sábado, 5 de janeiro de 2013

Refúgio - Parte IV

      Recordo-me de como o céu acinzentou-se como grafite molhado gasto em papel. Embora para onde, embora por que? A boca salivava mais do que mil cachoeiras, mas o gosto amargo do palito ameaçava descer pelos olhos, formando lágrimas que soariam muito estranho numa ocasião avulsa como aquela. Papai olhou-me atravessado, com um tom de preocupação encoberto pela meia pálpebra, mas Srta. Laninha garantiu que o pequeno surto era decorrente da fadiga.
      Fadiga... Ora, bolas. Fadigada eram as fuças de Srta. Laninha. Quanta hipocrisia, pensava eu. Quanto charme para botar-me um trambolho esquisito no peito, receitar-me umas bruxarias quaisquer e tirar minha pequena Eleonora. Ah, debati-me! Debati-me feito um porco de açougue que descobre o fim do corredor. A cólera arrastava meu sangue para as paredes das veias, as sobrancelhas lutavam para unir-se tamanha era a força com que eu as contraía. E contraí-me todo, para o desespero de papai e Srta. Laninha que tentavam ao menos conter meus impulsos nervosos, ou manter-me consciente. Gonçalves, que até então se manteve próximo a Eleonora, imóvel e mudo feito uma planta parasita, sugando toda aquela cena bizarra, meteu-se a falar antes da língua.
      - Isso não passa de fricote. É um "fricotoso"!
      De fato, era. E como meu melhor amigo, apenas Gonçalves percebera. Não passava realmente de um reles chilique, um breve transtorno que, mesmo que inconscientemente, desejava eu ser forte o suficiente para convencer a santa Srta. Laninha que eu passava por maus bocados, que sua presença era mais que preciosa água benta, mais que qualquer repouso.
      - Aquiete-se, Gonçalves. O menino está doente. - ralhou papai. Coçando a cabeça, continuou. - Perdoe-me a intromissão, moça, mas a senhora vai embora por que? Tanta gente por aí precisando de um remédio, um cafuné de mãos formadas e sabidas... Ou estou enganado?
      - De maneira alguma. Sempre há um pobre diabo que necessita de ajuda médica. Os olhos do Governo mal pousam sobre as famílias de interior. Acham que não são gente, sabe? Coisa horrível. E até as pessoas que dizem serem anjos da vida, os doutores e enfermeiros, falo dos mais chulos mesmo, aqueles que se formam só com a misericórdia de Deus, nem esses querem treinar a profissão amenizando a dor alheia, por ser dor miserável e mal remunerada. Querem ser gente graúda, curar dor de unha dos granfinos. Eu e minha menina viemos pra cá por necessidade, mas não pude deixar de reconhecer o estrago da saúde pública. Mas o motivo que me fez decidir voltar para a inquietude da cidade é outro, seu menino. É pela menina, aquela que meu bom e finado marido deixou como prova de vínculo eterno, entende? Cria minha tem que estudar... Virar doutora, ser tudo o que mamãe não pôde deixar eu ser, pois fique o senhor sabendo que enfermeira eu sou por falta de estudo. Enfermeiro é pouco valorizado, seu menino. É pouco mesmo... Povo só lembra de médico e pra ser médico tem que estudar. Tem que estudar!
      - Mas a senhora nem precisava se afastar, Srta. Laninha. Aqui nas regiões há muitas escolas. A senhorita não matriculou sua menina por lá ainda? Lá na sala de Emílio sempre tem umas vaguinhas de criança que morre ou que viaja pro centro.
      - Não, não... Escola de alto nível, eu falo. Venho juntando um dinheiro... E Eleonora já está em idade de me render os esforços que fiz. Orgulho de mãe paga investimento de uma vida toda. Lembro da minha, no dia da minha formatura. Comeu o pão que o diabo amassou, fez das tripas coração, pra chorar uma bagatela na minha, ou melhor dizendo, nossa grande noite, eu com anel de grau nos dedos e ela com o coração miudinho de felicidade. Esse orgulho eu não morro sem ter.
      Papai olhou transviado para a moça que nem mais olhava para ele, nem sequer de relance, de tanta imagem da menina Eleonora em cima do palanque, com bata azul e chapéu de formanda, recheando-lhe a cabeça. Quase se sentiu ofendido quanto ao desprezo das escolas da região, mas era homem de pacificar as palavras dos outros, fazia das indelicadezas mais graves uma diminuta distração do orador. E além do mais, ele bem sabia que eu mal sabia soletrar uma palavra com mais de dez letras. Não me dava mais por pura falta de condição.
      Eleonora escutava tudo calada, e calada ficou durante toda a prosa, enquanto eu me rendia ao sabor de escutar uma conversa de adulto. Ignoravam o "fricotoso" enfermo por alguns segundos, ao menos. Os dois mantinham a discussão forte e viva, com argumentos e histórias de velhota em ponta de calçada. Papai contava da vida dura no roçado, de quando a mulher o largou. Srta. Laninha desdobrava todo o seu casamento feliz aos ouvidos do roceiro, desde o namorico, passando pelo nascimento da primeira filha que nasceu morta e da barriga vingada que lhe rendeu Eleonora, até chegar no triste fim do esposo e de como viera parar ali, vendendo o almoço para comprar a janta. Gonçalves naquela altura já desistira de permanecer em meio à fofoca. Não podia se demorar em casa dos outros, porque ficara de recuperação e a mãe era carrasca fervorosa. Para salvar-me da monotonia, apenas a angelical presença de Eleonora, muda como uma estátua e linda como uma Vênus mirim.
      Seria aquilo o amor? Eu não fazia ideia. Mas se fosse, amor era muito sem graça, pensava. Ficar parado ali, decorando as cores de olhos alheios, imaginando conversas, sofrendo com uma intragável separação breve. Vinte e quatro horas era tempo muito pequeno, não valia o esforço da felicidade. Eleonora estava ali, mas o não "estará mais" me remoeu de tristeza. A gente sofre por antecipação, e sofre com um gosto danado. Amor me deixava triste e febril, em cima de uma cama ouvindo histórias que pararam de me interessar quando Eleonora sumiu em meio a outras tragédias que não a minha. Minha primeira tragédia. A separação. Talvez esta seja a minha grande cruz. Eu sou lobo de comando, eu preciso de um bando, de uma companhia, de alguém que se movimente mais que uma peça de xadrez do meu amigo parcialmente cego que jura ter sido Napoleão Bonaparte. Amor me levaria ao asilo, mas nunca ao exílio de mim mesmo.
      Eleonora nem piscava o olho. Vez ou outra arrasta a cara na mão, em sinal de tédio profundo, bocejava e abria a boca mais vezes do que eu podia contar. Qualquer movimento dela era lindo. Os olhos de uma beleza infantil e perigosa, como faíscas soltando perto da água. Foi assim a minha primeira visão de Eleonora. Longe de Maria, longe da poesia, ela era só uma menina crescida em corpo de gente que nunca cresceu. Os futuros estavam traçados.
      - Bás Tardes, seu menino. É hora de ir. A enfermeira substituta virá amanhã mesmo. E não se preocupe, viu? Um pouco de repouso e o menino aí estará pronto pra outra.
      - Obrigado, dona Laninha. Vá em paz.
      Laninha pegou a mão da menina, que acordou de súbito do sono forçado, e partiu acompanhado de papai.
      Seria a última visão de Eleonora até o segundo pior momento da minha vida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário