quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Sem Título.

Desabafo. Não é assim que chamam? Quando você quer lembrar a si mesmo que está sofrendo? Quando você precisa de espaço em casa e quer remover umas peles mortas? Mas antes... Eu tenho um segredo que quero compartilhar: Eu sou perfeito. Completamente perfeito. Dois braços, duas mãos, dois pés, uma cabeça, cabelos, olhos que enxergam muito bem tirando o charme intelectual da miopia, dentes com uma boa mordida, dois ouvidos viciados em risadas quase inaudíveis, pele lisa e boa forma. Boa comida, boa bebida e um amor um pouco mais caro do que a maioria assume ter. Família bonita, bons estudos e dinheiro. Viu? Mais perfeito do que eu não existe. Mas enfim, eu quem? Quem é essa pessoa perfeita? Eu sou um homem que tem a vida perfeita. Certo. Mas que homem? Céus, não há nada mais ridículo do que terminar cada frase com um ponto de interrogação quando o único que pode responder é você mesmo.  Vamos direto ao ponto, então. Ao desabafo, ao grand finale, ao ápice das lamentações daquele homem com a vida perfeita. Porque é isso o que todos querem. Um clímax. Eu darei um clímax, portanto. Os meus braços perfeitos doem. As minhas pernas perfeitas doem. O meu coração com cardiogramas perfeitos dói. Os meus olhos doem. Tudo, absolutamente dói. Todos os meus músculos perfeitos doem. Porque cresceram em uma pele pequena demais. Eu não disse adeus para quase nenhuma casca. Eu adquiri o veneno sem antes completar a muda de pele. E como eu já mencionei, desabafos são peles mortas. Eu não disse adeus para a minha casa sem televisão, para os olhos tristes e molhados de saudades, eu não disse adeus para o pequeno Rudolf, meu pássaro de estimação magricela. Minha coleção de álbuns de figurinhas continua intacta... Quase posso sentir o mesmo orgulho ao revirar as páginas e ver os espaços completamente preenchidos. Eu era fascinado por cores. Talvez eu fosse o menino mais colorido do mundo. Não, do universo! Não, da galáxia! Não, de todo o infinito! Quem sabe de dois infinitos de uma só vez. A felicidade infinita por um álbum de figurinhas completado. Nunca disse adeus para a sensação de poder ao recusar uma brincadeira, ficar em casa e ler um livro. Só por ler. Sem querer entender uma palavra. Mas quando eu topava um jogo de bola, era sempre uma boa festa. Aquele menino esquisito que nunca sai de casa veio jogar um pouco. Nunca disse adeus ao único ódio que sinto falta na vida. Um ódio que fazia os olhos que carinhosamente batizei de olhos da saudade brilharem ainda mais. Eu sinto falta de sentir a dor dos fios inchando-se na minha pele, sinto falta de ver o meu sangue me banhando. Um pedido de desculpas com muito chocolate quente, que tal assim? A raiva passou... E os olhos de saudade brindavam comigo uma infância imperfeita. Mas os ossos cresceram antes de mim... Tudo aquilo era imperfeito demais para caber em mim. O cheiro de remédios, a casa desarrumada, os móveis afastando quando contávamos histórias de piratas e... Baleias. Eu até que gostava das baleias naquela época. Elas pareciam coloridas e cabiam na palma da minha mão. Depois, alguém teve que voar. Mas não era eu. Ainda não. Fechando os olhos eu quase posso sentir o gosto terrível de peixe.. Crianças tristes demais para serem crianças. O impacto do reencontro. Rugas, eu sempre amei as rugas. Rugas também não são imperfeições? Certa vez, ouvi que rugas são as marcas do passado. Acho que envelheci por dentro, então. Se meus dentes eram de leite, mais passado do que a morte não existe. A morte não volta, o adeus não volta, a alma não volta. Acabou. Eu já tinha idade suficiente para ter um passado, onde estavam as minhas rugas? Talvez estivessem dentro de mim, talvez estivessem no rosto deles e eles me devolveriam quando fosse a hora certa. Olhos abaixados por pálpebras que perguntavam aos meus olhos sem respostas para nada: O que vamos fazer com esse menino? O que vamos fazer com esse menino que tem tanto passado? Eu não sei, mas eu era um presente. Não sei se fui um bom presente, mas eu sou o presente mais perfeito de todos. Crescido. Forte. Saudável. Perfeito. Eu não tenho motivos para reclamar. A morbidez dessa felicidade de fantoches me abomina. É pior do que uma  mentira, ela é real. Eu queria ter pelo menos o indício de que já fui infeliz. Eu precisava de provas. Era mais que um desabafo, era a necessidade de manter-me vivo e lúcido. O meu desabafo era a voz que nunca escutei. A voz que imagino como é. A voz que sai do espelho, direto da boca do homem sem rosto e sem documento, que só tem passado e nada mais. Eu só queria que alguém, que sentasse ao meu lado e dissesse que tudo bem não ser perfeito por dentro. Tudo bem, não chore, vai passar. Você é só um garoto triste. Eu deixo você crescer. Eu faço os seus ossos pararem de doer. Eu deixo você sair dessa bolha de proteção do mundo e chorar a sua dor. Eu deixo você voltar no tempo por um segundo, fechar os olhos e dizer adeus ao seu primeiro amor. Eu quero que você se despeça, devagar, que aproveite os beijos na bochecha, que nade no riacho pela última vez. Quero que você leia o seu livro de dez páginas saboreando cada ilustração. Que você perdoe as baleias por serem tão grandes. Que você afaste os móveis da sala pela última vez. Tudo bem se você não quiser pular do ninho agora. Você nunca esteve preparado, mas eu sei que você se esforçou. Eu só quero alguém que diga que eu preciso cortar o cabelo. Mas ninguém diz nada. Todo mundo só concorda comigo quando eu digo que o que passou, passou. Que a vida continua, que o meu maior sonho é ser um advogado quando o meu maior sonho é só que alguém entenda o que eu preciso ser. E que por favor, me explique. Alguém que me sirva de apoio e que diga ao mundo que eu não quero falar com ninguém. Que eu não gosto de celular, bebida, festa. Que eu tenho vergonha de existir. Que eu sou só um menino ateu, sem graça, sem casa, com direito ao Bolsa-Tristeza que foi deixado na porta de uma felicidade instantânea. Alguém que explique que não gosto de falar porque simplesmente gosto de escrever. Alguém que seja para mim o simples prazer de ser alguém que não foi embora. Ainda. Alguém que não queira escutar a minha voz. Alguém que explique ao resto das pessoas que sou uma pessoa feita de restos e que choro por pouca coisa. Choro, por exemplo, pelo sorriso de um homem mudo. Que gosto de chocolate quente antes de dormir, que acho que a saudade tem os mais belos olhos do mundo. Quero alguém que beba o oceano de canudo para que eu não tenha mais medo de gigantes. Alguém que me leve para chorar num mundo distante, porque não há mais cantos nesse mundo onde eu esteja abandonado o suficiente para ser o que eu sempre fui. Não há dor maior que se acumule no meu coração e faça aquela saudade poder ser transbordada até a última gota. Não há saudade maior do que a saudade que eu sinto dos olhos de saudade. Queria mais fios, mais sangue, mais sentimento de culpa, mais ressentimento, mais despedidas para que respire aliviado novamente. Para que eu consiga dormir uma noite sem lágrimas. Esse mundo perfeito dói. Esse mundo de mentira que não é de mentira dói profundamente. Eu queria ter forças para sugar a última gota de chocolate que sobrou na minha caneca azul preferida. Meu Deus, quando foi que eu perdi as minhas cores? Quando foi que meus textos encheram-se de interrogações? Aliás, quando é que eu comecei a escrever? Quando foi mesmo que eu comecei a ser feliz? Eu, honestamente, tenho muita coisa pra lembrar. Tenho que lembrar que sou perfeito, que sou só passado, que os exames de cardiologia deram em nada de novo. Eu sou um menino de muita sorte. Tenho que lembrar que sou um menino de muita sorte. Que não tenho motivos para ser o que sou. Triste, vazio, perdido. Mas quando a noite acaba, meu bem, quando a noite acaba e as quatro paredes do quarto adormecem, eu sempre acabo assim. Sozinho.

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