Em Feliz, cidade de onze mil habitantes encravada no vale do Caí, os motoristas ainda lavam seus carros, as crianças ainda lavam seus cachorros, os estudantes ainda esperam o feijão brotar no algodão na escola, as faxineiras ainda passam óleo de peroba nos móveis, os filhos ainda ajudam a separar marinheiro do arroz, as famílias ainda emolduram fotos da primeira comunhão, os relógios ainda são regulados pelas badaladas da igreja, os homens ainda discutem se Deus existe bebendo cerveja.
Ainda são feitos trotes, ainda se borda, ainda se forram gavetas com papel-presente, ainda se recebem visitas na sala de estar, ainda se descasca laranjas, ainda são feitas contas no papel, ainda há tempo para o leite ferver e o bolo descansar, ainda se conversa à toa na varanda, ainda se deixam o carro aberto e as roupas no varal. Não duvido que a lata de azeite ainda seja furada com um preguinho.
É mais simples ser feliz na cidade de Feliz e nem estou falando do alto índice de alfabetização de 98%.
São as delícias de coisas singelas. Como colher morangos.
"Em maio, pelos cachinhos, sei que teremos uma safra boa e que não passaremos sufoco. É a minha maior felicidade, eu me sinto uma noiva", conta a agricultora Cátia Martins, 32.
Ela veio do interior de Santa Rosa com o marido, Admir, pela tranquilidade. Não se arrepende. Pode realizar o sonho de quatro filhos em escadinha, como nas antigas famílias: Felipe (13), Pablo (9), Vinícius (6) e Júnior (4).
Uma das paixões felizenses é andar a pé, passar pela Ponte de Ferro (trazida da Bélgica e instalada em 1900) e espiar como está o humor do Rio Caí. E também aprender um segundo idioma em casa. A dúvida é se a primeira língua é aportuguesa ou a alemã. Para não sofrer com o dilema, fala-se o dialeto Hunsrückisch, originado na região de Hunsrück, no sudoeste da Alemanha, e abrasileirado no sul do país.
A fala é rápida, a ponto de não se perceber diferença entre o nome e o sobrenome.
- Qual é seu nome?
- Talcilolorscheiter
- IlsunStumm
- Iracistumm
"Nossa alegria é trabalhar demais para fazer bastante festa, ter uma hortinha para passar o tempo e um ser vizinho do outro. Aqui não falamos mal das pessoas, falamos a verdade", ri Talcilo, 49, que costuma frequentar a residência do casal amigo Ilsun e Iraci.
Para Clarissa Herter, 17 anos, alegria é comemorar com um folhado de salamito. "É meu luxo", confessa, com o salgado recém embrulhado da Panificadora KS.
Ela acabou de ser contratada para seu primeiro emprego na Hidroget, como analista, selecionada após um ano de curso.
"Agora falta o primeiro namorado", completa.
Ela se encabula para contar onde mora com a mãe, Marlise. Diz, baixinho: - Bananal.
Ficar envergonhada é também um contentamento.
Em Feliz, ainda é possível descobrir as espécies dos pássaros pelo canto.
- Tesourinha? Siriri? João-de-barro?
O músico Jair Silva, 41, o Jabá, vai antecipando os sons do alto das árvores para sua namorada Andrea Barbosa, 27.
"Assim que ele me canta", ela brinca.
O casal é feliz namorando toda manhã no Parque Municipal. São 25 hectares de sossego, chimarrão e concerto gratuito de aves.
"Não existe como ser feliz sem o Parque", afirma Jair, lembrando que é o local das duas primeiras festas do município (Festa da Amora, Morango e Chantilly e Festival Nacional do Chope).
"Não existe como ser feliz sem Jair", aproveita Andrea.
Os dois se beijam longamente. Com aquela mansidão boa de branco de praça, de ruas vazias, de amor público.
Perder tempo parece que é ganhar felicidade.
Crônica intitulada "Como Ser Feliz na Cidade de Feliz?" escrita por Fabrício Carpinejar no livro "Beleza Interior, lançado em novembro de 2012.
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