorra com os olhos lacrimejantes todas as terras, permita que ela construa o paraíso na América Latina, no nordeste da África Negra, no tanque do petróleo, no aquário de carpas do Japão. Deixe que ela olhe para o espaço azul, sendo eu a nuvens mais gorda e com cheiro de chuva, mas não permita nunca que ela interrompa a viagem. Não deixe, em hipótese alguma, que papai noel não me traga de volta no próximo Natal. Enfie aquela carta no correio, endereçada ao Polo Norte, e os sonhos me trarão de volta. Mas não se esqueça de comer todos os biscoitos e beber todo o leite antes que ela acorde.

Quando eu morrer, diga aos velhos que fui feliz. Engome aquelas testas enrugadas e fedidas de quem "carniceia" com os olhos e esqueceu de escovar os cílios prestes a enfartarem de tanta porcaria. Diga aos velhos que fui em paz, para que enterrem o caixão em silêncio, para que consolem os ombros em profunda gratidão, para que não escorra da boca o chorume, para que as unhas compridas do monstro, ao saírem da língua apodrecida, não perfurem os véus de viúva negra onde todo mundo esconde o tédio. Diga aos velhos que fui porque simplesmente tive que ir, e poupe as auto-ajudas e os conselhos melodramáticos. Faça-os senhores de si, donos do conhecimento mortuário do mundo inteiro, faça-os escreverem discursos e inaugurarem o pretinho básico, para que eu não fuja do padrão. Economize também o trabalho do coveiro. Não é fácil segurar o riso em situações solenes. Pelo menos eu nunca consegui me manter hipócrita num enterro desconhecido. Triste vergonha. Questão de falta de falta de falta de falta de falta de falta de educação. Morri tão jovem, merecia tanto respeito, tanta admiração... Ai de mim.

Quando eu morrer, diga ao meu corpo raso que ele já foi dessa pra melhor. Deixe que eu durma, que eu tire folga e que eu me demita, que o meu câncer seja uma mancha no ultrassom e que meu suicídio literário (e tenho que dizer que é literário, caso contrário, eu seria Getúlio Vargas) tenha sido completamente em vão. Diga ao meu corpo que gastei minha bala à toa, mas em dois ou três meses, quem sabe eu estivesse vivo ainda. Não custa nada colocar uma gota de leite na boca de um bebê nigeriano. Diga ao meu corpo gélido, que não há cadáver mais vivo, e diga aos presentes tristes, que não houve vida mais morta, para que eu perca satisfeito o gosto de viver. Escreva na minha lápide que o jogo acabou. E eu venci.

Vamos passar de fase e zerar a vida, porque ainda não sei abandonar o que comecei. E a destruição é um vício que eu ainda não consegui finalizar.

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