sexta-feira, 11 de maio de 2012

Refúgio - Parte II

      Boa tarde. Perdoe-me a demora, eu sei que prometi voltar o quanto antes, mas confesso que desisti. A falência da motivação e o cansaço que me atinge o punho não deram tréguas essa semana. O que eu quero lembrar, muitos já esqueceram. Mas hoje, meu amigo, hoje os céus deixaram escapar o aviso detrás das nuvens. Os passarinhos estão em farra e o céu quis pintar-se de violeta. Cenário perfeito para dedicar-se às memórias.
      Sem mais delongas, voltemos então para aquela véspera de Páscoa. Meu ímpeto de pular no riacho junto com Gonçalves foi cessado quando avistei a figura de uma menina com os cabelos cor de fogo trançados, penteando a boneca de um olho só. Tapei a boca de meu amigo que ainda estava a gargalhar sem parar e nós dois olhamos embasbacados para a pequena ruivinha que cantarolava uma melodia de entristecer até mesmo o coração das rochas. Uma garota? E ainda, uma garota sozinha? Ora, aquele riacho não era ambiente para uma mocinha, e sabíamos disso. Crianças não passam de papagaios que reproduzem a fala dos adultos, e esses velhos ditos nós conhecíamos de cor. Moça direita não anda na rua desacompanhada. O que ela tinha na cabeça, afinal? Meninas costumam ser mais ajuizadas que meninos, envelhecem mais cedo e nos vemos ainda moleques no auge dos dezoito anos, enquanto elas cuidam de um marido e uma barriga. Foi então que pensamos: Deve estar perdida.
      - Ei, você!
      A menina nos encarou atemorizada e fugiu para detrás de uma árvore fina e sem folhas. Pude ver exatamente a cor de seus belos olhos de ametista por detrás dos galhos mortos. Na correria, deixou cair a boneca velha e quase deixou escapulir algumas gotas salgadas. Decerto, temia que fizéssemos algum mal à sua colega dos cabelos de corda.
     - Está perdida? Como se chama?
     A menina perdeu a timidez. Foi aos poucos ajeitando o vestido, aprumando-se toda e apertando muito bem o laço de fita que trazia na cabeça, enfeitando os fios avermelhados. Parecia uma senhora de vinte e poucos anos que acabara de levar um susto daqueles. Uma verdadeira donzela desengonçada. Deu três piscadelas rápidas e se apressou em nos falar.
     - Me chamo Eleonora. Homessa, não estou perdida! Moro nas redondezas. E vocês, cavalheiros?
     Eu e Gonçalves nos fitamos e dissemos em perfeito coral: "Cavalheiros?". O outro já queria rir. Ninguém nunca o havia chamado de cavalheiro antes. Na verdade, nem sabíamos o que queria dizer, só entendíamos que não havia cavalo algum por perto. Finalmente, peguei ares de coragem para dizer:
      - Eu me chamo Emílio. E esse é Gonçalves, meu amigo. Viemos tomar um banho pois fomos dispensados da aula mais cedo. E você, o que fazes aqui? Está perdida, com fome? Podemos pegar algumas frutas se quiser, será um gosto.
      Gonçalves me deu uma cotovelada. Decerto, estava falando feito um tolo. Eleonora riu.
      - Dispensados, claro... São dois ociosos. Não estou com fome, trouxe pão e bolo na merendeira. Mamãe mesmo que preparou, caso eu sentisse o estômago roncar. Mas fico grata, senhores. Estou aqui porque Maria só sabe fazer poesia quando escuta a sinfonia das águas.
      - Quem é Maria? - perguntei alongando o pescoço para ver se realmente só havia nós três ali.
      - Minha boneca. Ela é uma grande escritora!
      Rimos gostosamente. E só paramos quando percebemos um leve inchaço nas bochechas de Eleonora. Estava furiosa.
      - Não vejo motivo para graça. Meninos... Acham que tudo é pilhéria. - e sentou-se novamente na pedra próxima ao riacho, ignorando nossa presença e pondo-se a pentear sua Maria.
      - E meninas não deveriam ficar sozinhas. Vamos lá, vá você e sua Maria para casa. - Provocou Gonçalves.
      - O que? O que foi que disse? Por que meninas não devem ficar sozinhas?
      - Ora, porque são meninas.
      - Tem graça...
      - Não devem e pronto.
      - Pois saibam que sei me cuidar muito bem sozinha. Agora se não se importam, gostaria de apreciar o sossego que vim buscar.
      - Você fala engraçado.
      - Engraçado?
      - Cuak, cuak! Você é um papagaio. Só sabe repetir. És uma tonta!
      - Oh, céus...
      Dei um pontapé em Gonçalves que o fez morder a própria língua.
      - Desculpe Gonçalves... Ele não está acostumado a lidar com meninas.
      - E você está?
      - Bem, eu... eu...
      - Não está. Meninos não gaguejam perante meninas.
      - Não?
      - Não.
      - Então o que fazem?
      - Mamãe diz que eles nos chamam pra dançar.
      - Dançar?
      - Valsa.
      - Eu não sei dançar valsa, e aqui não tem música.
      - É verdade... Bem, acho que mamãe está enganada. Enfim, continuem o que estavam fazendo. Ou tentando fazer, não sei.
      - Você tem quantos anos?
      - Oito e meio.
      - E vai ficar aí? Nos olhando?
      - E onde está o problema?
      - Você é menina!
      - Por Deus, eu sei que sou menina. Já perdi as contas de quantas vezes ouvi que sou menina.
      - O que quero dizer é que não deve nos ver em trajes íntimos.
      - Pois se quiserem, nadem de roupa. Daqui eu não saio. E estão atrapalhando a concentração de Maria. Pelo visto, hoje não tem poesia.
      Ficamos em silêncio por dois minutos. Tempo demais para três crianças tagarelas. Você deve estar se perguntando como lembro de tudo isso, se antes mesmo havia dito que minha memória era falha. Mas garanto, lembro de cada travessão que expus nestas linhas sorridentes. Não lembro nem mesmo do que a enfermeira me disse ontem, mas lembro exatamente de tudo, como se os mesmo passarinhos que ouço agora cantassem para nós naquela tarde quente em especial.
      Gonçalves deu um pulo na água de cueca e tudo. Ele havia ido lá para nadar e não era a presença indesejável (e maravilhosa) de Eleonora que os planos sairiam do curso.
      Olhei para ela com meio sorriso e obtive como resposta um desdenhoso: "E você virou estátua?". Fui logo atrás de Gonçalves. Ríamos feito duas hienas escandalosas, mas eu não tirava os olhos da menina que cantarolava concentrada na arrumação dos cabelos de Maria. E ela fingia não me olhar também, mas pude ver suas mãozinhas em cima da testa para tapar o Sol e nos espiar melhor. Mas quando eu olhava, ela fingia estar enxugando o suor e logo voltava ao que estava fazendo. Achei graça. Estava apaixonado pela primeira e única vez.
      Esse ponto final vira reticências, amigo. Perdoe-me... Não vi o tempo passar e os passarinhos já buscam abrigo dentro das árvores. Sinal de que é hora das memórias também dormirem, senão elas se perdem por aí como vento em meio à furacão. Velhos dormem cedo para que a alma não esteja cansada amanhã. Que Deus me ajude a suportar mais um dia. Durma bem, meu caro. Até mais ver.

domingo, 6 de maio de 2012

Refúgio - Parte I


      Meu nome é José Emílio da Costa Soares, tenho 85 anos e sou natural de Belo Horizonte, mas moro em São Paulo não faz menos que trinta anos. Mudei-me para cá com Eleonora e meus três filhos. Casei cedo, como era de costume na época. Se não me falha a tola memória, a cerimônia oficial aconteceu em meados de 1945, mas o namorico já vinha de muito antes.
      Eleonora surgiu com um vestido rendado branco de gola alta, daqueles com muitos babados e essas tranqueiras que as dondocas encaravam por moda. Ah, ela estava deslumbrante... Eu fui um rapazote de sorte por ter posto uma aliança naqueles finos dedos de unhas amarelo-cobre. Pena que não pude presentear-lhe com a joia que queria. Custava o que hoje não deve passar de dois mil reais. Eu era ajudante na padaria de meu pai, minha família nunca teve muita condição financeira. E depois que ele faleceu decorrente de uma febre alta, não tive outra saída senão arrumar as trouxas.
      Perdão se me apressei. Vamos recomeçar. O nome não interessa, o lugar de onde vim pouco importa. Hoje meu lar é aqui junto com os outros velhos. Eles fedem a talco, mas fazem menos graça que bebês. Alguns enlouqueceram, outros apenas estão doentes de solidão. Conheço apenas quatro que vieram para cá por livre e espontânea vontade, se é que posso chamar a tristeza e o medo angustiante de padecer sozinho de liberdade. A maioria foi jogada aqui como cão sarnento pelos filhos ou parentes próximos. Filhos... Malditos. Embora tão desgraçados, o meu maior medo é esquecer-me das feições de minhas crianças.
      Você deve estar se perguntando como eu cheguei aqui. Peço desculpas pela minha fantasia, mas um pedaço de papel e uma caneta quase falhando são os únicos amigos fiéis que um velho decrépito pode ter. A história é longa, meu caro. Tão longa quanto o meu penar. Não quero pular os detalhes, já que um diário não tem limites de linhas e lágrimas, mas também sei que a cabeça é lacunada e o coração mais ainda.
      Começaremos então por Belo Horizonte, ano 1937. Foi nessa época que mudei para a fazenda amarela de meu pai quando mamãe largou-nos. Foi uma infância simples, mas hoje não tenho do que reclamar. Uma das minhas maiores alegrias era roubar frutas no pomar do velho Olaor. Parece bobagem, mas foram os melhores joelhos ralados e palmadas que poderia arrumar. Matava as aulas para nadar no riacho em frente à escola, levava puxões de orelha do diretor carrancudo e nunca faltava uma cantiga entre as rodas de amigos. O caminho até o colégio era cheio de pedregulhos e não tinha dinheiro para comprar sapatos bons. Os meus eram remendados. Era muito mais cômodo cortar o trecho e ir molhar os pés na grama umedecida do campo.
      Dona Jezebel também não escapa-me da memória. Era a preta velha encarregada de ajudar meu pai na cozinha. Seu salário era casa, roupa e comida. Reclamava dia e noite de dores nas costas e eu achava seus gemidos insuportáveis. Constantemente perdia os óculos, pedia-me ajuda para procurar e eu lhe questionava aos berros: "Céus, Dona Jezebel, cole esses óculos na cara! Todo dia é a mesma ladainha". Jezebel ria e dizia que um dia eu entenderia... A velhice um dia chegaria à minha cabeça também. Mas nunca pensamos nisso, não é? Somos sempre jovens, cheios de vida, com joelhos bons e preocupações supérfluas. Quem dera eu pudesse voltar no tempo e dizer ao menino Emílio para procurar os óculos sem pestanejar, porque agora mesmo eu já não sabia onde enfiara os meus.
      Era véspera de Páscoa. Única época, fora o natal, em que eu gabava-me da profissão sofrida de meu pai. Contudo, as aulas nesse período duplicavam as asneiras. Houve dias em que fizemos três redações apenas para explicar o sentido real da Páscoa. Que moleque de dez anos quer saber disso? Ah, não. Gonçalves, meu melhor amigo, convidou-me para ir matar aula no riacho com os outros da turma ao lado. Eu não pensei duas vezes. Pedi a bênção ao velho, abotoei o macacão, pus os livros nas costas e segui reto até próximo ao caminho de pedregulho... Logo depois, dobrei. Encontrei Gonçalves próximo à grande árvore e seguíamos já tirando as roupas e largando o material, gargalhando e maldizendo a pobre professora.
      Foi exatamente nesse dia, nessa aprazível véspera de Páscoa, que conheci minha Eleonora.
      Sorte que os papéis não têm ouvidos, senão já teriam me dado as costas como todos os outros. Perdão por interromper minha narração. É hora do xadrez e tenho que esconder o diário antes que alguém o veja e me encha a paciência já tão desgastada. Deveria dizer até breve? Ou quem sabe... Até onde meu coração aguentar bater.

1945

      Hoje é aniversário de Aharon. Sete anos. Há dez dias atrás, às 13h47, a morte gritou. Era o alarme para levar os recém-chegados até o "banho". Eu e mais nove diabos ficamos encarregados da vil tarefa de manipular a multidão de ossos e sangue judeu prestes a ser derramado.
      A câmera de gás estava faminta. Crianças, velhos, adultos, todo tipo de carne. E no meio dos olhares perdidos, o pequeno Aharon; um anjo. Olhou-me como um carneiro olha para a faca que cortará seu pescoço. Eu senti-me imundo, mas não tão imundo quanto o cano da arma que apontava para as minhas costas e para as de meus companheiros, obrigando-me a apressar os passos e aumentar o tom de voz. O menino não largava da mão da mãe. Tão pequenino e magro que não parecia ter mais de cinco anos, tão fraco que mal conseguia andar. O segundo alarme soou e todos já estavam dentro do caixão.
      Eu mesmo acionei a liberação do gás. As lágrimas que escorriam dos meus olhos misturavam-se com as lágrimas de medo do menino Aharon. Culpa. Não demorou mais que três minutos e os gritos de dor silenciaram-se. Abrimos a câmera para a retirada dos corpos. Não havia gente. Havia apenas corpos mutilados, línguas cortadas e olhos arrancados pelo impacto da morte sangrenta. Levantamos verme por verme, até ouvirmos uns gemidos fracos. Virei-me para o barulho que, naquele local onde só o vazio da tristeza podia imperar, era ensurdecedor.
      - Está vivo, Caleb! Este ainda tem pulso.
Aharon estava vivo. O corpo da mãe caiu sobre ele, impedindo que o gás o atingisse. Era inacreditável. Eu e os outros levamos o pequeno para um local seguro, demos água e pão velho. Ele parecia estar bem, ainda que um tanto desnorteado. Ainda que não houvesse espaço, nós tínhamos um lema: A vida em primeiro lugar. Sabíamos que morte nos rodeava, que Aharon continuava em perigo, mas em Auschwitz nenhum coração será ignorado. Nenhuma Estrela de Davi se apagará por nossa indiferença.
      Eis uma vantagem nos campos de concentração. Sua ausência nunca é notada. Somos números. Bastava um pijama listrado e Aharon seria o 67. Sua morte? Imprescindível para os alemães, mas completamente ignorável pelos próprios capatazes. Juntamos o menino com os outros trabalhadores. Ficou encarregado de tirar os pratos sujos do refeitório. Uma tarefa arriscada. Sim, eu disse arriscada. Para cada prato esquecido, um tiro na cabeça.
      Cuidei daquele menino como filho. Os meus eu já havia queimado, junto com os outros 2.000 mortos. Toda noite eu dava-lhe pão e leite, ainda que fosse dormir com a barriga roncando. Contava-lhe histórias de quando eu era médico. Sim, fui médico. Hoje planto batatas, mas fui um dos melhores médicos de minha região. Tratei dos feridos quando tinha o privilégio de morar no gueto, junto com baratas e ratos. Mas não me chame de doutor. Me chame de 34.
      Eram 4h30 da manhã de hoje quando me acordaram aos berros. Senti a língua voltando para o esôfago. Era minha hora de matar ou morrer. Sempre me chamaram para executar os ladrões ou infratores da fábrica. Ou simplesmente... judeus. Era o vosso crime. Corri para o pátio, o oficial me aguardava.
      - Conheces esse demônio, Caleb?
      Era Aharon, meu menino. Emudeci. Comandante Burkhard apontava para ele com a arma em punho.
      - Pelo amor de Deus, Caleb, responda-me!
      - Sim senhor, conheço. É Aharon, trabalha no refeitório da fábrica.
      - Este verme bastardo manchou minha farda com borra de café. Tive a benevolência de dar-lhe apenas uma surra como punição, quando ouvi ele berrar por seu nome. O que és dele?
      - Nada, senhor.
      - Eu bem imaginei. Rapazinho, aproxime-se.
      Aharon permaneceu estático até ouvir a segunda ordem de comando. Chorava como criança recém-nascida, mas não dava um pio. As palavras eram traiçoeiras demais. O patife acariciou-lhe a cabeça raspada e deu dois tapas camaradas em suas costas franzinas.
      Burkhard sorriu como Lúcifer. Ofereceu-me a arma e a voz foi clara.
      - Atire.
      Empurrou Aharon para que caísse de joelhos na minha frente. Eu não poderia atirar. Eu preferiria a lançar aquela bala contra minha própria cabeça. Seria o certo a fazer... Mesmo sabendo que o corpo de Aharon cairia logo sob o meu. O menino lançou um suspiro: Frömmigkeit, bitte. (Piedade, por favor.)
      - Vamos, atire! Mate-o! Estraçalhe os miolos deste verme! Vamos, estais surdo, judeu maldito? Mate-o! Antes que eu o faça! E sabes que morrerá os dois. Estou dando uma chance. Mate o infeliz!
Fechei os olhos procurando uma saída à Gott. Aharon continuava de joelhos, choramingando, machucado e com olhos roxos de gazela ferida. A surra roubara-lhe dois dentes e a dignidade.
      - Atire! Vamos, atire! Atire de uma vez! Seja homem, Caleb!
      Gritei e pressionei os olhos, os dedos escaparam-me. Caí de joelhos também. O sangue quente de Aharon inundava-me os pés. O menino que ajudei a salvar caiu, assassinado pela arma que caía de minhas mãos. Eu o abracei e quis morrer também. Malditos alemães! Malditos! A minha única vontade era atirar na cabeça de Burkhard e logo em seguida desperdiçar a última bala em mim, um traidor, um assassino. Mas o demônio roubou o revólver de mim para que eu pudesse agonizar a morte do menino que salvou-me a alma, que fez-me sorrir por dez dias.
      O corpo continua lá. Pedaços de cérebro são comidos pelos ratos famintos e ninguém arrisca a tirar meu menino daquela situação deplorável. Ele não merecia aquilo. Se ao menos ele tivesse morrido naquela maldita câmera de gás... Se ao menos eu não o tivesse achado...
      E assim me despeço, com lágrimas nos olhos e coração espirrando sangue. Não tenho mais tempo para escrever. Escondam-se, por Deus! Escondam-se. O grito da morte soou novamente. Primeiro alarme.
      - Hey, Hitler!

- Não olhe para mim!


       Ele estava ali, escondendo-se atrás da cortina azulada da janela com flores... Tão pequeno e frágil. Eu deveria estar segurando sua mão. O meu menino permanecia estático, com os olhos marrons petrificados e cabeça baixa. Lembrei-me das vezes em que vi aquela mesma expressão facial. Fechei os olhos.
Há três anos atrás ele vinha até meu quarto, pávido e desconfiado, derramando as mais barulhentas lágrimas. Batia os bracinhos contra meu travesseiro e não sossegava até que eu desistisse de argumentar contra seu pavor ridículo. Eu segurava sua mão e ele me guiava em silêncio até sua cama pequena e úmida.
       - Aqui mamãe! Ele está aqui!
       Meu menino tinha medo de monstros. Ele me descrevia uma criatura horrenda, gosmenta, verde e com uma boca larga cheia de dentes pontiagudos. Eu levantava o edredom e mostrava que não havia nada ali. Estava tudo bem, ele não tinha o que temer. Ele escondia-se atrás da minha saia, ainda atemorizado, olhando para todos os cantos em busca do monstro fujão. Olhava-me com olhos de amor, deitava-se mais uma vez e eu cantava para que o sono dos corações acalentados lhe visitasse novamente.
        Abri os olhos. Ele estava aterrorizado e a enfermeira tentava fazer com que ele se aproximasse de mim. Eu queria abraçá-lo e dizer que ficaria tudo bem. Eu queria...
       - Não olhe para mim! Não deixe que ele olhe para mim, tire-o daqui! Tire-o daqui imediatamente, não quero vê-lo!
       Ele chorou. O médico ainda tentou acalmá-lo dizendo que não havia o que temer, mas eu sabia... Meu menino tinha medo de monstros. Eu era um monstro. Mãos trêmulas e anêmicas, corpo debilitado, fétido e decrépito, os lábios desidratados só sentiam o salgado sabor da tristeza. A tosse era incessante, a pele já estava tão translúcida que era possível ver quase todas as minhas veias, e olheiras enormes e arroxeadas contrastavam com a palidez da minha face grotesca. Lembrei-me também do desenho de nós dois que guardava na cômoda do hospital. Redesenhava cada traço em meu pensamento conturbado pelos remédios. Uma mulher de longos cabelos castanhos segurando a mão de um pequeno menino risonho. Atrás da folha amassada, um recado: "Mamãe, aguente mais uns dias. Eu te amo". Os dias viraram meses, os meses viram anos. A quimioterapia arrancou-me fio por fio daquelas madeixas e o menino risonho chorava atrás do doutor, sendo homem antes do tempo, vendo sua mãe debatendo-se sob a cama.
       A moça de branco injetou-me um tranquilizante, mas a única agulha que eu sentia atravessando meu corpo era a incapacidade de abraçá-lo. Ele era tão pequeno... Uma borboleta cujo casulo abriram antes que aprendesse a voar. Como podiam ser tão truculentos? Ele era só uma criança, não tinha culpa. Até o espelho sentia repulsa de reproduzir a imagem que eu oferecia-lhe. Estava assustado, aterrorizado. Eu implorava para que o tirassem de seu próprio pesadelo. Eu não merecia seu olhar. Eu não merecia o toque de um anjo, minha carne estava podre e ardendo em chamas febris. Eu já não era mulher. Eu já não era mãe. Eu já não era humana. Meu corpo pulsava como o corpo de um verme também pulsa. A alma também perdera o brilho. O coração batia em outro peito.
       Adormeci. Três horas passaram-se e quando abri os olhos novamente, exausta pelo simples ato de respirar, eu o vi. Estava mais sossegado, com o dedo na boca e o velho urso de pelúcia embaixo do braço. Aproximou-se de mim com um sorriso tímido, mas ainda com a cabeça baixa em sinal de relutância. Ele beijou meu rosto rapidamente e se afastou... Eu sorri. Sorri com o desespero de quem perdera a felicidade. Algumas lágrimas pequeninas escorreram pelo rostinho que me fitava embasbacado.
       Eu queria ver aquelas lágrimas... Queria vê-lo chorar no dia de seu casamento, queria tratar de seus joelhos feridos e de seus amores incompletos. Gostaria de vê-lo tomando suas próprias atitudes e segurar sua mão para reergue-lo quando fizesse alguma besteira. Eu daria aquela viagem à Paris quando completasse dezesseis anos, prepararia um delicioso jantar para quando ele quisesse me apresentar a primeira namorada. Queria aplaudi-lo quando recebesse seu diploma de advogado. Estaria chorando também, com uma câmera na mão e de coração estufado pelo orgulho de ver meu grande homem formado. Eu queria ouvir os passinhos de meus netos correndo pela casa. Eu queria... Viver e vê-lo vivendo.
        Enquanto isso ele me via morrer. Cada dia... Ele me via morrer. Não eram apenas os aparelhos, tubos e furos em minha pele que me faziam persistir. Era ele. Um pequeno grão perdido na multidão de dissabores. O que seria dele sem alguém para cuidá-lo e protegê-lo? Meu menino não sabia, mas ele era sozinho. Eu o ajudei nos primeiros passos, mas quem diria que eu os desaprenderia. Eu o ajudei a alimentar-se sem ajuda, mas hoje minhas mãos não aguentam o peso da colher. Eu não desistiria tão facilmente. Ele precisava da minha vida mais do que eu mesma.
       Ele atirou-se em meu corpo, abraçando-me com todas as suas pequeninas forças. E neste momento eu tive certeza... Ele acabara de me libertar. Eu podia ir em paz. Ele não precisava de mim, já era um homem. Um homem ou um menino bravio o suficiente para abraçar o próprio monstro. Sussurrei baixinho em seu ouvido:
       - Perdoa-me, amor. Perdoa-me por não possuir a perfeição que tu precisas. Perdoa-me por te amar tanto a ponto de não conseguir viver vendo teu desespero. Perdoa-me pela fraqueza... Pelos momentos que não poderei viver ao teu lado. Perdoa-me, meu anjo, se a dor for tão grande que tu não consigas contornar. Mamãe disse que seria forte, mas o relógio está se apressando. Perdoa-me por desistir do teu abraço e do teu sorriso, mas já não posso com esta maldita doença. Meu amor, perdoa-me. Apenas perdoa-me porque no teu perdão eu talvez consiga me encontrar.
       Larguei sua mão lentamente... Fechei os olhos pela última vez. Meu menino já não acreditava em monstros.

Florisbela, tão bela.

      Ela traiu-me, enganou-me feito uma leoa impiedosa. Deixem-me explicar como tudo aconteceu antes que Florisbela adentre no quarto e eu agarre-lhe o pescoço com unhas e dentes.
      Meu nome é Serafim Barbosa, trabalhava como ferreiro na velha fábrica de Belo Horizonte, no auge dos meus vinte e poucos anos, antes de eu mudar-me para São Paulo após o matrimônio. Morava com minha já falecida mãe e mais três irmãos que perdi de vista, numa casinha de pau a pique dada de presente pelo meu avô. Trabalhei desde os doze anos e as bolhas nas mãos não me deixam mentir. A vida foi desgraçada comigo, mas teve lá suas boas surpresas. Foi na capital mineira, dia dois de setembro que eu a conheci, na quermesse da cidade.
      Florisbela usava um vestido branco com um laço nas costas, que marcava perfeitamente sua cintura afilada de menina-mulher. Os cabelos soltos deixavam à mostra os longos fios aloirados pelo Sol e a pele branca entregava algumas sardas que davam-lhe o ar dos anjos mais adoráveis. Não contive os olhares afoitos. Ela não devia ter mais que quinze anos, era uma moça linda e encantadora. Ora, eu vos pergunto, que qualidade eu, um pobre ferreiro, teria para conquistar uma donzela tão formosa? Ainda não sei a resposta, meus caros. Mas é certo que ela olhara-me também.
      Um risinho seco, daqueles de canto de boca, desenhou-se nos lábios de minha menina. Tirei o chapéu surrado, dando uma ou duas ajeitadas no cabelo despenteado, e sorri-lhe de volta, tendo eu a audácia de mostrar-lhe meus dentes ralos. Aproximei três passos e perguntei seu nome. Ela ainda calou-se, fazendo-se de desentendida, mas soube que se chamava Florisbela. Não há nome que se encaixasse melhor. Uma flor, com beleza e espinhos inigualáveis.
      O namoro durou um ano e meio. Os pais de Florisbela, dois velhos imundos e esnobes, não suportavam a minha presença. Decerto que eu aparecia sempre de pés desnudos, vestindo-me com trapos e vergonha. Mas Florisbela não desistira de mim. À noite, quando eles saíam para passear na praça, a minha menina arrumava um jeito de despistar a governanta, afirmando que ia na confeitaria comprar alguns quitutes, e encontrava-me atrás dos murros da escola abandonada. Não haviam beijos ou carícias, eu no máximo apalpava-lhe as mãozinhas. Florisbela gostava de criar diálogos entre as estrelas e eu ria de sua inocência. Nossas noites eram repletas de sorrisos e histórias. Eu presenteava-lhe com rosas roubadas e ela retribuía com gritinhos de felicidade. Minha tão doce alma gêmea.
Certo dia, Florisbela chegou em mim aos prantos. Explicou-me em meio à soluços agoniantes que os pais estavam querendo mandá-la para estudar fora do país. Meu coração recebeu uma punhalada e eu quase perdi os sentidos naquele exato momento. Eu queria agarrá-la por entre os braços e impedir que tal barbaridade fosse feita com nosso amor. Como eu viveria sem minha Bela? Como? Não haveria maneira, eu morreria de inanição logo em seguida. Foi então que Florisbela disparou. "Leve-me embora contigo, vamos nos casar! Vamos fugir para longe, Serafim". Essas palavras soaram como fantasmas para mim. Com que dinheiro? Com que transporte? Para onde? Amor não sustenta a vida. Dinheiro sim. Vendo meu silêncio impertinente, Florisbela empurrou-me e pôs-se a chorar ainda mais, dizendo que eu não a amava. Uma mentira que doeu mais do que uma lâmina atravessando minha carne. Eu a amava mais que a mim mesmo.
Fui para casa desolado, pensando na proposta e no outro dia antes do raiar do Sol, aprontei-me de coragem, fiz as malas e fui para a sacada da casa de Florisbela. Duas pedrinhas na janela a fizeram despertar, e um sorriso apareceu junto com nascer do Sol. Nenhuma palavra a mais. Florisbela aprontou-se, desceu a sacada e fomos juntos para a estrada, com três malinhas e muito amor nas costas.
Casamos numa Igrejinha antiga que agora não recordo-me o nome, tendo apenas às bençãos de Deus e de um pastor que me devia favores. Mudamos para São Paulo e as coisas mudaram também. Nos cinco primeiros anos do casamento, vieram Edmundo e Frantchesca, duas criaturinhas que puxaram exatamente os tons aloirados da mãe e meus grandes olhos azuis. Para minha tristeza, Frantchesca morreu de febre alta. Florisbela ficou desolada, emagreceu uns três quilos, e Edmundo quase não recebeu atenção da mãe nesse meio tempo. Não comia, não bebia, apenas chorava e desidratava. As pétalas de minha flor caiam pouco a pouco.
Após voltar do trabalho, fui pegar meu menino na escola do bairro. Uma sexta-feira chuvosa, onde não havia outro som senão os ruídos das árvores banhadas pelo temporal. Peguei a mãozinha de Edmundo e encaminhei-me direto para casa, preocupado com minha Flor.
Encontrei um vazio devastador e um recado em cima da cama remendada: "Querido esposo, querido filho... Já sequei-me em lágrimas, virei mulher cadáver. Peço desculpas pelo que acabei de fazer, e quero-lhes dizer que os amo com todas as minhas inúteis forças. A vida abandonou-me, e encontrarei meu anjo nos braços do meu Senhor. Eu os amos, cuidem-se."
Florisbela traiu-me. Encontrei-me jogado ao mundo, como cão vagabundo, para que eu morresse pouco a pouco, ou visse meu filho morrer perante à minha invalidez. Florisbela foi embora, para todo o sempre. Jamais a vi novamente, mas a espero todos os dias no quarto. Sei que ela voltará! Sei que ela verá Edmundo formar-se numa boa escola, sei que ela escutará os passinhos do primeiro neto. A janela do quarto permanece aberta. Florisbela abandonou a vida, e abandonou-me junto. Ela traiu-me com a Morte, e deixou-me como herança apenas a vontade de desistir e as lembranças de um amor escasso.

Filho das Asas Metálicas

      Nascemos homens e viramos ratos acovardados quando crescemos. Fui bravio o bastante para aguentar a agonia de vir ao mundo e fraco demais para querer continuar nele. Deixei o ventre quente de minha mãe e vim virar tempestade do lado errado. Um bebê pequeno, frágil, indefeso… Escolhido pelo azar. Pedaço de matéria tão insignificante que não servia para ser erro e acabou transformando-se em tragédia. Chorei. O choro de quem começa a vida morrendo. Mamãe amou-me pela primeira vez em meados da década de 90. Mas o tempo passou.
      - Você lembra seu pai!
      Ela dizia-me isso com uma ruga de descontentamento na testa. Sempre as mesmas palavras quando me comportava mal ou aprontava traquinagens. Nunca um elogio. Pai era sinônimo de repreensão. Eu lembro o vazio. Eu lembro um homem sem rosto, sem nome, sem forma ou cor. Eu sou a lembrança de um passado que não aconteceu.      
      - Quem é meu pai?
       Mamãe largou as louças no chão, fazendo um estrondo que me dói os ouvidos até os dias de hoje. Ela chorou como a pior das tempestades jamais choraria. Mãos de concha sob a face, ajoelhou-se no chão e pôs a libertar a dor que a consumia.
      Mamãe amava-me tanto que deixou o sentimento atravessar seu coração como uma lâmina afiada. Me amar a fazia lembrar de um amor do passado. Um amor que me deu pernas, braços e um juízo escasso.
      Ela foi até o meu quarto, trouxe o pequeno canário, abriu a gaiola e o danado perdeu-se de minha vista. Chorei nos braços de minha mãe e ela esperou que a última lágrima caísse para me dizer:
      - Seu pai também tem asas. Deixamos a janela aberta, meu amor. Ele bateu asas e virou esquecimento.
       Mentira. Meu pai era tristeza, dor e melancolia. Saudade. Estava escrito nos olhos molhados da mulher que me acolhia em seus braços: Eu era filho do sofrimento.
      - Seu pai também é canarinho.
      Não falei nada e escutei com atenção.

      - Ele quis morar nas nuvens. Lá o mundo parece feito de algodão, meu bem. A lua é de queijo e as estrelas são as almas de pessoas que já deixaram esta vida. Mas para entrar no céu e virar estrela, é preciso ter uma alma brilhante. As que não brilham, viram pedacinho de noite.
      - Papai virou noite ou estrela, mamãe?
      Ela deu um sorriso meia-boca, como quem esconde uma meia-lágrima.
      - Seu pai… Ora, seu pai é canarinho.
     A conversa completou um ano e meio de idade. Era meu aniversário. Assoprei quatro velas azuis e ganhei uma caixinha. Abri desanimado, o presente era pequeno demais para ser o videogame que tanto pedi. Ganhei uma medalha que trazia a imagem de uma avião.
       - Um enfeite de colar? Homens não usam colares, mamãe.
       - Abra e veja… Quando sentir falta de teu pai, abra-a novamente. E depois olhe para o céu. Ele vai estar olhando para você também. Não se sinta triste, nem desamparado. Ele te ama. Ele sempre te amou… Ele só não te amou mais que a própria vida. E a vida dele é voar, meu bem.
      - Meu pai é um avião, mamãe?
      - Mais que isso… Teu pai é militar.
       Abraçou-me. Abraçou-me como o mar que anseia proteger suas pérolas desprotegidas. E eu soube… Eu não era filho do vazio, do abandono ou do desamparo. Eu era filho do amor. Filho do amor de um homem pelo país. Papai está presente em cada mancha verde e amarela, em cada vento que sopra em meu rosto, enxugando-me as lágrimas. Papai é a alma viva de um coração solitário.
      O menino cresceu. Eu entendi que jamais fui uma criança sem rosto, um desconhecido. Eu sou filho da pátria. Um soldado de bandeira branca lançada ao vento.
      Mamãe também bateu asas. A medalhinha banhada em pranto permanece escondida no bolso da minha farda. E hoje olho pro céu… Mamãe dança sob seu mundo de algodão e papai continua voando até encontrar um novo pedaço de terra para pousar, se divertindo em pintar o céu de fumaça branca. Meu pai é militar. E eu? Eu sou o filho das asas metálicas.