1992. Eu tocava tambor e cantava na chamada "nova cena mundial pernambucana".
Era percussionista, ou "percussionista mulher".
2010. Lancei um disco com músicas minhas e, quando vi, virei cantora.
Cantora é um cargo que cai muito bem em uma mulher brasileira. E passei a fazer parte da chamada "nova cena mundial paulista". Zerou tudo. Elixir da juventude.
O Brasil é o país das cantoras. Mas é porque a conta só é feita com elas. Dupla sertaneja, veja bem, tem aos milhares. E ainda é de dois em dois...
No pequeno mundo estabelecido da música criticada, analisada e catalogada, as mulheres estão para os homens como o Nordeste está para o Brasil e o Brasil está para Europa e EUA. O Brasil desse pequeno mundo costuma ficar ali, mais ou menos entre RJ e SP.
Bem comum é ouvir que "o Nordeste traz muita coisa boa para o Brasil". Mistérios geográficos nossos de cada dia. Longe de Onde.
Pra me poupar saliva de caneta, falanges para teclar, você pode ir na loja de discos mais próxima, caso ela não tenha fechado, e perceber que não raro, as mulheres brasileiras, caso cantem, estarão empilhadas em uma única categoria: "cantoras brasileiras".
Os moços estarão lá, devidamente fichados, de acordo com o que diz o mercado das prateleiras. Não vou entrar aqui no julgamento do tal mercado, vou só registrar que ele não canta a individualidades das meninas. E mulher? Desse lado aqui. Setor cantora.
No mesmo balaio, você pode encontrar Maria Rita, Deize Tigrona, Angela Maria, Lurdez da Luz, Maria Alcina, Fernanda Abreu, Elba Ramalho, Preta Gil, Paula Fernandes, Teresa Cristina, Tiê, Maria Bethânia, Wanessa, Issar, Claudia Leite...
Os cavalheiros estarão devidamente separados por estilo musical, como deve ser em prateleira. Fábio Jr . não estará do lado de Otto, junto com Kelvis Duran e Luan Santana.
Michel Teló não fará par com Paulinho da Viola, Zezé di Camargo, China e Emicida não serão vizinhos.
E existe a ideia de um certo glamour. Pipocam eternas comparações sem sentido e a vibração picuinha-dos-inferno se estabelece jornais afora. Às vezes, lembra concurso de miss. Botam as mina pra competir, como de costume, como na vida real, que dizem que é assim. Não é assim. Só te socam isso goela abaixo. Foie gras. É só fazer as contas de novo, como no caso das duplas sertanejas.
Enquanto isso, ninguém mandou Roberto Carlos ter cuidado porque Thiaguinho Exalta apareceu.
Já com as senhoritas, perdi as contas de quantas vezes li que era pra Gal Costa e Marisa Monte se ligarem, porque fulana tinha surgido.
Em zilhões de matérias por aí, você também verá o balaio de cantoras. Do lado de cá, topa-se fazer, claro, é preciso divulgar o trabalho. Eu mesma estou em várias, a maioria feita por pessoas bem intencionadas, inteligentes e competentes. Mas a fórmula é repetida. Mulher continua existindo como se minoria fosse. Imagina se fosse! Imagina quando é! E assim seguem as damas. Entupidas e com falta de ar.
Será que algum senhor já ouviu numa entrevista "você faz suas músicas sozinho ou com a ajuda de alguém?". Eu, muitas vezes. E vi Pitty dar um piti quando perguntam a ela algo do tipo.
Vem cá, por que danado se referem a mulheres que cantam como "vozes femininas"?
É fantasma, é? Deviam usar também "vozes masculinas" ou deixar disso de uma vez. Largar desse eterno vexame.
Ah! Gatas, parem, de uma vez por todas, de chamar outra mulher de fulano de saias! Mesmo que seja um fulano bem fodão. Assim a gente não progride.
Elke Maravilha, quando ouviu de um apresentador de TV "você é uma das mulheres que eu mais admiro, disse "eu não sou mulher, eu sou gente", na maior das elegâncias.
Elke disse tudo, e eu não me demorarei mais.
A beleza existe em tudo - tanto no bem como no mal. Mas somente os artistas e os poetas sabem encontrá-la. - Charlie Chaplin
sexta-feira, 11 de janeiro de 2013
quinta-feira, 10 de janeiro de 2013
Sem Título.
Desabafo. Não é assim que chamam? Quando você quer lembrar a si mesmo que está sofrendo? Quando você precisa de espaço em casa e quer remover umas peles mortas? Mas antes... Eu tenho um segredo que quero compartilhar: Eu sou perfeito. Completamente perfeito. Dois braços, duas mãos, dois pés, uma cabeça, cabelos, olhos que enxergam muito bem tirando o charme intelectual da miopia, dentes com uma boa mordida, dois ouvidos viciados em risadas quase inaudíveis, pele lisa e boa forma. Boa comida, boa bebida e um amor um pouco mais caro do que a maioria assume ter. Família bonita, bons estudos e dinheiro. Viu? Mais perfeito do que eu não existe. Mas enfim, eu quem? Quem é essa pessoa perfeita? Eu sou um homem que tem a vida perfeita. Certo. Mas que homem? Céus, não há nada mais ridículo do que terminar cada frase com um ponto de interrogação quando o único que pode responder é você mesmo. Vamos direto ao ponto, então. Ao desabafo, ao grand finale, ao ápice das lamentações daquele homem com a vida perfeita. Porque é isso o que todos querem. Um clímax. Eu darei um clímax, portanto. Os meus braços perfeitos doem. As minhas pernas perfeitas doem. O meu coração com cardiogramas perfeitos dói. Os meus olhos doem. Tudo, absolutamente dói. Todos os meus músculos perfeitos doem. Porque cresceram em uma pele pequena demais. Eu não disse adeus para quase nenhuma casca. Eu adquiri o veneno sem antes completar a muda de pele. E como eu já mencionei, desabafos são peles mortas. Eu não disse adeus para a minha casa sem televisão, para os olhos tristes e molhados de saudades, eu não disse adeus para o pequeno Rudolf, meu pássaro de estimação magricela. Minha coleção de álbuns de figurinhas continua intacta... Quase posso sentir o mesmo orgulho ao revirar as páginas e ver os espaços completamente preenchidos. Eu era fascinado por cores. Talvez eu fosse o menino mais colorido do mundo. Não, do universo! Não, da galáxia! Não, de todo o infinito! Quem sabe de dois infinitos de uma só vez. A felicidade infinita por um álbum de figurinhas completado. Nunca disse adeus para a sensação de poder ao recusar uma brincadeira, ficar em casa e ler um livro. Só por ler. Sem querer entender uma palavra. Mas quando eu topava um jogo de bola, era sempre uma boa festa. Aquele menino esquisito que nunca sai de casa veio jogar um pouco. Nunca disse adeus ao único ódio que sinto falta na vida. Um ódio que fazia os olhos que carinhosamente batizei de olhos da saudade brilharem ainda mais. Eu sinto falta de sentir a dor dos fios inchando-se na minha pele, sinto falta de ver o meu sangue me banhando. Um pedido de desculpas com muito chocolate quente, que tal assim? A raiva passou... E os olhos de saudade brindavam comigo uma infância imperfeita. Mas os ossos cresceram antes de mim... Tudo aquilo era imperfeito demais para caber em mim. O cheiro de remédios, a casa desarrumada, os móveis afastando quando contávamos histórias de piratas e... Baleias. Eu até que gostava das baleias naquela época. Elas pareciam coloridas e cabiam na palma da minha mão. Depois, alguém teve que voar. Mas não era eu. Ainda não. Fechando os olhos eu quase posso sentir o gosto terrível de peixe.. Crianças tristes demais para serem crianças. O impacto do reencontro. Rugas, eu sempre amei as rugas. Rugas também não são imperfeições? Certa vez, ouvi que rugas são as marcas do passado. Acho que envelheci por dentro, então. Se meus dentes eram de leite, mais passado do que a morte não existe. A morte não volta, o adeus não volta, a alma não volta. Acabou. Eu já tinha idade suficiente para ter um passado, onde estavam as minhas rugas? Talvez estivessem dentro de mim, talvez estivessem no rosto deles e eles me devolveriam quando fosse a hora certa. Olhos abaixados por pálpebras que perguntavam aos meus olhos sem respostas para nada: O que vamos fazer com esse menino? O que vamos fazer com esse menino que tem tanto passado? Eu não sei, mas eu era um presente. Não sei se fui um bom presente, mas eu sou o presente mais perfeito de todos. Crescido. Forte. Saudável. Perfeito. Eu não tenho motivos para reclamar. A morbidez dessa felicidade de fantoches me abomina. É pior do que uma mentira, ela é real. Eu queria ter pelo menos o indício de que já fui infeliz. Eu precisava de provas. Era mais que um desabafo, era a necessidade de manter-me vivo e lúcido. O meu desabafo era a voz que nunca escutei. A voz que imagino como é. A voz que sai do espelho, direto da boca do homem sem rosto e sem documento, que só tem passado e nada mais. Eu só queria que alguém, que sentasse ao meu lado e dissesse que tudo bem não ser perfeito por dentro. Tudo bem, não chore, vai passar. Você é só um garoto triste. Eu deixo você crescer. Eu faço os seus ossos pararem de doer. Eu deixo você sair dessa bolha de proteção do mundo e chorar a sua dor. Eu deixo você voltar no tempo por um segundo, fechar os olhos e dizer adeus ao seu primeiro amor. Eu quero que você se despeça, devagar, que aproveite os beijos na bochecha, que nade no riacho pela última vez. Quero que você leia o seu livro de dez páginas saboreando cada ilustração. Que você perdoe as baleias por serem tão grandes. Que você afaste os móveis da sala pela última vez. Tudo bem se você não quiser pular do ninho agora. Você nunca esteve preparado, mas eu sei que você se esforçou. Eu só quero alguém que diga que eu preciso cortar o cabelo. Mas ninguém diz nada. Todo mundo só concorda comigo quando eu digo que o que passou, passou. Que a vida continua, que o meu maior sonho é ser um advogado quando o meu maior sonho é só que alguém entenda o que eu preciso ser. E que por favor, me explique. Alguém que me sirva de apoio e que diga ao mundo que eu não quero falar com ninguém. Que eu não gosto de celular, bebida, festa. Que eu tenho vergonha de existir. Que eu sou só um menino ateu, sem graça, sem casa, com direito ao Bolsa-Tristeza que foi deixado na porta de uma felicidade instantânea. Alguém que explique que não gosto de falar porque simplesmente gosto de escrever. Alguém que seja para mim o simples prazer de ser alguém que não foi embora. Ainda. Alguém que não queira escutar a minha voz. Alguém que explique ao resto das pessoas que sou uma pessoa feita de restos e que choro por pouca coisa. Choro, por exemplo, pelo sorriso de um homem mudo. Que gosto de chocolate quente antes de dormir, que acho que a saudade tem os mais belos olhos do mundo. Quero alguém que beba o oceano de canudo para que eu não tenha mais medo de gigantes. Alguém que me leve para chorar num mundo distante, porque não há mais cantos nesse mundo onde eu esteja abandonado o suficiente para ser o que eu sempre fui. Não há dor maior que se acumule no meu coração e faça aquela saudade poder ser transbordada até a última gota. Não há saudade maior do que a saudade que eu sinto dos olhos de saudade. Queria mais fios, mais sangue, mais sentimento de culpa, mais ressentimento, mais despedidas para que respire aliviado novamente. Para que eu consiga dormir uma noite sem lágrimas. Esse mundo perfeito dói. Esse mundo de mentira que não é de mentira dói profundamente. Eu queria ter forças para sugar a última gota de chocolate que sobrou na minha caneca azul preferida. Meu Deus, quando foi que eu perdi as minhas cores? Quando foi que meus textos encheram-se de interrogações? Aliás, quando é que eu comecei a escrever? Quando foi mesmo que eu comecei a ser feliz? Eu, honestamente, tenho muita coisa pra lembrar. Tenho que lembrar que sou perfeito, que sou só passado, que os exames de cardiologia deram em nada de novo. Eu sou um menino de muita sorte. Tenho que lembrar que sou um menino de muita sorte. Que não tenho motivos para ser o que sou. Triste, vazio, perdido. Mas quando a noite acaba, meu bem, quando a noite acaba e as quatro paredes do quarto adormecem, eu sempre acabo assim. Sozinho.
quarta-feira, 9 de janeiro de 2013
Que o medo de cair seja não mais que a prudência de não saber voar. Que a presença dos pesadelos transforme-se na insônia feliz e permanente. Sabe-se lá a vida que tem, mas que a vida só tenha o que saiba. Que o aprendiz seja eterno, aprendendo a brincar em parques enferrujados dentro de uma tristeza desproporcional como um bolo e seu excesso de fermento. Que a inteligência não cale meu jogo de estupidez. Que a paixão desenfreada seja um carro em rua retilínea e eterna. Os postes e acidentes cansam a lataria que ajeita-se na oficina mais cara. Que o peso de papel não seja as lembranças que pesam a minha poesia. Que o racionamento mate a minha fome. Que as horas passem, mas que o passado volte, ainda que não seja presente. Que eu aprenda a amar antes de aprender a rezar. Que a renúncia não seja mais que uma curva na esperança de um novo dia. Que as janelas destruam-se e o céu seja inteiro pela primeira vez. Que o aniversário aconteça todos os dias, mas que o crescimento caiba na palma do meu tempo. Que a preguiça não esteja sempre a disposição da morte. Que as ruínas sejam a metamorfose e a saudade seja esqueleto de museu. Que a dor seja suportável e nunca transbordável, que a vergonha de chorar seja somente a vergonha de me sentir sozinho. E que eu chore, para que a solidão caracterizada de mim veja que lágrima é água e água de adapta em todo corpo físico. Que o sorriso seja a pintura do espelho todas as manhãs. Que a abolição do sofrimento aconteça em breve, porque sofrimentos também cansam de serem escravizados. Que o dia seja noite, mas que a noite seja sempre noite. Que o sentimento seja transformando em máquina, mas que seja a máquina que anda com as próprias pernas e morre sem o próprio coração. Que a raiva construa e que o ódio fortaleça, porque tudo o que amo eu já detestei um dia. Que o vinho do sangue alheio mate a minha sede, quando a adega da fidelidade da solidão secar. Que eu consiga separar o lixo, mas que eu desaprenda a reciclar. Que a minha alegria não seja fútil e teimosa, mas que também saiba ceder espaço para quando a câimbra da convivência com ela chegar. Que o tempo todo seja tempo demais para qualquer coisa. Que dos chuveiros desçam o perdão e que minha alma seja lavada, mas jamais renovada. Experiências já são bloqueios naturais para vermes e venenos. Que a vontade de morrer seja a vontade de virar estrela. Que a infinitude da busca seja a recompensa dos pés cansados de procurar um novo caminho. Que eu possa recomeçar sem nunca ter chegado ao fim da linha. Que tenha um pote de arco-íris no fim do ouro. Que a felicidade da vida seja momentânea e rara, mas também encontrada em todo lugar.
sábado, 5 de janeiro de 2013
Refúgio - Parte IV
Recordo-me de como o céu acinzentou-se como grafite molhado gasto em papel. Embora para onde, embora por que? A boca salivava mais do que mil cachoeiras, mas o gosto amargo do palito ameaçava descer pelos olhos, formando lágrimas que soariam muito estranho numa ocasião avulsa como aquela. Papai olhou-me atravessado, com um tom de preocupação encoberto pela meia pálpebra, mas Srta. Laninha garantiu que o pequeno surto era decorrente da fadiga.
Fadiga... Ora, bolas. Fadigada eram as fuças de Srta. Laninha. Quanta hipocrisia, pensava eu. Quanto charme para botar-me um trambolho esquisito no peito, receitar-me umas bruxarias quaisquer e tirar minha pequena Eleonora. Ah, debati-me! Debati-me feito um porco de açougue que descobre o fim do corredor. A cólera arrastava meu sangue para as paredes das veias, as sobrancelhas lutavam para unir-se tamanha era a força com que eu as contraía. E contraí-me todo, para o desespero de papai e Srta. Laninha que tentavam ao menos conter meus impulsos nervosos, ou manter-me consciente. Gonçalves, que até então se manteve próximo a Eleonora, imóvel e mudo feito uma planta parasita, sugando toda aquela cena bizarra, meteu-se a falar antes da língua.
- Isso não passa de fricote. É um "fricotoso"!
De fato, era. E como meu melhor amigo, apenas Gonçalves percebera. Não passava realmente de um reles chilique, um breve transtorno que, mesmo que inconscientemente, desejava eu ser forte o suficiente para convencer a santa Srta. Laninha que eu passava por maus bocados, que sua presença era mais que preciosa água benta, mais que qualquer repouso.
- Aquiete-se, Gonçalves. O menino está doente. - ralhou papai. Coçando a cabeça, continuou. - Perdoe-me a intromissão, moça, mas a senhora vai embora por que? Tanta gente por aí precisando de um remédio, um cafuné de mãos formadas e sabidas... Ou estou enganado?
- De maneira alguma. Sempre há um pobre diabo que necessita de ajuda médica. Os olhos do Governo mal pousam sobre as famílias de interior. Acham que não são gente, sabe? Coisa horrível. E até as pessoas que dizem serem anjos da vida, os doutores e enfermeiros, falo dos mais chulos mesmo, aqueles que se formam só com a misericórdia de Deus, nem esses querem treinar a profissão amenizando a dor alheia, por ser dor miserável e mal remunerada. Querem ser gente graúda, curar dor de unha dos granfinos. Eu e minha menina viemos pra cá por necessidade, mas não pude deixar de reconhecer o estrago da saúde pública. Mas o motivo que me fez decidir voltar para a inquietude da cidade é outro, seu menino. É pela menina, aquela que meu bom e finado marido deixou como prova de vínculo eterno, entende? Cria minha tem que estudar... Virar doutora, ser tudo o que mamãe não pôde deixar eu ser, pois fique o senhor sabendo que enfermeira eu sou por falta de estudo. Enfermeiro é pouco valorizado, seu menino. É pouco mesmo... Povo só lembra de médico e pra ser médico tem que estudar. Tem que estudar!
- Mas a senhora nem precisava se afastar, Srta. Laninha. Aqui nas regiões há muitas escolas. A senhorita não matriculou sua menina por lá ainda? Lá na sala de Emílio sempre tem umas vaguinhas de criança que morre ou que viaja pro centro.
- Não, não... Escola de alto nível, eu falo. Venho juntando um dinheiro... E Eleonora já está em idade de me render os esforços que fiz. Orgulho de mãe paga investimento de uma vida toda. Lembro da minha, no dia da minha formatura. Comeu o pão que o diabo amassou, fez das tripas coração, pra chorar uma bagatela na minha, ou melhor dizendo, nossa grande noite, eu com anel de grau nos dedos e ela com o coração miudinho de felicidade. Esse orgulho eu não morro sem ter.
Papai olhou transviado para a moça que nem mais olhava para ele, nem sequer de relance, de tanta imagem da menina Eleonora em cima do palanque, com bata azul e chapéu de formanda, recheando-lhe a cabeça. Quase se sentiu ofendido quanto ao desprezo das escolas da região, mas era homem de pacificar as palavras dos outros, fazia das indelicadezas mais graves uma diminuta distração do orador. E além do mais, ele bem sabia que eu mal sabia soletrar uma palavra com mais de dez letras. Não me dava mais por pura falta de condição.
Eleonora escutava tudo calada, e calada ficou durante toda a prosa, enquanto eu me rendia ao sabor de escutar uma conversa de adulto. Ignoravam o "fricotoso" enfermo por alguns segundos, ao menos. Os dois mantinham a discussão forte e viva, com argumentos e histórias de velhota em ponta de calçada. Papai contava da vida dura no roçado, de quando a mulher o largou. Srta. Laninha desdobrava todo o seu casamento feliz aos ouvidos do roceiro, desde o namorico, passando pelo nascimento da primeira filha que nasceu morta e da barriga vingada que lhe rendeu Eleonora, até chegar no triste fim do esposo e de como viera parar ali, vendendo o almoço para comprar a janta. Gonçalves naquela altura já desistira de permanecer em meio à fofoca. Não podia se demorar em casa dos outros, porque ficara de recuperação e a mãe era carrasca fervorosa. Para salvar-me da monotonia, apenas a angelical presença de Eleonora, muda como uma estátua e linda como uma Vênus mirim.
Seria aquilo o amor? Eu não fazia ideia. Mas se fosse, amor era muito sem graça, pensava. Ficar parado ali, decorando as cores de olhos alheios, imaginando conversas, sofrendo com uma intragável separação breve. Vinte e quatro horas era tempo muito pequeno, não valia o esforço da felicidade. Eleonora estava ali, mas o não "estará mais" me remoeu de tristeza. A gente sofre por antecipação, e sofre com um gosto danado. Amor me deixava triste e febril, em cima de uma cama ouvindo histórias que pararam de me interessar quando Eleonora sumiu em meio a outras tragédias que não a minha. Minha primeira tragédia. A separação. Talvez esta seja a minha grande cruz. Eu sou lobo de comando, eu preciso de um bando, de uma companhia, de alguém que se movimente mais que uma peça de xadrez do meu amigo parcialmente cego que jura ter sido Napoleão Bonaparte. Amor me levaria ao asilo, mas nunca ao exílio de mim mesmo.
Eleonora nem piscava o olho. Vez ou outra arrasta a cara na mão, em sinal de tédio profundo, bocejava e abria a boca mais vezes do que eu podia contar. Qualquer movimento dela era lindo. Os olhos de uma beleza infantil e perigosa, como faíscas soltando perto da água. Foi assim a minha primeira visão de Eleonora. Longe de Maria, longe da poesia, ela era só uma menina crescida em corpo de gente que nunca cresceu. Os futuros estavam traçados.
- Bás Tardes, seu menino. É hora de ir. A enfermeira substituta virá amanhã mesmo. E não se preocupe, viu? Um pouco de repouso e o menino aí estará pronto pra outra.
- Obrigado, dona Laninha. Vá em paz.
Laninha pegou a mão da menina, que acordou de súbito do sono forçado, e partiu acompanhado de papai.
Seria a última visão de Eleonora até o segundo pior momento da minha vida.
Fadiga... Ora, bolas. Fadigada eram as fuças de Srta. Laninha. Quanta hipocrisia, pensava eu. Quanto charme para botar-me um trambolho esquisito no peito, receitar-me umas bruxarias quaisquer e tirar minha pequena Eleonora. Ah, debati-me! Debati-me feito um porco de açougue que descobre o fim do corredor. A cólera arrastava meu sangue para as paredes das veias, as sobrancelhas lutavam para unir-se tamanha era a força com que eu as contraía. E contraí-me todo, para o desespero de papai e Srta. Laninha que tentavam ao menos conter meus impulsos nervosos, ou manter-me consciente. Gonçalves, que até então se manteve próximo a Eleonora, imóvel e mudo feito uma planta parasita, sugando toda aquela cena bizarra, meteu-se a falar antes da língua.
- Isso não passa de fricote. É um "fricotoso"!
De fato, era. E como meu melhor amigo, apenas Gonçalves percebera. Não passava realmente de um reles chilique, um breve transtorno que, mesmo que inconscientemente, desejava eu ser forte o suficiente para convencer a santa Srta. Laninha que eu passava por maus bocados, que sua presença era mais que preciosa água benta, mais que qualquer repouso.
- Aquiete-se, Gonçalves. O menino está doente. - ralhou papai. Coçando a cabeça, continuou. - Perdoe-me a intromissão, moça, mas a senhora vai embora por que? Tanta gente por aí precisando de um remédio, um cafuné de mãos formadas e sabidas... Ou estou enganado?
- De maneira alguma. Sempre há um pobre diabo que necessita de ajuda médica. Os olhos do Governo mal pousam sobre as famílias de interior. Acham que não são gente, sabe? Coisa horrível. E até as pessoas que dizem serem anjos da vida, os doutores e enfermeiros, falo dos mais chulos mesmo, aqueles que se formam só com a misericórdia de Deus, nem esses querem treinar a profissão amenizando a dor alheia, por ser dor miserável e mal remunerada. Querem ser gente graúda, curar dor de unha dos granfinos. Eu e minha menina viemos pra cá por necessidade, mas não pude deixar de reconhecer o estrago da saúde pública. Mas o motivo que me fez decidir voltar para a inquietude da cidade é outro, seu menino. É pela menina, aquela que meu bom e finado marido deixou como prova de vínculo eterno, entende? Cria minha tem que estudar... Virar doutora, ser tudo o que mamãe não pôde deixar eu ser, pois fique o senhor sabendo que enfermeira eu sou por falta de estudo. Enfermeiro é pouco valorizado, seu menino. É pouco mesmo... Povo só lembra de médico e pra ser médico tem que estudar. Tem que estudar!
- Mas a senhora nem precisava se afastar, Srta. Laninha. Aqui nas regiões há muitas escolas. A senhorita não matriculou sua menina por lá ainda? Lá na sala de Emílio sempre tem umas vaguinhas de criança que morre ou que viaja pro centro.
- Não, não... Escola de alto nível, eu falo. Venho juntando um dinheiro... E Eleonora já está em idade de me render os esforços que fiz. Orgulho de mãe paga investimento de uma vida toda. Lembro da minha, no dia da minha formatura. Comeu o pão que o diabo amassou, fez das tripas coração, pra chorar uma bagatela na minha, ou melhor dizendo, nossa grande noite, eu com anel de grau nos dedos e ela com o coração miudinho de felicidade. Esse orgulho eu não morro sem ter.
Papai olhou transviado para a moça que nem mais olhava para ele, nem sequer de relance, de tanta imagem da menina Eleonora em cima do palanque, com bata azul e chapéu de formanda, recheando-lhe a cabeça. Quase se sentiu ofendido quanto ao desprezo das escolas da região, mas era homem de pacificar as palavras dos outros, fazia das indelicadezas mais graves uma diminuta distração do orador. E além do mais, ele bem sabia que eu mal sabia soletrar uma palavra com mais de dez letras. Não me dava mais por pura falta de condição.
Eleonora escutava tudo calada, e calada ficou durante toda a prosa, enquanto eu me rendia ao sabor de escutar uma conversa de adulto. Ignoravam o "fricotoso" enfermo por alguns segundos, ao menos. Os dois mantinham a discussão forte e viva, com argumentos e histórias de velhota em ponta de calçada. Papai contava da vida dura no roçado, de quando a mulher o largou. Srta. Laninha desdobrava todo o seu casamento feliz aos ouvidos do roceiro, desde o namorico, passando pelo nascimento da primeira filha que nasceu morta e da barriga vingada que lhe rendeu Eleonora, até chegar no triste fim do esposo e de como viera parar ali, vendendo o almoço para comprar a janta. Gonçalves naquela altura já desistira de permanecer em meio à fofoca. Não podia se demorar em casa dos outros, porque ficara de recuperação e a mãe era carrasca fervorosa. Para salvar-me da monotonia, apenas a angelical presença de Eleonora, muda como uma estátua e linda como uma Vênus mirim.
Seria aquilo o amor? Eu não fazia ideia. Mas se fosse, amor era muito sem graça, pensava. Ficar parado ali, decorando as cores de olhos alheios, imaginando conversas, sofrendo com uma intragável separação breve. Vinte e quatro horas era tempo muito pequeno, não valia o esforço da felicidade. Eleonora estava ali, mas o não "estará mais" me remoeu de tristeza. A gente sofre por antecipação, e sofre com um gosto danado. Amor me deixava triste e febril, em cima de uma cama ouvindo histórias que pararam de me interessar quando Eleonora sumiu em meio a outras tragédias que não a minha. Minha primeira tragédia. A separação. Talvez esta seja a minha grande cruz. Eu sou lobo de comando, eu preciso de um bando, de uma companhia, de alguém que se movimente mais que uma peça de xadrez do meu amigo parcialmente cego que jura ter sido Napoleão Bonaparte. Amor me levaria ao asilo, mas nunca ao exílio de mim mesmo.
Eleonora nem piscava o olho. Vez ou outra arrasta a cara na mão, em sinal de tédio profundo, bocejava e abria a boca mais vezes do que eu podia contar. Qualquer movimento dela era lindo. Os olhos de uma beleza infantil e perigosa, como faíscas soltando perto da água. Foi assim a minha primeira visão de Eleonora. Longe de Maria, longe da poesia, ela era só uma menina crescida em corpo de gente que nunca cresceu. Os futuros estavam traçados.
- Bás Tardes, seu menino. É hora de ir. A enfermeira substituta virá amanhã mesmo. E não se preocupe, viu? Um pouco de repouso e o menino aí estará pronto pra outra.
- Obrigado, dona Laninha. Vá em paz.
Laninha pegou a mão da menina, que acordou de súbito do sono forçado, e partiu acompanhado de papai.
Seria a última visão de Eleonora até o segundo pior momento da minha vida.
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