quinta-feira, 2 de abril de 2015

primeiramente, isto não é poético. isso não é verdadeiro. isso não é literário. isso não tem qualidade. isso é um vômito, um isso no lugar de isto. isso aqui, é apenas isso. isso não é escrita, isso é apenas isso. 
isso que eu sinto e não consigo entender. eu sou o que há de mais profundo no fingimento. todas as coisas que giram ao meu redor. isso que é tentar estudar o que você é, isso que é tentar fazer uma autoanálise superficial, isso é saber que você vai explodir a qualquer minuto.
é ter dúvidas sobre já ter explodido. é querer explodir e acabar com tudo. com o orgulho, com os espinhos, com as dores nos pés que me lembram noites de bebedeira vazias, que me lembram os dias de sol que nunca vi. os dias de sol, os almoços de domingos. hoje, isso não passa de uma mentira, uma mentira.
eu não sou um escritor. eu não sou a merda de um poeta. eu não sou um doente, um alcoolatra, um sofrido, um medíocre. eu sou alguém. alguém triste, alguém que não está triste, alguém que é triste.
é triste o tempo todo por não conseguir explodir. paranoico.
alguém que se esconde, se atravessa, se avessa. alguém que eu não conheço e me vê dormindo
uma mulher, uma mulher, verdadeiramente mulher, com seu sangue escorrendo nas pernas, que me olha agoniada, que me pede auxílio, que tem o corpo marcado, o corpo marcado, o corpo marcado, mas quem não tem? eu mesmo não consigo não me marcar
a dor inscrita é a dor sentida, que não flutua no ar como um veneno, como um salve-se quem puder, como um suporte, é a dor que eu consigo suportar
a dor que eu não conheço
a dor que me olha, escondida dentro dos cadernos de três anos atrás, escondida dentro de um menino e inscrito dentro de um homem. o homem que eu não sou, mas sinto orgulho de ser
porque tudo é mentira. por que não me criar? por que não ser
triste idiota fechado frio antissocial hipocondríaco mal humorado mal amado mal representado mal informado estúpido execrável
por que não ser
por que não sou? por que nunca fui? 
eu deveria ter ido quando tive chance
deem-me uma chance.
tudo, tudo, tudo, tudo na minha vida foi e é uma mentira
um sentimento de solidão que não consta nas pesquisas, na ciência, que não consta em poço algum
que não consta no céu, uma solidão que não foi inventada por nenhum deus no sétimo dia, uma solidão que me criou, me embalou e disse: eu serei a mulher demoníaca no fundo o quarto te observando
com curvas, sexy, camisola branca, cabelo desgrenhado, eu sou essa solidão, essa solidão com cheiro de cigarro e álcool, eu sou essa mulher insana e incrivelmente sexy que quer foder (primeiramente, isso não é poético) com você
essa mentira, essa merda de solidão de mentira
eu serei essa solidão
que cresce em cima dos meus ombros e que diz
que sou bonito mesmo chorando
diz que a vida não para
alguém precisa dizer que a vida não parou pra mim
antes ser atropelado, meu bem, do que a vida ter parado
eu sou louco? sou insano? sou vivo? estou bem, a terra gira e as lágrimas continuam caindo, ao contrário dos oceanos
e pra todos os amores que jurei amor
tudo na minha vida foi uma mentira, tudo, tudo, tudo, tudo
se você não me ama, finja
os dois lugares na cama ocupados sempre me incomodou. a mulher com sangue nas pernas encostada na parede continua me encarando e dizendo: querido, goze e saiba: você é só
você é sempre só. eu não tenho a real dimensão da minha solidão, mas ela se parece com o amor. posso ter confundido tudo. porque tudo é a merda de uma mentira, que mal faz pensar ser feliz?
que mal faz, que mal faz. 
que mal faz eu me acalentar no peito das estrelas, do etéreo e da metafísica. que mal faz eu sentir um pouco de calor e um pouco de carinho, um pouco de estabilidade e de afeto, um pouco de mãos que me apertem o pescoço
se você não me ama finja. pra mim, o paraíso, ele não existe. então, exista....
pra todos os amores que amei, pra todas as costas que eu beijei... eu lamento, mas não amei, eu lamento, mas imaginei que eu beijasse suas faces
imaginei que vocês me amassem, mas não
algo me diz que não. algo está dizendo isso agora mesmo. algo está recitando na minha cabeça cada palavra que eu tenho que escrever e engolir como cianureto. 
sinto muito por nada disso fazer sentido. 
sinto muito por chorar depois de cada tentativa, tentativa, tentativa, tentativa de amar 
eu me basto e eu não me completo, o físico é um ritual. a vida, ela é uma tradição.
um impulso de morte constante. um impulso de se sentir amado por alguns instantes.
por se sentir usado, útil pra alguma coisa 
posso consertar você se eu te quebrar? você é apenas uma piada
posso rir de você?
posso beber você?
a ressaca, baby, a mulher na parede disse: você não precisa amar quando está bêbado, você chora e sente a dimensão do que é ser humano. eu sou isso. eu não posso amar ninguém.eu não posso ser o que você quer, já que não sou o que eu quero.
eu sinto muito por isso não fazer sentido. algo me diz que eu vou ser sempre uma reprovação. 
eu não sou a merda de um escritor. e devia parar de agir como se fosse. 
eu não consigo amar. há uma parede, um bloqueio, uma mentira, algo que me mantém vivo e respirando.
isso. isso é vazio. 
vazio vazio vazio vazio vazio

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Se ontem amei alguém na vida, hoje tirei do túmulo uma espécie de amor.
Se ontem amei alguém com cabelos e cheiros, unhas e sexo, lábios e beijos, olhos e sonhos, hoje descobri que o amor é feio e fede como um cadáver.
Não há ainda nesse mundo necrofilia que faça o que amei voltar a ser o que amo.
E por mais que eu chore, por mais eu peça, por mais que eu lamente por alguma coisa parecida com saudade, por mais que eu saiba que amei, sim, alguém na vida, eu jamais, de maneira alguma, diria que ainda amo alguma coisa na vida.
O amor sugere que eu ame
suas vísceras,
seus exames de fezes,
suas menstruações,
seu café açucarado,
suas doenças,
suas crises,
seus ossos,
seus fracassos,
seus miolos estourados,
seus bebês que jamais nasceram e apodrecem no seu útero,
seus membros engordurados,
suas dores de cabeça,
seu passado,
sua morte.
O amor sugere que eu ame tudo isso sozinho.
Fica em mim a vontade de invadir o cemitério, roubar o seu corpo e colocá-lo pra dormir no meu colo, enquanto seus olhos que já foram poesia reconquistam a vida através dos vermes que saem deles.
Hoje eu não amo, mas amei, sei que amei.
Mas se o amor é isso, a vida não é, a vida é crime, é pecado e, mais do que tudo, é sanidade.
O amor não espera nem Deus e nem justiça, e muito menos eu.
Se ontem amei alguém na vida,
hoje eu lavo as minhas mãos com sabonete antisséptico e álcool em gel.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

É, na verdade, um medo inexplicável do futuro. Um medo, inclusive, irracional, de me encontrar daqui a cinquenta anos preocupado com a bolsa de valores, com as contas, com a vida em si, pura e simples, da forma mais difícil de se engolir assim como um bom litro de vodca, preocupado com o ato de me manter sobrevivente num mundo concreto e de concreto. Nos meus tempos de choro liberto, eu acreditava que ser adulto era não mais ter tempo pra sofrer. Agora, cultivando não tantas flores quanto olheiras e adquirindo aos poucos um vício por páginas de humor barato e novelas, eu vejo que o medo da solidão é o pior sofrimento que alguém pode amadurecer ao longo dos anos. As velas no bolo avisaram que a natureza quase indestrutível do homem é o fato, muito mais do que o ato, de se fazer constante em dor. Crescer é resolver as noites de insônia com um remédio pra dormir, ter a carência apagada com um sopro de trabalho, ir ao psiquiatra ou psicólogo falar mal dos seus amigos, colocar o presente de dia dos namorados nas contas do fim do mês. Crescer é tapar os buracos de uma estrada longa, cujo destino eu desconheço, mas sei que não me levará a lugar nenhum e que, provavelmente, eu já devo ter passado pelo fim sem perceber, porque tudo se resume à minha falta de tempo em perceber as coisas. Mas os buracos continuam lá, mesmo tapados. O meu medo é acordar daqui a poucos anos e não lembrar mais que estão tapados. O que é tão bonito e tão assustador em amadurecer não é começar a sofrer por coisas ditas reais e aceitáveis, e sim entender o amor (ou a falta dele) como uma coisa irreal e inaceitável e, mesmo assim, sofrer por ele. Me imaginar daqui a vinte e cinco anos sentado numa praça de alimentação sozinho, aproveitando o horário de almoço, enquanto deixo de existir lentamente, é quase um pesadelo. Hoje, sentar numa praça de alimentação sozinho, aproveitando o horário de almoço, enquanto deixo de existir lentamente, é quase um costume. Hoje, coincidentemente, já não sei mais pra que chorar. Daqui a vinte e cinco anos, vou sentar em frente à televisão e chorar por aquilo que não sei chorar agora. Vou sofrer escondido no meu apartamento de dois quartos, um banheiro e uma cozinha mal arrumada, vou sofrer escondido quando dormir do outro lado da minha cama de casal só pra deixá-lo quente também e vou sofrer escondido quando olhar os porta-retratos em cima da cômoda e não reconhecer o rosto de ninguém além do meu. Vou esquecer que meus buracos estão tapados cada vez que um colega de trabalho estapear as minhas costas e dizer que estou um pouco abatido, mas que amanhã é outro dia. O amanhã ainda existe e amanhã é sempre um atraso.

sábado, 3 de janeiro de 2015

uma vez, alguém me perguntou se eu não cansava de ser sozinho. é espantoso como as pessoas te esbofeteiam simplesmente pelo fato de se importarem com algo mais exposto que a sua superficialidade atraente. expliquei ao mundo que eu gostava de ser o que eu sou. inclusive, expliquei milhares de vezes tentando me convencer. parei pra pensar no que a expressão "gostar de ser o que é" significava, além, claro, do clichê óbvio e açucarado, ideal pra quando alguma coisa implícito no seu sorriso começa a desmoronar. gostar de ser o que é, pra mim, é se auto satisfazer, numa espécie de masturbação sentimental infinita. a ideia não é muito agradável, claro, mas os hormônios da solidão deixam claro que eu me satisfaço com o mínimo de coisa que não seja propriamente minha. é, pior, além de masturbar os seus sentimentos, você ainda dá uma de cafetão do cérebro alheio. me satisfaço escutando música de terceiros, lendo livros de terceiro, apreciando arte de terceiros, vendo filmes de terceiro, comendo comidas preparadas por terceiros, olhando as estrelas de terceiros, quartos e quintos amantes, amando terceiros. ser só é me apaixonar o tempo inteiro por tudo o que não me pertence, desde as garotas que pegam o mesmo ônibus que eu até os olhos claros de alguém que passa na rua. ser só é se apaixonar por sardas, pintas, rugas, estrias, fios de cabelo branco que nascem em pessoas ainda jovens, sinais, gestos, boca descascada, suor. qualquer coisa que pode ser de qualquer um. eu gosto de ser sozinho, na maioria das vezes. amar de longe é uma companhia sufocada e solidária. mas a gente sabe que dar prazer a si mesmo nem sempre é o bastante. prazer, aliás, nem sempre é o bastante. curtir a minha companhia ofegante e cardíaca nem sempre é o bastante. uma pequena parcela de mim ainda quer decorar a cara de alguém com memórias, desencontros, angústia, amor e coisa do tipo. é fácil, na teoria. chega um certo estágio da solidão, quando ela, infelizmente, vira autossuficiência, que passamos a perceber que a nossa alma age como uma enorme máquina de lavar. você não sabe mais onde é que começa e onde é que termina. tudo é reciclável e reaproveitável. as feridas cicatrizam tão depressa que não há tempo de saber o que nos feriu e, então, não há como esquecer. as lágrimas funcionam como o ácido do nosso estômago quando as ingerimos. não existe meio termo, é só uma reta sem fim. então, nossa alma começa a ficar escura e passar por uma espécie de blackout. ser só é admitir que tudo o que você procura nos outros está exatamente em você, de forma tão explícita que chega quase a ser pornográfico. o que dá medo, porém, é voltar os olhos pra si e descobrir o medo profundo e sombrio que você sente de morrer sozinho, a angústia de nunca se encaixar, o orgulho, que você alimentou durante todos esses anos olhando as dores dos outros, pensando que jamais se repetiria da mesma maneira contigo, justamente porque você sabe que a única agressão é a que você se provoca, pequeno e acoado, medroso, faminto... o medo de olhar pra si e descobrir que não gostamos tanto assim de ser o que somos. amar a solidão é odiar profundamente o fato de sermos sempre sozinhos.

domingo, 28 de dezembro de 2014

Quantas vezes eu desejei alguém com braços suficientemente grandes pra me segurar com força e dizer que a gente pode ser amado por cada pedacinho vivo nesse planeta. A gente pode ser amado pelas formigas que evitamos pisar quando somos crianças e nosso sentimento de empatia é maior que a nossa despreocupação, podemos ser amados pelos cachorros que fazemos carinho ou alimentamos, podemos ser amados, inclusive, pelos refrões acústicos das músicas que mais repetimos, mas não é bem assim que acontece, certo? Minha mãe, que deveria ter os maiores braços do mundo, mas não tinha, disse uma vez que estava tudo bem. Que eu ia despertar o amor de alguém mais cedo ou mais tarde, que eu era uma boa pessoa, interessante, bonita, que eu ia me casar e ser extremamente feliz com a pessoa que escolhi pra mim, com vários filhos que herdariam a minha cara e um bom emprego, porque sempre fui um rapaz inteligente e esforçado. Mamãe dizia que meu sorriso era lindo e que eu deveria mostrá-lo mais. Mas não é bem assim que acontece. O tempo fez com que eu me aproximasse de mais pessoas e fez com que eu sobrevivesse até o ano de 2014, era da selfie e da ostentação da felicidade. Eu deveria ter aproveitado mais daquele jovem rapaz gorducho e de nariz redondo que, de tanto fazer força pra manter os lábios cerrados com medo de dizer alguma bobagem, acabou com o sorriso meio torto. Eu não me importava tanto com as coisas ao meu redor. Eu não entendia todas aquelas piadas e tanta desaprovação se pizza era uma coisa tão gostosa, se ficar calado o tempo inteiro era uma coisa que deixava todo mundo tão calmo. Não podia ser uma coisa ruim, que levasse junto tanta dor. mas hoje, eu entendo.
Entendo que quando as pessoas saem pras festas e me levam junto, elas querem que eu me divirta embebido pelo álcool. No fundo, elas querem que eu seja diferente. Ainda querem. Elas querem sempre que eu seja um pouco mais diferente e distante de ser eu. Todas as pessoas que me amam: elas amam a minha mudança. amam a parte de mim que não se esconde no banheiro pra chorar, que não escreve essas besteiras, que não se importa com os problemas psicológicos dos outros, que não tem medo das garotas e finge que superou só porque beijou uma garota que não lembra mais que eu existo ou foi pra cama com algumas pessoas que eu gostaria que nunca tivessem existido. Eles amam a parcela de mim que ama a mãe o tempo inteiro, não só nos momentos em que é conveniente, eles amam a parte de mim que não reclama da carência das pessoas porque é exatamente a carência que carrega nas costas a maior parcela da vida e sabe o quanto isso é desnecessário, alguém que não se ressentia toda vez que era o último a ser escolhido na educação física. E por mais amigos que eu tenha, por mais que as pessoas que mais se importam comigo estejam a apenas passos de distância de mim, eu não me sinto suficientemente protegido. Eu gostaria de diminuir ao ponto de ser apenas uma mísera hemácia do meu próprio corpo. Eu sou sempre um entrave na vida de quem quer que seja porque eu sou um entrave na minha própria vida, e quem quer que seja que se aproxime de mim, faz parte da minha vida. Eu gostaria de não escrever pra mim as coisas que eu deveria falar pra um psiquiatra que, provavelmente, me entupiria de remédios por dizer que eu sou depressivo demais pra minha idade. Eu simplesmente não me importo mais, porque amo a parcela de mim que não costumo ser.
Amo o jeito como eu faço piada de tudo que está ao meu redor, amo o fato de me reconhecer em bandas que ninguém conhece, amo quando consigo ser irônico, sarcástico, cruel e ter uma legião de fãs por causa disso. Gosto quando esnobo o amor dos outros porque vejo a felicidade alheia como num daqueles espelhos de circo: completamente distorcida e engraçada.
(é engraçado como duas pessoas que definitivamente não se cruzaram na maternidade, se percebem e se reconhecem em meio à fúria de sabe-se lá o que. É também hilário como eu não consigo entender a complexidade de um envolvimento dessas proporções pequenas. É super divertido como eu não tenho ninguém pra ligar no fim do dia e acho um porre quando as pessoas ligam pras outras no fim do dia porque eu não me importo com o dia de ninguém além do meu, que é uma porcaria na grande maioria das vezes. Espera... é engraçado?)
Enfim. Estou alheio a todo mundo quase sempre. Não me aborrece na maior parte do tempo porque está sempre tudo bem. Está sempre tudo ok comigo, eu tenho internet rápida, tenho livros legais, tenho um filósofo pessimista preferido pra idolatrar, um autor bêbado na estante que me faz ter inveja por não conseguir fazer com um papel em branco o que ele conseguia fazer com o próprio coração (salve, buk), está tudo bem comigo, mas não está nada bem dentro de mim. Nunca está, nunca esteve.
Mas vai ficar, quando eu encontrar alguém com braços grandes o suficiente que me diga o que eu mais quero ouvir na minha vida:
jovenzinho, você já cresceu. Emagreceu, ficou mais bonito, realmente, mesmo que não se sinta assim, quebrou a cara, fez novas amizades, quebrou a cara novamente, fez novas amizades novamente. e, adivinhe? Elas também vão te machucar, mas elas te amam. Elas amam a parte de você que você conhece mais do que o resto de si, então não se preocupe. quando você se sentir triste, jovenzinho, pergunte à essas pessoas qual a sua melhor face. Ou então, faça uma piada. Tudo se resolve com uma boa e ácida piada. Sim, jovenzinho, você cresceu, mas não é mais certo que você construa uma linda e fantástica família feliz, porque nem você sabe o que é isso. Não é mais certo que você vá se casar, porque ninguém é obrigado a lidar com você o resto da vida, e você sabe que não aguentaria um divórcio sem se tornar um alcoólico nojento. Você é realmente uma boa pessoa, mas isso não importa pra ninguém além dos mendigos que você ofereceu esmola. Até porque, a inveja e o desprezo que você sente de todo mundo que consegue ser mais interessante e simpático que você não é uma coisa muito agradável de ver daqui, partindo do ponto de vista da sua consciência. Seu bonito e selvagem cabelo irá cair algum dia e você parecerá menos interessante do que já é, mas está tudo bem. No futuro, a internet será ainda mais rápida. você desenvolverá um transtorno do pânico na meia idade e ficará em casa apodrecendo seus olhos e seus ouvidos com o silêncio e a tristeza do apartamento minúsculo e mal cuidado, mas ninguém vai se importar. Eu sei o quanto você gosta de ficar em casa, jovenzinho, e eu sei o quanto te incomoda ver que as pessoas se incomodam com você. As pessoas que você ama mais do que a sua própria família, e sabe que isso é um erro, porque você é egoísta e nunca consegue aprender com os próprios erros, mas está tudo bem. Eu sei que seus amigos são tudo pra você. Sei o quanto te incomoda que eles te chamem de chato, insuportável, gordo (você gosta mais de comida do que de gente, assumamos), antipático e estraga-festas, mesmo quando você só quer um abraço, mesmo quando você quer sumir do planeta, ou quando você quer que o planeta inteiro te abrace, como alguma coisa imensa e sem calor que te acolhesse maternalmente. Não pense que é por maldade sua, jovenzinho, mas eu sei que você cresceu ouvindo quem você era, como um CD arranhado. As pessoas não mudaram o disco porque você não mudou e isso te assusta, jovenzinho solitário e gorducho do nariz redondo. Eu sei que você ainda é o último a ser escolhido e isso faz você experimentar o gosto da autopiedade. Eu sei e você sabe mais do que ninguém que essas pessoas vão te tratar apenas como o amigo que pode ficar sem beber e dar caronas. Ah, qual é, jovenzinho? Você não é o amigo mais divertido e animado desse mundo, nós sabemos. Não venha dizer que eu, criatura dos braços enormes, te decepcionei. Nós sabemos também que você vai ficar contente com qualquer coisa que eles façam por você, mas nunca será o suficiente. Você vai sentir falta das mensagens de aniversário e de feliz natal das pessoas que já esqueceram da sua existência, e você sabe que seus relacionamentos daqui pra frente serão sempre superficiais e imaturos, o que vai rolar é no máximo um sexo selvagem e depois você dá o número errado esperando que ela digite o número certo. Não acredite tanto no que a sua voz interior diz, jovenzinho. É impossível ser feliz sozinho, mas é impossível amar sozinho também. É?

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Boa noite.

A cidade tá um forno nos últimos meses. E o pior é que a única coisa que o ar-condicionado faz é molhar as minhas paredes. Eu não arrumei coragem ainda nem pra tomar um banho. Até entrei no banheiro. Olhei no espelho, vi as olheiras enormes escondidas atrás de um óculos velho e desisti, só molhei mesmo o rosto e pronto. Eu poderia ao menos me dar ao trabalho de saber que dia da semana é hoje, mas não. Consequência do recesso… Desliguei da tomada tudo aquilo que fosse além das necessidades biológicas. E eu acho que vou sobreviver sem olhar pro calendário. Eu ainda me pergunto qual é o critério que os cientistas usam pra saber se um dia terminou ou não, porque pra mim parece sempre tudo a mesma coisa. As horas são superficiais demais. Inclusive, imagino o relógio como um escultor que, aos poucos, vai esculpindo no meu corpo as marcas dele. O tic-tac que compõe as minhas rugas chega a ser insuportável. O apartamento parece ainda menor quando sou obrigado a reparar nele. Se não fosse pelo dinheiro, eu já teria largado a porcaria do meu trabalho e me mudado pra uma cidade menor, onde o concreto não me isolasse de uma maneira tão perfeita que faz até com que eu pareça parte dele. Às vezes, sinto os pássaros se suicidando na minha cara e me sinto o próprio arranha-céu que, inclusive, é meu vizinho. Mas eu não posso largar nada agora. Estou naquela idade entre nascer e morrer que o futuro dá medo. Ainda lembro de quando decidi morar sozinho… Geladeira, fogão, cama, mesa e algo que se parecesse com a decoração de um jovem-adulto-trabalhador-moderno-independente, mas a primeira coisa que eu comprei foi a televisão. A necessidade de escutar outras vozes, sabe? De ver o mundo. E ela continua ali ligada, sem ter ninguém pra ouvir. Eu poderia criar mil e uma metáforas com o fato de ninguém se importar com nada do que “a televisão diz”, mas vocês já sabem. A prioridade agora é só não enlouquecer de silêncio mesmo. Às vezes, funciona. A pobre da jornalista que trabalha no Jornal Nacional é a melhor psicóloga que existe. E nem é reconhecida por isso. E eu nem mesmo sei como ela se chama, porque faz bem uns três meses que eu não leio as letras miúdas que aparecem embaixo na tela. Mas escutar a voz dela é a melhor parte do meu dia. Certa vez, comentei com uma pessoa que eu não lembro mais quem é sobre o fato me sentir sozinho. Solidão assusta mais que o câncer, pode ter certeza disso. As pessoas se sentem culpadas por algo que foge da responsabilidade delas. Culpadas por existirem e não serem suficientemente grandes e importantes para existirem, de fato, na vida de todo mundo. Culpadas pelo papo delas não ser tão legal assim quanto elas pensam, culpadas por estarem dormindo nas madrugadas em que bêbados e prostitutas choram suas dores, culpadas por terem medo de bêbados e nojo de prostitutas, e culpadas por eu não ser nem um bêbado e muito menos uma prostituta, e mesmo assim precisar gastar saliva ao invés de lágrimas pra pedir socorro. Ele olhou bem no fundo dos meus olhos e eu juro que se ele pudesse e se fosse um procedimento racional, teria ligado pra polícia. Primeiro, imagino que ele deva ter sentido raiva, ou uma espécie de indignação profunda por eu ter tocado nesse assunto. Depois, provavelmente, pena. O último estágio e talvez o que eu mais goste é a empatia. Aí ele me recomendou que eu comprasse um cachorro. E contou também a história de uma amiga dele que se sentia assim, “exatamente como eu”, e que melhorou bastante após fazer terapia e participar de um grupo de oração. Eu disse “obrigado, mas eu vou ficar bem” e fui embora. Isso deve ter acontecido há uns dois meses, mais ou menos. Engraçado é que um dia desses, quando meu carro foi pra revisão e eu estava me sentindo a pior das pessoas por ter que voltar de ônibus pra casa (não pelo fato de usar o transporte público, mas sim pelo fato do cobrador não ter me dado bom dia e eu ter sentido falta disso, falta de inclusive ignorar o bom dia dele), vi um cachorro pequeno, preto e branco, quase sendo atropelado. Claramente, não era um cachorro de rua. Assobiei, bati palmas, chamei de todas as maneiras, mas ele não deu a mínima. Quando ele estava quase vindo, um carro passou de raspão e ele se assustou, correu, e ficou esperando no portão do vizinho da frente, como se soubesse que ali estaria seguro. Fui até lá e segurei ele no colo. No mesmo instante, a senhora abriu o portão e quase agarrou o meu pescoço de tanta felicidade. Ela disse que mal podia acreditar que a Princesa tinha voltado pra casa. Me agradeceu, disse que eu era uma boa pessoa e disse pra Princesa nunca mais aprontar uma dessas com ela de novo. Eu sei muita pouca coisa dessa mulher, mas sei que é casada e mora com os três filhos. Um dos filhos dela é psicótico e acabou fugindo de casa, mas voltou recentemente. Olhei pra cadela encolhida nos braços dela, lembrei do que o cara do escritório falou e senti vontade de dizer que “sei exatamente como ela se sente”. Uma das grandes queixas de quem mora numa grande metrópole é não conhecer as pessoas que estão ao redor. Mas o mais assustador é que a gente conhece. A gente conhece quem a gente não sabe nem o nome, e a gente conhece quem a gente não sabe nem que existe. Isso é mais assustador que câncer. Eu só acho que todo mundo deveria ser obrigado por lei a ter um cachorro. Ou uma televisão.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Mamãe disse que era normal.

Eu penso até que fui uma criança normal. Tirando o fato de que eu adorava prender mosquitos dentro de um vidro e colecionar os cadáveres, eu acho que era absolutamente normal. Um dia, eu tava vendo a novela com a mamãe e vi um casal se beijando. Achei aquilo um negócio nojento… Mamãe ignorou, não esboçou nenhuma reação, então deduzi que adultos estavam acostumados a serem nojentos, fosse o sentido que fosse. É difícil dizer a exata fase em que você começa a sentir atração física por alguém, quando você passa temer o “parabéns pra você” porque sabe que depois vem o “com quem será”, quando você começa a matar aula pra brincar de verdade ou desafio, quando você começa a dizer que “gosta” de alguém… Simplesmente acontece e quando você menos imagina também saí por aí achando as nojeiras da vida a coisa mais normal do mundo. Foi assim comigo também. Ao contrário do que muita gente pensa, eu não nasci já programado pra amar as pessoas ao meu redor. Já perto do ensino médio, quando eu achava que nunca ia gostar de ninguém, recebi minha primeira declaração. Foi um choque. Aí achei que as coisas funcionavam meio que assim. Você era escolhido e, num passe de mágica, passava a escolher também. Todo mundo dizia que éramos perfeitos juntos. Eu me perguntava o motivo. Mas o que é que eu poderia esperar? Mamãe me disse que quando os adultos se amam, os adultos se beijam, constroem família, esse tipo de coisa. Não me pareceu muito interessante, mas todo mundo da minha sala já estava na fase de comprar balas de menta e gastar dinheiro com brilhos labiais de sabores diferentes. Eu não tinha nada a perder. Um dia, num passeio da escola, dei meu primeiro beijo. O encontro dos lábios foi mais um esbarrão, e minha língua se recusava a sair do canto dela. Mais do que normal, eu presumo. Gostar de alguém é se esbarrar na estampas das blusas que achamos infantis demais, nos brinquedos jogados no chão, na programação da TV que não é mais a mesma. No ano seguinte, saí do colégio. Conheci o Thiago. Acho que eu podia dizer que ele era meu melhor amigo. Thiago tinha uns olhos verdes tão bonitos que eu não conseguia parar de olhar pra ele. Mas eu não gostava de Thiago, não, eu nunca gostei. Ele era meu melhor amigo de verdade. Mas quando ele falava de garotas, eu me incomodava. “Gostar” parecia ser tão simples pro Thiago, tão bom. E eu me incomodava com aqueles olhos verdes que me puxavam bem pro fundo do poço. Uma vez, eu vi no espelho que meu corpo estava mudando. Eu comecei a perceber que minha voz tinha mudado. E o coração eu nunca entendi porque continuava tão pequeno, tão miúdo, dentro de um corpo tão grande. Quase era possível que ele se perdesse lá dentro. Eu era uma criatura esquisita. Thiago dizia que eu era uma criatura esquisita. Falava sempre que eu precisava encontrar alguém pra mim… Em todas as festas que íamos juntos, ele tentava me arrumar alguém. Até que, aos 13 anos, no nosso primeiro porre, ele me perguntou que tipo de pessoa eu gostava. Eu falei que seria fácil se apaixonar por alguém cujos olhos fossem tão lindos quanto os dele. Thiago foi embora e nunca mais falou comigo. Alguns amigos em comum disseram que o Thiago tava com medo de eu estar gostando dele e não queria me magoar, só não tava afim. Foi uma perda difícil de superar. Cheguei em cada e vi no espelho que meus olhos eram lindos, minha boca era linda, meus cabelos, meu tom de pele. E eu não sabia o que merda estava acontecendo comigo. Em um dos passeios da escola, conheci o Pablo. Ele era uma série mais velho do que eu, e eu só conseguia pensar que ele tinha os olhos mais lindos até do que o otário do Thiago. Eu percebia cada movimento dele tocando a bola no campo de futebol, decorei cada gota de suor que ficava em sua camisa, cada queda que eu me preocupava. Pablo e eu ficamos mais próximos do que nunca. E eu não sabia o que merda estava acontecendo comigo. Então, era isso? Gostar de alguém, era isso? E porque “isso” estava acontecendo justamente comigo? Por que com Pablo? Por que tinha que ser com ele? A gente não escolhe quem é que vai gostar. É normal. Foi o que minha mãe me disse quando eu contei pra ela que estava gostando de um cara que eu não poderia gostar. Mamãe me abraçou e disse que eu estava finalmente crescendo. Quando nossos horários eram compatíveis, Pablo arrumava um jeito de me ver. Me arrepiei pela primeira vez quando ele se aproximou de mim e pude sentir de perto o frescor do chiclete de hortelã que ele sempre levava na bolsa. Por que aquilo estava acontecendo comigo? Agora eu entendia cada palavra que o Thiago falava sobre a namoradinha dele. Eu entendia as tremedeiras, a falta de ar, a sensação de que o chão pode desabar a qualquer momento, os choques térmicos… Pablo me contava dos livros que lia, dos filmes que via, das viagens que fazia. Eu sabia que o seu prato preferido era peixe com fritas, eu sabia que ele preferia pizza fria e que por ele a vida só começava após às 11h da manhã. Tomávamos sorvete juntos e ele nunca me deixava pagar. Eu achava bonito quando ele ficava envergonhado por eu dizer que o nome dele era de galã mexicano e que combinava com ele. Eu deixava as jujubas vermelhas pra ele. Sempre. Eram as minhas preferidas, mas eu queria ver Pablo feliz comendo jujubas vermelhas. Eu queria vê-lo sempre bem. E quando alguma coisa ia mal, era no meu colo que ele chorava, e eu passava a mão no cabelo preto dele, assim como mamãe passava no meu quando eu ainda estava me perguntando o motivo… Até que Pablo me beijou pela primeira vez. Eu sempre rio lendo isso, porque nossas testas trombaram e eu lembro o quanto ele ficou nervoso. E lindo. E todos os beijos treinados em travesseiros e cubos de gelo foram por água abaixo. Eu podia sentir as minhas artérias se fechando. Naquele minuto, eu coloquei a minha mão no peito de Pablo e percebi que era igual ao meu. Exatamente igual. Foi o encontro mais fantástico que tive com a minha própria alma. Não dissemos mais nada. Apenas ficamos ali, abraçados, um corpo pedindo perdão ao outro e o amor pedindo perdão ao mundo. Pablo nunca fez um pedido oficial, mas estávamos namorando. O primeiro namoro de alguém… Mamãe me peguntava quando é que eu ia levar Pablo pra casa. Ela ia fazer a lasanha de frango famosa dela. Teve uma conversa séria sobre sexo comigo. Minhas bochechas ficavam vermelhas só de pensar. Mamãe, eu disse, vamos com calma. Eu lembro que guardei o bilhete do cinema na primeira vez em que fui com Pablo ao cinema. Uma idiotice… Mas era idiotice adolescente. Então era normal. Todos da escola comentavam. Perdi alguns amigos por causa de Pablo. Mas tudo bem… Aprendi a não ligar muito pra essas coisas. Eu não sabia o motivo de ter acontecido comigo, mas se aconteceu, e eu conheci o Pablo, acho que valia a pena. Doeu quando tive vergonha de beijar ele de novo. Não que já não tivéssemos nos beijado outras vezes, é claro, éramos namorados. Mas eu evitava beijar ele em público e, às vezes, ele notava. O transporte público é público e eu pago. O amor não é público, pensei. Eu entendia, sério, mas era dolorido. Eu só fechava os olhos e lembrava da sensação que tive quando vi aquele beijo de novela e quando percebi que mamãe não se importava com ele. Quando beijei a primeira pessoa que disse que gostava de mim. Eu lembro que senti nojo, vergonha e revolta, tudo ao mesmo tempo. Eu pensei que nunca deixamos de ser pequenos, todos, assustados com a vida, com as crianças rosas e azuis, com a cruz, a seta e o círculo, com esse tipo de coisa. Eu também já senti nojo de mim. Por ser um ser humano e participar de todos esses medos. Talvez não os mesmos, claro, mas mesmo assim, eu também tinha meus medos. Medo, principalmente, de não ser capaz de impedir Pablo de ir embora. De não ser suficiente. Eu e ele terminamos quando passou um grupo de conhecidos do curso de inglês e eu disse que ele era só um amigo. Pablo me acusou de imaturidade… Concordei com ele. Fui pra casa chorando e me sentindo a pior pessoa do mundo. Lembrei de tudo o que ele fez por mim e me senti um lixo. Mamãe disse que era normal… Já que o seu amor é tão especial, filho, mamãe disse, prove-o. E eu pensei: Como vou provar que amo Pablo? Aí eu comprei um livro do Leminski (Pablo adorava poesia, eu achava uma bobagem), e escrevi na contracapa:
“ISTO DE QUERER SER EXATAMENTE O QUE A GENTE É AINDA VAI NOS LEVAR ALÉM”. Pablo, eu te amo além do que sou.
Não tive coragem de levar o maldito livro pra escola. Deixei em cima da minha escrivaninha… Quando eu voltei, mamãe estava sentada no sofá, com os seus olhos de abismo, seu cabelo desgrenhado, e com o vestido que ganhou de mim todo manchado de lágrimas.
Eu disse: Mãe, o que houve?
Aí vi. O livro na mão dela. Era isso o que tinha havido.
Olhei pro outro lado e vi que minha mala estava arrumada. Mamãe se virou pra mim e disse: “Eu quero que você suma da minha frente em menos de 24h. Eu quero que você saia e esqueça que um dia teve mãe. Quero que você engula essa sua safadeza, sua promiscuidade de merda, quero que você se dane! Ouviu? Quero que você vá pro inferno, você e seu prostituto de merda, seu veado!”
Não me sustentei em pé. Não senti quando caí e abracei meus joelhos. Lembrei do riso do Pablo. Lembrei das cantigas que mamãe cantava pra mim, das minhas fotos de crisma. Lembrei de como o Pablo ficava bonito naquela camiseta azul que eu dei pra ele. Lembrei das vezes em que mamãe deixou o maior pedaço de bolo pra mim. Pablo também fazia isso. Lembrei do carinho que ela fazia no meu cabelo. Lembrei de como eu adorava ver Pablo desenhar. Lembrei do acampamento em que o vi pela primeira vez. E me vi. Me vi em seu corpo. Me amei porque o amei. Lembrei do porta-joias que dei pra minha mãe no Dia das Mães e ela dizia que eu era o melhor presente dela. Lembrei de quando choveu no meu aniversário de seis ano, estragando a decoração, e lembro de como a mamãe pintou as paredes da casa pra ficar mais ou menos parecido com o mini picadeiro encharcado lá fora. Lembrei do maldito ingresso do cinema guardado no fundo do meu armário.
Por que comigo?
Lembrei também das vezes em que o Pablo chorou por minha causa. E agora mamãe chorava também. Pablo sabia que eu não era só dele. Ele sabia que eu também pertencia ao universo que eu fingia que não me ignorava. Eu pertencia também ao pecado que eu não acreditava ser verdade. Eu também pertencia ao inferno, à doença, a vida nos guetos, nos boeiros. E Pablo chorava porque sabia que eu nunca sairia de lá completamente curado pra poder amá-lo da forma certa. Se é que existe uma forma certa.
Levantei do chão duas horas depois. Minha mãe continuava imóvel. Chorando em silêncio. Silêncio era tudo o que ela poderia me oferecer agora.
Recebi uma mensagem no celular… Era da irmã de Pablo. Ele estava num hospital. Foi atacado na praça por um grupo enquanto jogava bola. Pablo, eu sinto muito. Eu sinto muito mesmo. Por nós dois. Eu também não sei o que merda foi que aconteceu.
E agora, na cobertura do prédio, as sirenes da polícia ficam cada vez mais distantes. Minha mãe está lá embaixo. Rezando por mim. Ela me odeia.
Agora, na cobertura do prédio, quando toda essa porcaria está prestes a acabar… No meu último suspiro, eu percebo que tentei amar pela primeira vez e não consegui.
E, também pela primeira vez, eu era igual a todo mundo.
Ninguém sabia amar.
Era normal. Infelizmente, era normal.