domingo, 28 de dezembro de 2014

Quantas vezes eu desejei alguém com braços suficientemente grandes pra me segurar com força e dizer que a gente pode ser amado por cada pedacinho vivo nesse planeta. A gente pode ser amado pelas formigas que evitamos pisar quando somos crianças e nosso sentimento de empatia é maior que a nossa despreocupação, podemos ser amados pelos cachorros que fazemos carinho ou alimentamos, podemos ser amados, inclusive, pelos refrões acústicos das músicas que mais repetimos, mas não é bem assim que acontece, certo? Minha mãe, que deveria ter os maiores braços do mundo, mas não tinha, disse uma vez que estava tudo bem. Que eu ia despertar o amor de alguém mais cedo ou mais tarde, que eu era uma boa pessoa, interessante, bonita, que eu ia me casar e ser extremamente feliz com a pessoa que escolhi pra mim, com vários filhos que herdariam a minha cara e um bom emprego, porque sempre fui um rapaz inteligente e esforçado. Mamãe dizia que meu sorriso era lindo e que eu deveria mostrá-lo mais. Mas não é bem assim que acontece. O tempo fez com que eu me aproximasse de mais pessoas e fez com que eu sobrevivesse até o ano de 2014, era da selfie e da ostentação da felicidade. Eu deveria ter aproveitado mais daquele jovem rapaz gorducho e de nariz redondo que, de tanto fazer força pra manter os lábios cerrados com medo de dizer alguma bobagem, acabou com o sorriso meio torto. Eu não me importava tanto com as coisas ao meu redor. Eu não entendia todas aquelas piadas e tanta desaprovação se pizza era uma coisa tão gostosa, se ficar calado o tempo inteiro era uma coisa que deixava todo mundo tão calmo. Não podia ser uma coisa ruim, que levasse junto tanta dor. mas hoje, eu entendo.
Entendo que quando as pessoas saem pras festas e me levam junto, elas querem que eu me divirta embebido pelo álcool. No fundo, elas querem que eu seja diferente. Ainda querem. Elas querem sempre que eu seja um pouco mais diferente e distante de ser eu. Todas as pessoas que me amam: elas amam a minha mudança. amam a parte de mim que não se esconde no banheiro pra chorar, que não escreve essas besteiras, que não se importa com os problemas psicológicos dos outros, que não tem medo das garotas e finge que superou só porque beijou uma garota que não lembra mais que eu existo ou foi pra cama com algumas pessoas que eu gostaria que nunca tivessem existido. Eles amam a parcela de mim que ama a mãe o tempo inteiro, não só nos momentos em que é conveniente, eles amam a parte de mim que não reclama da carência das pessoas porque é exatamente a carência que carrega nas costas a maior parcela da vida e sabe o quanto isso é desnecessário, alguém que não se ressentia toda vez que era o último a ser escolhido na educação física. E por mais amigos que eu tenha, por mais que as pessoas que mais se importam comigo estejam a apenas passos de distância de mim, eu não me sinto suficientemente protegido. Eu gostaria de diminuir ao ponto de ser apenas uma mísera hemácia do meu próprio corpo. Eu sou sempre um entrave na vida de quem quer que seja porque eu sou um entrave na minha própria vida, e quem quer que seja que se aproxime de mim, faz parte da minha vida. Eu gostaria de não escrever pra mim as coisas que eu deveria falar pra um psiquiatra que, provavelmente, me entupiria de remédios por dizer que eu sou depressivo demais pra minha idade. Eu simplesmente não me importo mais, porque amo a parcela de mim que não costumo ser.
Amo o jeito como eu faço piada de tudo que está ao meu redor, amo o fato de me reconhecer em bandas que ninguém conhece, amo quando consigo ser irônico, sarcástico, cruel e ter uma legião de fãs por causa disso. Gosto quando esnobo o amor dos outros porque vejo a felicidade alheia como num daqueles espelhos de circo: completamente distorcida e engraçada.
(é engraçado como duas pessoas que definitivamente não se cruzaram na maternidade, se percebem e se reconhecem em meio à fúria de sabe-se lá o que. É também hilário como eu não consigo entender a complexidade de um envolvimento dessas proporções pequenas. É super divertido como eu não tenho ninguém pra ligar no fim do dia e acho um porre quando as pessoas ligam pras outras no fim do dia porque eu não me importo com o dia de ninguém além do meu, que é uma porcaria na grande maioria das vezes. Espera... é engraçado?)
Enfim. Estou alheio a todo mundo quase sempre. Não me aborrece na maior parte do tempo porque está sempre tudo bem. Está sempre tudo ok comigo, eu tenho internet rápida, tenho livros legais, tenho um filósofo pessimista preferido pra idolatrar, um autor bêbado na estante que me faz ter inveja por não conseguir fazer com um papel em branco o que ele conseguia fazer com o próprio coração (salve, buk), está tudo bem comigo, mas não está nada bem dentro de mim. Nunca está, nunca esteve.
Mas vai ficar, quando eu encontrar alguém com braços grandes o suficiente que me diga o que eu mais quero ouvir na minha vida:
jovenzinho, você já cresceu. Emagreceu, ficou mais bonito, realmente, mesmo que não se sinta assim, quebrou a cara, fez novas amizades, quebrou a cara novamente, fez novas amizades novamente. e, adivinhe? Elas também vão te machucar, mas elas te amam. Elas amam a parte de você que você conhece mais do que o resto de si, então não se preocupe. quando você se sentir triste, jovenzinho, pergunte à essas pessoas qual a sua melhor face. Ou então, faça uma piada. Tudo se resolve com uma boa e ácida piada. Sim, jovenzinho, você cresceu, mas não é mais certo que você construa uma linda e fantástica família feliz, porque nem você sabe o que é isso. Não é mais certo que você vá se casar, porque ninguém é obrigado a lidar com você o resto da vida, e você sabe que não aguentaria um divórcio sem se tornar um alcoólico nojento. Você é realmente uma boa pessoa, mas isso não importa pra ninguém além dos mendigos que você ofereceu esmola. Até porque, a inveja e o desprezo que você sente de todo mundo que consegue ser mais interessante e simpático que você não é uma coisa muito agradável de ver daqui, partindo do ponto de vista da sua consciência. Seu bonito e selvagem cabelo irá cair algum dia e você parecerá menos interessante do que já é, mas está tudo bem. No futuro, a internet será ainda mais rápida. você desenvolverá um transtorno do pânico na meia idade e ficará em casa apodrecendo seus olhos e seus ouvidos com o silêncio e a tristeza do apartamento minúsculo e mal cuidado, mas ninguém vai se importar. Eu sei o quanto você gosta de ficar em casa, jovenzinho, e eu sei o quanto te incomoda ver que as pessoas se incomodam com você. As pessoas que você ama mais do que a sua própria família, e sabe que isso é um erro, porque você é egoísta e nunca consegue aprender com os próprios erros, mas está tudo bem. Eu sei que seus amigos são tudo pra você. Sei o quanto te incomoda que eles te chamem de chato, insuportável, gordo (você gosta mais de comida do que de gente, assumamos), antipático e estraga-festas, mesmo quando você só quer um abraço, mesmo quando você quer sumir do planeta, ou quando você quer que o planeta inteiro te abrace, como alguma coisa imensa e sem calor que te acolhesse maternalmente. Não pense que é por maldade sua, jovenzinho, mas eu sei que você cresceu ouvindo quem você era, como um CD arranhado. As pessoas não mudaram o disco porque você não mudou e isso te assusta, jovenzinho solitário e gorducho do nariz redondo. Eu sei que você ainda é o último a ser escolhido e isso faz você experimentar o gosto da autopiedade. Eu sei e você sabe mais do que ninguém que essas pessoas vão te tratar apenas como o amigo que pode ficar sem beber e dar caronas. Ah, qual é, jovenzinho? Você não é o amigo mais divertido e animado desse mundo, nós sabemos. Não venha dizer que eu, criatura dos braços enormes, te decepcionei. Nós sabemos também que você vai ficar contente com qualquer coisa que eles façam por você, mas nunca será o suficiente. Você vai sentir falta das mensagens de aniversário e de feliz natal das pessoas que já esqueceram da sua existência, e você sabe que seus relacionamentos daqui pra frente serão sempre superficiais e imaturos, o que vai rolar é no máximo um sexo selvagem e depois você dá o número errado esperando que ela digite o número certo. Não acredite tanto no que a sua voz interior diz, jovenzinho. É impossível ser feliz sozinho, mas é impossível amar sozinho também. É?

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Boa noite.

A cidade tá um forno nos últimos meses. E o pior é que a única coisa que o ar-condicionado faz é molhar as minhas paredes. Eu não arrumei coragem ainda nem pra tomar um banho. Até entrei no banheiro. Olhei no espelho, vi as olheiras enormes escondidas atrás de um óculos velho e desisti, só molhei mesmo o rosto e pronto. Eu poderia ao menos me dar ao trabalho de saber que dia da semana é hoje, mas não. Consequência do recesso… Desliguei da tomada tudo aquilo que fosse além das necessidades biológicas. E eu acho que vou sobreviver sem olhar pro calendário. Eu ainda me pergunto qual é o critério que os cientistas usam pra saber se um dia terminou ou não, porque pra mim parece sempre tudo a mesma coisa. As horas são superficiais demais. Inclusive, imagino o relógio como um escultor que, aos poucos, vai esculpindo no meu corpo as marcas dele. O tic-tac que compõe as minhas rugas chega a ser insuportável. O apartamento parece ainda menor quando sou obrigado a reparar nele. Se não fosse pelo dinheiro, eu já teria largado a porcaria do meu trabalho e me mudado pra uma cidade menor, onde o concreto não me isolasse de uma maneira tão perfeita que faz até com que eu pareça parte dele. Às vezes, sinto os pássaros se suicidando na minha cara e me sinto o próprio arranha-céu que, inclusive, é meu vizinho. Mas eu não posso largar nada agora. Estou naquela idade entre nascer e morrer que o futuro dá medo. Ainda lembro de quando decidi morar sozinho… Geladeira, fogão, cama, mesa e algo que se parecesse com a decoração de um jovem-adulto-trabalhador-moderno-independente, mas a primeira coisa que eu comprei foi a televisão. A necessidade de escutar outras vozes, sabe? De ver o mundo. E ela continua ali ligada, sem ter ninguém pra ouvir. Eu poderia criar mil e uma metáforas com o fato de ninguém se importar com nada do que “a televisão diz”, mas vocês já sabem. A prioridade agora é só não enlouquecer de silêncio mesmo. Às vezes, funciona. A pobre da jornalista que trabalha no Jornal Nacional é a melhor psicóloga que existe. E nem é reconhecida por isso. E eu nem mesmo sei como ela se chama, porque faz bem uns três meses que eu não leio as letras miúdas que aparecem embaixo na tela. Mas escutar a voz dela é a melhor parte do meu dia. Certa vez, comentei com uma pessoa que eu não lembro mais quem é sobre o fato me sentir sozinho. Solidão assusta mais que o câncer, pode ter certeza disso. As pessoas se sentem culpadas por algo que foge da responsabilidade delas. Culpadas por existirem e não serem suficientemente grandes e importantes para existirem, de fato, na vida de todo mundo. Culpadas pelo papo delas não ser tão legal assim quanto elas pensam, culpadas por estarem dormindo nas madrugadas em que bêbados e prostitutas choram suas dores, culpadas por terem medo de bêbados e nojo de prostitutas, e culpadas por eu não ser nem um bêbado e muito menos uma prostituta, e mesmo assim precisar gastar saliva ao invés de lágrimas pra pedir socorro. Ele olhou bem no fundo dos meus olhos e eu juro que se ele pudesse e se fosse um procedimento racional, teria ligado pra polícia. Primeiro, imagino que ele deva ter sentido raiva, ou uma espécie de indignação profunda por eu ter tocado nesse assunto. Depois, provavelmente, pena. O último estágio e talvez o que eu mais goste é a empatia. Aí ele me recomendou que eu comprasse um cachorro. E contou também a história de uma amiga dele que se sentia assim, “exatamente como eu”, e que melhorou bastante após fazer terapia e participar de um grupo de oração. Eu disse “obrigado, mas eu vou ficar bem” e fui embora. Isso deve ter acontecido há uns dois meses, mais ou menos. Engraçado é que um dia desses, quando meu carro foi pra revisão e eu estava me sentindo a pior das pessoas por ter que voltar de ônibus pra casa (não pelo fato de usar o transporte público, mas sim pelo fato do cobrador não ter me dado bom dia e eu ter sentido falta disso, falta de inclusive ignorar o bom dia dele), vi um cachorro pequeno, preto e branco, quase sendo atropelado. Claramente, não era um cachorro de rua. Assobiei, bati palmas, chamei de todas as maneiras, mas ele não deu a mínima. Quando ele estava quase vindo, um carro passou de raspão e ele se assustou, correu, e ficou esperando no portão do vizinho da frente, como se soubesse que ali estaria seguro. Fui até lá e segurei ele no colo. No mesmo instante, a senhora abriu o portão e quase agarrou o meu pescoço de tanta felicidade. Ela disse que mal podia acreditar que a Princesa tinha voltado pra casa. Me agradeceu, disse que eu era uma boa pessoa e disse pra Princesa nunca mais aprontar uma dessas com ela de novo. Eu sei muita pouca coisa dessa mulher, mas sei que é casada e mora com os três filhos. Um dos filhos dela é psicótico e acabou fugindo de casa, mas voltou recentemente. Olhei pra cadela encolhida nos braços dela, lembrei do que o cara do escritório falou e senti vontade de dizer que “sei exatamente como ela se sente”. Uma das grandes queixas de quem mora numa grande metrópole é não conhecer as pessoas que estão ao redor. Mas o mais assustador é que a gente conhece. A gente conhece quem a gente não sabe nem o nome, e a gente conhece quem a gente não sabe nem que existe. Isso é mais assustador que câncer. Eu só acho que todo mundo deveria ser obrigado por lei a ter um cachorro. Ou uma televisão.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Mamãe disse que era normal.

Eu penso até que fui uma criança normal. Tirando o fato de que eu adorava prender mosquitos dentro de um vidro e colecionar os cadáveres, eu acho que era absolutamente normal. Um dia, eu tava vendo a novela com a mamãe e vi um casal se beijando. Achei aquilo um negócio nojento… Mamãe ignorou, não esboçou nenhuma reação, então deduzi que adultos estavam acostumados a serem nojentos, fosse o sentido que fosse. É difícil dizer a exata fase em que você começa a sentir atração física por alguém, quando você passa temer o “parabéns pra você” porque sabe que depois vem o “com quem será”, quando você começa a matar aula pra brincar de verdade ou desafio, quando você começa a dizer que “gosta” de alguém… Simplesmente acontece e quando você menos imagina também saí por aí achando as nojeiras da vida a coisa mais normal do mundo. Foi assim comigo também. Ao contrário do que muita gente pensa, eu não nasci já programado pra amar as pessoas ao meu redor. Já perto do ensino médio, quando eu achava que nunca ia gostar de ninguém, recebi minha primeira declaração. Foi um choque. Aí achei que as coisas funcionavam meio que assim. Você era escolhido e, num passe de mágica, passava a escolher também. Todo mundo dizia que éramos perfeitos juntos. Eu me perguntava o motivo. Mas o que é que eu poderia esperar? Mamãe me disse que quando os adultos se amam, os adultos se beijam, constroem família, esse tipo de coisa. Não me pareceu muito interessante, mas todo mundo da minha sala já estava na fase de comprar balas de menta e gastar dinheiro com brilhos labiais de sabores diferentes. Eu não tinha nada a perder. Um dia, num passeio da escola, dei meu primeiro beijo. O encontro dos lábios foi mais um esbarrão, e minha língua se recusava a sair do canto dela. Mais do que normal, eu presumo. Gostar de alguém é se esbarrar na estampas das blusas que achamos infantis demais, nos brinquedos jogados no chão, na programação da TV que não é mais a mesma. No ano seguinte, saí do colégio. Conheci o Thiago. Acho que eu podia dizer que ele era meu melhor amigo. Thiago tinha uns olhos verdes tão bonitos que eu não conseguia parar de olhar pra ele. Mas eu não gostava de Thiago, não, eu nunca gostei. Ele era meu melhor amigo de verdade. Mas quando ele falava de garotas, eu me incomodava. “Gostar” parecia ser tão simples pro Thiago, tão bom. E eu me incomodava com aqueles olhos verdes que me puxavam bem pro fundo do poço. Uma vez, eu vi no espelho que meu corpo estava mudando. Eu comecei a perceber que minha voz tinha mudado. E o coração eu nunca entendi porque continuava tão pequeno, tão miúdo, dentro de um corpo tão grande. Quase era possível que ele se perdesse lá dentro. Eu era uma criatura esquisita. Thiago dizia que eu era uma criatura esquisita. Falava sempre que eu precisava encontrar alguém pra mim… Em todas as festas que íamos juntos, ele tentava me arrumar alguém. Até que, aos 13 anos, no nosso primeiro porre, ele me perguntou que tipo de pessoa eu gostava. Eu falei que seria fácil se apaixonar por alguém cujos olhos fossem tão lindos quanto os dele. Thiago foi embora e nunca mais falou comigo. Alguns amigos em comum disseram que o Thiago tava com medo de eu estar gostando dele e não queria me magoar, só não tava afim. Foi uma perda difícil de superar. Cheguei em cada e vi no espelho que meus olhos eram lindos, minha boca era linda, meus cabelos, meu tom de pele. E eu não sabia o que merda estava acontecendo comigo. Em um dos passeios da escola, conheci o Pablo. Ele era uma série mais velho do que eu, e eu só conseguia pensar que ele tinha os olhos mais lindos até do que o otário do Thiago. Eu percebia cada movimento dele tocando a bola no campo de futebol, decorei cada gota de suor que ficava em sua camisa, cada queda que eu me preocupava. Pablo e eu ficamos mais próximos do que nunca. E eu não sabia o que merda estava acontecendo comigo. Então, era isso? Gostar de alguém, era isso? E porque “isso” estava acontecendo justamente comigo? Por que com Pablo? Por que tinha que ser com ele? A gente não escolhe quem é que vai gostar. É normal. Foi o que minha mãe me disse quando eu contei pra ela que estava gostando de um cara que eu não poderia gostar. Mamãe me abraçou e disse que eu estava finalmente crescendo. Quando nossos horários eram compatíveis, Pablo arrumava um jeito de me ver. Me arrepiei pela primeira vez quando ele se aproximou de mim e pude sentir de perto o frescor do chiclete de hortelã que ele sempre levava na bolsa. Por que aquilo estava acontecendo comigo? Agora eu entendia cada palavra que o Thiago falava sobre a namoradinha dele. Eu entendia as tremedeiras, a falta de ar, a sensação de que o chão pode desabar a qualquer momento, os choques térmicos… Pablo me contava dos livros que lia, dos filmes que via, das viagens que fazia. Eu sabia que o seu prato preferido era peixe com fritas, eu sabia que ele preferia pizza fria e que por ele a vida só começava após às 11h da manhã. Tomávamos sorvete juntos e ele nunca me deixava pagar. Eu achava bonito quando ele ficava envergonhado por eu dizer que o nome dele era de galã mexicano e que combinava com ele. Eu deixava as jujubas vermelhas pra ele. Sempre. Eram as minhas preferidas, mas eu queria ver Pablo feliz comendo jujubas vermelhas. Eu queria vê-lo sempre bem. E quando alguma coisa ia mal, era no meu colo que ele chorava, e eu passava a mão no cabelo preto dele, assim como mamãe passava no meu quando eu ainda estava me perguntando o motivo… Até que Pablo me beijou pela primeira vez. Eu sempre rio lendo isso, porque nossas testas trombaram e eu lembro o quanto ele ficou nervoso. E lindo. E todos os beijos treinados em travesseiros e cubos de gelo foram por água abaixo. Eu podia sentir as minhas artérias se fechando. Naquele minuto, eu coloquei a minha mão no peito de Pablo e percebi que era igual ao meu. Exatamente igual. Foi o encontro mais fantástico que tive com a minha própria alma. Não dissemos mais nada. Apenas ficamos ali, abraçados, um corpo pedindo perdão ao outro e o amor pedindo perdão ao mundo. Pablo nunca fez um pedido oficial, mas estávamos namorando. O primeiro namoro de alguém… Mamãe me peguntava quando é que eu ia levar Pablo pra casa. Ela ia fazer a lasanha de frango famosa dela. Teve uma conversa séria sobre sexo comigo. Minhas bochechas ficavam vermelhas só de pensar. Mamãe, eu disse, vamos com calma. Eu lembro que guardei o bilhete do cinema na primeira vez em que fui com Pablo ao cinema. Uma idiotice… Mas era idiotice adolescente. Então era normal. Todos da escola comentavam. Perdi alguns amigos por causa de Pablo. Mas tudo bem… Aprendi a não ligar muito pra essas coisas. Eu não sabia o motivo de ter acontecido comigo, mas se aconteceu, e eu conheci o Pablo, acho que valia a pena. Doeu quando tive vergonha de beijar ele de novo. Não que já não tivéssemos nos beijado outras vezes, é claro, éramos namorados. Mas eu evitava beijar ele em público e, às vezes, ele notava. O transporte público é público e eu pago. O amor não é público, pensei. Eu entendia, sério, mas era dolorido. Eu só fechava os olhos e lembrava da sensação que tive quando vi aquele beijo de novela e quando percebi que mamãe não se importava com ele. Quando beijei a primeira pessoa que disse que gostava de mim. Eu lembro que senti nojo, vergonha e revolta, tudo ao mesmo tempo. Eu pensei que nunca deixamos de ser pequenos, todos, assustados com a vida, com as crianças rosas e azuis, com a cruz, a seta e o círculo, com esse tipo de coisa. Eu também já senti nojo de mim. Por ser um ser humano e participar de todos esses medos. Talvez não os mesmos, claro, mas mesmo assim, eu também tinha meus medos. Medo, principalmente, de não ser capaz de impedir Pablo de ir embora. De não ser suficiente. Eu e ele terminamos quando passou um grupo de conhecidos do curso de inglês e eu disse que ele era só um amigo. Pablo me acusou de imaturidade… Concordei com ele. Fui pra casa chorando e me sentindo a pior pessoa do mundo. Lembrei de tudo o que ele fez por mim e me senti um lixo. Mamãe disse que era normal… Já que o seu amor é tão especial, filho, mamãe disse, prove-o. E eu pensei: Como vou provar que amo Pablo? Aí eu comprei um livro do Leminski (Pablo adorava poesia, eu achava uma bobagem), e escrevi na contracapa:
“ISTO DE QUERER SER EXATAMENTE O QUE A GENTE É AINDA VAI NOS LEVAR ALÉM”. Pablo, eu te amo além do que sou.
Não tive coragem de levar o maldito livro pra escola. Deixei em cima da minha escrivaninha… Quando eu voltei, mamãe estava sentada no sofá, com os seus olhos de abismo, seu cabelo desgrenhado, e com o vestido que ganhou de mim todo manchado de lágrimas.
Eu disse: Mãe, o que houve?
Aí vi. O livro na mão dela. Era isso o que tinha havido.
Olhei pro outro lado e vi que minha mala estava arrumada. Mamãe se virou pra mim e disse: “Eu quero que você suma da minha frente em menos de 24h. Eu quero que você saia e esqueça que um dia teve mãe. Quero que você engula essa sua safadeza, sua promiscuidade de merda, quero que você se dane! Ouviu? Quero que você vá pro inferno, você e seu prostituto de merda, seu veado!”
Não me sustentei em pé. Não senti quando caí e abracei meus joelhos. Lembrei do riso do Pablo. Lembrei das cantigas que mamãe cantava pra mim, das minhas fotos de crisma. Lembrei de como o Pablo ficava bonito naquela camiseta azul que eu dei pra ele. Lembrei das vezes em que mamãe deixou o maior pedaço de bolo pra mim. Pablo também fazia isso. Lembrei do carinho que ela fazia no meu cabelo. Lembrei de como eu adorava ver Pablo desenhar. Lembrei do acampamento em que o vi pela primeira vez. E me vi. Me vi em seu corpo. Me amei porque o amei. Lembrei do porta-joias que dei pra minha mãe no Dia das Mães e ela dizia que eu era o melhor presente dela. Lembrei de quando choveu no meu aniversário de seis ano, estragando a decoração, e lembro de como a mamãe pintou as paredes da casa pra ficar mais ou menos parecido com o mini picadeiro encharcado lá fora. Lembrei do maldito ingresso do cinema guardado no fundo do meu armário.
Por que comigo?
Lembrei também das vezes em que o Pablo chorou por minha causa. E agora mamãe chorava também. Pablo sabia que eu não era só dele. Ele sabia que eu também pertencia ao universo que eu fingia que não me ignorava. Eu pertencia também ao pecado que eu não acreditava ser verdade. Eu também pertencia ao inferno, à doença, a vida nos guetos, nos boeiros. E Pablo chorava porque sabia que eu nunca sairia de lá completamente curado pra poder amá-lo da forma certa. Se é que existe uma forma certa.
Levantei do chão duas horas depois. Minha mãe continuava imóvel. Chorando em silêncio. Silêncio era tudo o que ela poderia me oferecer agora.
Recebi uma mensagem no celular… Era da irmã de Pablo. Ele estava num hospital. Foi atacado na praça por um grupo enquanto jogava bola. Pablo, eu sinto muito. Eu sinto muito mesmo. Por nós dois. Eu também não sei o que merda foi que aconteceu.
E agora, na cobertura do prédio, as sirenes da polícia ficam cada vez mais distantes. Minha mãe está lá embaixo. Rezando por mim. Ela me odeia.
Agora, na cobertura do prédio, quando toda essa porcaria está prestes a acabar… No meu último suspiro, eu percebo que tentei amar pela primeira vez e não consegui.
E, também pela primeira vez, eu era igual a todo mundo.
Ninguém sabia amar.
Era normal. Infelizmente, era normal.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

não amar é como ter um espelho pequeno infiltrado em cada olho
que te faz enxergar só até a metade de si, não importa qual posição diante da vida você adote
mas que metade linda que é
uma metade despreparada, pouco ensaiada, pouco maquiada
uma metade que tão silenciosa que nenhum choro na terra é capaz de abalar
talvez, choro seja o próprio silêncio, já que o choro da solidão é um pouco mais pesado, um pouco mais caótico
e rotineiro
um pouco mais doce
as lágrimas de solidão são um pouco mais doces do que o padrão. acho que o sal permanece o tempo todo dentro de você.
(chorar solidão é quando você contrai um tumor maligno, e ele acaba sendo mais querido que resto do seu corpo sadio. na hora do tratamento, adivinha só quem vai embora.)
uma metade feia, uma metade agoniada, uma metade inteira e pesada
não amar é quando você passa a encarar o amor com desdém
como se nada mais no mundo doesse de uma maneira prazerosa além de você
quando você bate no peito e sente orgulho e pena
do barulho oco que faz.
não amar é quando o amor não faz mais sentido. assim como deus e histórias de sereias (mas eu prefiro acreditar que as sereias existam de verdade. eu sempre gostei de sereias. acho que elas não são tão bonitas, nem tão simpáticas quanto nos contos que ouvi quando era criança. imagino as sereias como velhas de orelhas deformadas em formato de guelras, narizes enormes, dentes pontiagudos e estragados, cabelos mais longos do que um cadáver enterrado na época da segunda guerra mundial, porém esverdeados, e olhos completamente pretos, completamente adaptados à mais profunda escuridão e tristeza dos oceanos. não acredito que elas seduzam homem algum. não fazem ninguém pular do barco, mas são como urubus marinhos e esperam que um bêbado desatento se perca nas águas pra que disputem a comida com os tubarões. as sereias têm cheiro de peixe podre. mas eu sempre gostei de sereias)
quando você passa a ser a fonte incapaz de atrair qualquer mendigo
mas que fonte linda que é
egoísta e transparente.
todas as pessoas que passam na rua só existem por causa de um homem e de uma mulher que por algumas horas, não foram sozinhos
foi assim com um das várias prostitutas que mantinham os olhos melancólicos e avermelhados fixos no teto enquanto algum homem barrigudo e malcheiroso a penetrava freneticamente, sem penetrar em nada... uma das várias prostituas cuja posição preferida era aquela que não dava pra ver o rosto do parceiro, porque era mais fácil só gemer (sem derramar uma lágrima)
e imaginar que todos os gemidos eram xingamentos
direcionados àquele homem sujo e solitário que acariciava ora os seus seios, ora o cabelo alisado à força em sinal de carinho, de súbito carinho e agradecimento por aquela criatura de nome fictício estar oferecendo um pouco de prazer na sua vida monótona e grosseira. um homem que acariciava as suas coxas e que depois não lembraria mais o seu nome. o seu nome fictício.
o homem que não sabe do filho que teve com ela e que se parece muito com o menininho que morreu na barriga da mulher. (a mulher grávida de oito meses, feia e descuidada, que tinha abortado no banheiro, desamparada, enquanto o bom marido fazia sexo com uma prostituta).
não. naquela hora, eles não estavam sozinhos. nem ele, nem a prostituta, nem a mulher, nem a criança abortada e nem o filho que estava sendo gerado.
toda pessoa que eu vejo passando na rua eu vejo como a junção de um homem e de uma mulher
mais sozinhos e pela metade do que nunca.
isso é não amar
isso é não entender o amor
não entender o motivo que faz o mundo continuar
e ser aquela pessoa que está sempre em dúvida, sempre amarga, sempre com a sobrancelha levantada pra todos os casais em forma de protesto
pra todo o amor derramado nas novelas
e não lembrar mais o que é que acontece quando você encontra um olhar que cabe perfeitamente no seu, sem tirar e nem pôr. aquela pessoa que parece recortada e perfeitamente moldada pra encaixar na sua vida, enquanto todo o resto fica desfocado. (amar, por outro lado, é quando você esquece que, se for parar pra pensar, absolutamente qualquer coisa se encaixa no nosso olhar... eu olho pro vazio e ele me é, mas eu não o amo.)
o amor acontece pelo olhar, pela fala, pelos sons, pelo toque, pelos momentos -pelos arrepiados). é o que dizem.
e vejo por aí as lindas histórias onde cegos, mudos, surdos, insensíveis e incapazes amam.
histórias onde bebês que nascem sem cérebro são vistos como minúsculos milagres.
histórias onde prostitutas tristes parem bebês sem cérebro e cantam pra eles dormirem. 
bebês que não sentem o mundo ao redor. mas sentem o amor. que é quase a mesma coisa.
é contraditório.
não amar é um paradoxo
mas que paradoxo lindo que é
se condenar e se perdoar todos os dias, transformar a metade de si em terças, quartas, e quintas partes, todas separadas por dias, meses e longos anos, até que a morte chegue e, finalmente, o não-amor encolhido dentro do nosso corpo encontre a paz que tanto procura. a metade que tanto esperou.
não amar é como baleias encalhadas na praia, chorosas, enormes e inofensivas. suicidas.
mas que baleias lindas que são
principalmente quando morrem
e explodem, liberando as toxinas, um acúmulo de porcarias, deixando na terra o cheiro das sereias que amou lá no fundo do mar. 
o que sobra é uma areia apodrecida, coberta de entranhas, sangue e plânctons. e um animal morto. inútil. e absolutamente fantástico.
não amar é
sempre explodir.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

sobre todas as coisas que eu deveria ter feito, mas não fiz

eu deveria ter lido tudo o que podia enquanto tinha tempo e não sabia
eu deveria ter aproveitado mais dos meus amigos quando eles ainda não tinham smartphones
eu deveria ter amigos que não têm smartphones
eu quase não tenho mais do que me lembrar
eu deveria ter olhado pro céu enquanto eu não achava isso uma grande besteira
porque o céu não muda de posição
e se eu olhar pra ele agora ou daqui a vinte anos, de qualquer forma não vou conseguir decorar a posição de cada estrela.
deveria ter mandado aquele trabalho pro inferno e reprovado de ano
porque eu sempre odiei matemática
e eu poderia dizer ao mundo que odeio matemática
porque o mundo ainda não me obrigava a ser um idiota adestrado
o mundo não. talvez, só a minha mãe.
eu não deveria ter apagado do meu mp3 aquela música melosa que eu só gostava do refrão e nunca parava pra escutar completamente. eu queria escutar de novo, mas não lembro o nome.
eu deveria ter dito mais nãos na minha vida
não para garotas que só chupam a minha alma
não para garotas que chupam tudo, menos a minha alma
mas ainda há coisas que eu posso evitar.
eu posso evitar fazer um pós-doutorado
eu posso evitar acordar daqui a 50 anos sem saber que eu existo
eu posso evitar acordar daqui a 40 anos sem saber o que fazer pra existir
eu posso evitar acordar daqui a 30 anos sem saber por que todo mundo existe, menos eu
eu posso evitar acordar daqui a 10 anos sem saber quem é que realmente existiu na minha vida
eu posso evitar acordar amanhã sem saber quando eu vou existir
acontecer
quando eu vou brotar
e me pôr.
me gerar
me parir.
eu deveria ter assistido mais filmes quando eu não me identificava tanto assim com todos os azares que acontecem com os protagonistas
quando eu não sabia que me identificava mais nas falas dos vilões
eu deveria ter comprado pelo menos um pássaro numa petshop e aberto a gaiola na frente do vendedor
porque naquele tempo eu não sabia que estava ajudando no tráfico de animais
eu contribuiria com a liberdade daquele único pássaro que morreria amassado nas patas de um gato dias depois
passarinhos mortos são as coisas mais tristes que podem aparecer na vida de alguém.
é tão triste que podia ser um elogio. você é tão poético quanto um passarinho morto. você é tão bonito quanto um passarinho morto. você é tão passarinho quanto um morto.
eu poderia ter comido mais churros e me olhado menos no espelho
poderia ter ficado esperando quando você me disse pra ir embora
eu poderia ter calado a boca e guardado mais segredos
desabafado menos. 
continuaria sofrendo só pra mim, entende? como os budistas
o sofrimento individual
o egoísmo edificante
dos budistas, ateus, protestantes e umbandistas. o sofrimento de si.
poderia entender que o amor é uma coisa bizarra
que eu nem vou falar muito aqui
porque amar é uma coisa que eu deveria ter feito, sim
mas eu fiz demais
e amor
eu fiz de menos.
poderia não ter rido de alguém que estivesse pior do que eu, porque nunca se sabe o dia de amanhã
eu, por exemplo. não sabia. infelizmente, eu não sabia.
se soubesse, não mudaria nada. mas como eu não sei, sempre tem uma coisinha ou outra que eu gostaria de mudar.
eu deveria ter amado o cobrador de ônibus que me deseja bom dia
eu deveria também ter amado as pessoas que seguram as minhas coisas quando não tem mais lugar pra mim
e dizer: ei, cara, eu tava me sentindo sozinho, mas você me basta. obrigado por segurar o meu peso.
porque isso realmente basta pra curar a solidão de alguém
eu deveria ter me declarado mais, mesmo com o risco de levar um chute
ido pra mais shows escondido, me ferrado mais
ter pedido menos desculpas. eu odeio pedir desculpas. abaixar a cabeça não é comigo e nunca foi.
desculpo porcaria nenhuma
porque a culpa é dessa legião de camisinhas estouradas que me rodeia
pessoas indesejadas
sonhos indesejados
traumas indesejados
e freud enlouqueceria agora.
eu deveria ter tido um desejo de criar uma escola nova onde ninguém fosse obrigado a fazer provas de literatura. (e uma faculdade onde ninguém precisaria falar em público)
porque eram um saco
mas eu só tinha o desejo de tirar notas boas
sem saber exatamente o motivo, mas de tirar notas boas e impressionar as pessoas que pagavam a mensalidade do melhor colégio da cidade
onde eu fui suspenso por beijar na boca no recreio.
sem entender uma vírgula de literatura. e sem entender porque o poema no drummond não poderia significar aquilo que eu sentia que significava. mas não tinha essa opção na prova. e eu nunca me importei, quando eu deveria ter me importado. 
eu passei no vestibular e não sei dizer eu te amo sem me importar com a resposta
eu deveria ter falado mais ao celular quando eu não sabia que falar ao celular seria uma das coisas mais raras do mundo
e não é nenhum vício em whatsapp
é porque eu não tenho pra quem ligar mesmo.
aquele alguém que eu gostava tanto, mas tanto, tanto mesmo, e eu briguei e não lembro o motivo
é no colo desse alguém que eu deveria ter deitado e chorado mais vezes
assim, mesmo sem ter pra que chorar
chorar como forma de dizer adeus. chora, que dói menos.
silêncio como forma de eternizar uma saudade
uma futura saudade
eu deveria ter um dívida enorme com aquelas pessoas que eu magoei por causa de orgulho
eu deveria, mas não devo.
eu deveria ter ido menos vezes ao zoológico
porque aquilo é desumano
ou melhor, é humano demais.
todas aquelas vidas encarceradas
diariamente assistidas
mantidas através de alimentos e exibição gratuita
deus deveria ter transformado a terra numa coisa mais original do que o inferno.
sobre as coisas que eu não deveria ter feito, mas fiz: 
sofrer
escrever
crer
ver
e só. 

quarta-feira, 19 de março de 2014

O tempo certo é o tempo da espera. Eu te adoro, eu te venero, eu te respiro, eu te vivo, eu te amo, eu não existo sem você. Eu não sou o que você não quer que eu seja. Sou submissa ao teu corpo. Sou o clichê que todo mundo não é, meu senhor. Eu não te esperei por alguns meses, meu senhor, minha senhora. Eu te esperei por segundos, durante todas as vidas que não gerei. E eu contei. O teu tempo eu teci nos meus dedos inchados, pra que nenhum segundo me fosse roubado e te fosse negado. Seu destino foi feito das minhas linhas coloridas. As linhas coloridas entrelaçadas que aprendi no livro de biologia. Alimentei o teu choro com o meu material genético e hoje a sua tristeza me arranca um fio da costela, amor. Quando tudo estava pronto, infinitos segundos depois, quando tudo estava medo, puramente medo, anestesias infinitas depois, senti meus ossos quebrados e meu grito sendo abafado pelo teu choro fino, tua reclamação por tudo aquilo que te dei. Seu choro foi a ingratidão mais linda que já escutei. Pedi perdão por ter te alimentado com minhas angústias, meus demônios interiores, meus medos, meus ressentimentos, minhas dores de menina que tinha tanto o que crescer. Te criei da lama, senhor, senhora. Te criei do lixo. Te criei do mundo e, quando vi você se afogando no oxigênio, vi que a única coisa que eu tinha o direito de te oferecer, eu não te ofereci: a vida. Mas você aprendeu sozinho. Você respirou sozinho, com um pouco de dor. Aquilo que te fez viver foi aquilo que eu não soube te dar. Eu te criei pra você me criar. Eu nasci ali. Aquilo que restava dentro da minha barriga gigantesca viraram vermes e ilusão quando você saiu do nosso esconderijo. Você, você, meu pequeno extraterrestre, te comprei mundos inteiros dentro de mim. Te apresentei ao que eu tinha de mais insignificante, te cobri daquilo que eu nem mesmo conhecia. Queria que um dia você me contasse das borboletas que abriguei no estômago, na adolescência, e nunca consegui expelir. E as cicatrizes? De que cor elas são? Minha alma, que gosto tem? Minha poesia ainda existe? Mas você esqueceu tudo fácil demais. Ficou pra si. Tudo o que eu sou, tudo o que me fez, ficou pra ti. Seu amor me arrombou as coxas e a fragilidade. Levaram você pra longe de mim. Acabou. O cheiro de sangue que saía de você ficava cada vez mais fraco. O fio da tesoura acabou com o segredo que nos uniu. E aquela cobra saindo de dentro das minhas entranhas nunca mais voltou a me picar, senhor. Nunca mais. Aquela coisa meio rosa, meio vermelha e meio branca chorava, chorava, chorava, chorava. Trouxeram você pra mim. Estranhos trouxeram o seu amor pra mim. E você finalmente parou de chorar quando encontrou encaixe no meu peito sozinho. Olhou pra mim e pediu proteção. Por baixo, um homem me costurava. Impediam você, meu anjo, meu senhor, de voltar pra casa. Não pude fazer nada quanto a isso. Fizeram com que brotasse um vácuo dentro de mim. As flores internas que cultivei ao longo de nove meses murcharam sem a sua presença. Por outro lado, as lágrimas nos meus olhos pegaram fogo ao encontrar os teus. Eu sorri o sorriso mais sofrido que pude sorrir. Você me pediu proteção, senhor, e eu vi que você era meu. E eu era tua. Pra sempre tua. Mas você talvez só tenha sido meu durante aquele momento. Naquele momento em que te conheci e te fiz sugar mais do que o líquido branco que jorra de baleias, hipopótamos, ursos polares, girafas, cachorras, gatas e ornitorrincos estranhos, mas pus na sua boca também uma dose de veneno pra que as suas entranhas não estranhassem o meu sobrenome. Naquele momento em que toquei o seu peito e senti o seu coração bater sem a ajuda de aparelhos, eu percebi que esperei o tempo certo pra viver. O tempo certo é sempre a espera. Eu esperei, nas noites cruéis em que meu coração foi arrancado, despedaçado, torturado, triturado, amordaçado, sequestrado e levado pra longe de mim, que o seu coração era a coisa de mais preciosa que eu poderia ter. Eu esperei a minha vida inteira pra que alguém me amasse como você me ama. Que alguém precisasse de mim como você precisa. No desespero em que quis morrer, amanheci viva no outro dia sabendo: alguém vai ter que prestar contas disso. Seu coração era o renascimento do meu. Eu arrancaria ele do seu peito e comeria ali mesmo, enquanto ainda estava fresco. Ingênuo, livre, puro. Mas, senhor, não tive permissão. Você, senhor, era mais do que um corpo cheio do meu DNA. Eu achava que era amor. Mas era fome. Era carne. Era cheiro. Era tato. Era instinto. Você me abocanhava como se fosse beber tudo o que eu sou em poucos instantes. E te amei ainda mais por causa disso. Nunca ninguém teve tanta pressa em acabar comigo. Senti pena de você. Tão indefeso, dependendo das manias de uma mulher e de um homem ainda não citado. Dependendo da minha boa vontade pra não te deixar morrer. Mas eu nunca te deixei morrer. Eu te peço desculpas, senhor, porque te quis fraco durante boa parte da minha vida. Quis seus dentes de leite, sua altura estagnada, quis sua hipotermia e quis que os seus ossos atrofiassem por falta de luz solar. Quis que você fosse minúsculo pra que só meus medos acostumados com os teus detalhes fossem capazes de te enxergar. Proteção. Carinho. Eu te quis faminto, porque teu amor, já disse, era instinto. Quando você chorava eu te colocava no colo na esperança de que você se lembrasse de que só a minha carne te acalma. Mas você nunca lembrou. E me deixou noites inteiras em pé de guerra com o mercúrio enquanto a sua testa ardia depois de uma injeção. Eu te quis impotente pra que eu pudesse te cuidar, te sofrer, te doer. Há quem diga que o amor é benevolente? Não, meu senhor. Não é. É uma das coisas mais egoístas que eu conheço, e só conhece o amor quem é capaz de matá-lo. Mas você germinou. Eu te reguei com a minha insônia e com as minhas renúncias. Eu te criei com a minha espera. A minha eterna espera. A minha fuga de mim. Um dia você me contou que achava o seu nariz feio. Olhou bem pra minha cara e fez uma careta. Eu juro que encarava uma rinoplastia depois. Mas ali não. Ali você tinha que me aceitar. Ali eu vi no seu corpo crescido e nas suas pernas erguidas o meu suor e a minha conta enorme com o plano de saúde. Eu não te conheci durante os anos em que mais te esperei. E pra mim, você era perfeito. Desejei cegar os seus olhos pra que você não visse como eu era falha. Como meu nariz era igual ao seu. Desejei cegar os olhos em que tanto me vi. Eu fui seu Deus. E você, senhor, acabara de descobrir que papai noel, às vezes, pode ser um pouco diferente. Agora eu era uma mulher. Uma mulher arregaçada. Uma mulher costurada. Uma mulher que te impediu de sair de casa em dias de chuva. Uma mulher que te impediu de usar certas roupas. Uma menina que brincava com seus bonecos. Uma senhora que divida a existência entre a solidão e a espera: já passa das três da manhã e você ainda não chegou. Você não me liga mais, senhor. Você não diz mais que me ama. Eu ainda sou a sua razão de viver, não sou? As minhas flores internas agora choram de angústia. Eu esperei tanto por você, senhor. Eu esperei tanto pra que alguém, um dia, dissesse que meu sofrimento valeu a pena. Senhor, a sua existência compensou as tempestades. Se possível, quebre meus ossos de novo. Me segue de novo. Me arregace. Me esburaque. Me sugue. Eu espero novamente todos os segundos que esperei até que você chegasse e chorasse e me amasse. Eu passo a mão na minha barriga e agora ela está flácida e sem curvas. O buraco dentro do meu peito ainda encaixa a sua cabeça. Você cabe em mim. Você, senhor, tão crescido, tão dono de si, tão sábio, tão vivido, tão injustiçado, tão açoitado pela vida, você cabe em mim. Cinco da manhã e eu recebo um telefonema. Seu carro bateu num poste. Desmaiei. Eu nunca te permiti morrer. Eu nunca deixei. Volta pra casa mais cedo hoje, que eu te perdoo por todos os vícios, por todos os males, por todos os palavrões, por todos os receios, por todas as negações, por todas as vergonhas, por todas as fraldas sujas, por todos os cigarros e latas de cerveja, todas as notas baixas, por todas as minhas tripas remendadas, por todos os meus sonhos destruídos, todas os meus suicídios fracassados, eu te perdoo. Mas volta, volta pra mim. Eu nunca te deixei com frio, com fome ou com sede. Eu nunca te permiti morrer. Volta, que eu ainda estou aqui. Esperando você ligar e me dizer que está tudo bem. O tempo certo, meu amor, é sempre a espera.
“Sua velha chata, cretina, eu odeio você. Eu odeio você, mamãe, eu odeio você.”