domingo, 6 de maio de 2012

Florisbela, tão bela.

      Ela traiu-me, enganou-me feito uma leoa impiedosa. Deixem-me explicar como tudo aconteceu antes que Florisbela adentre no quarto e eu agarre-lhe o pescoço com unhas e dentes.
      Meu nome é Serafim Barbosa, trabalhava como ferreiro na velha fábrica de Belo Horizonte, no auge dos meus vinte e poucos anos, antes de eu mudar-me para São Paulo após o matrimônio. Morava com minha já falecida mãe e mais três irmãos que perdi de vista, numa casinha de pau a pique dada de presente pelo meu avô. Trabalhei desde os doze anos e as bolhas nas mãos não me deixam mentir. A vida foi desgraçada comigo, mas teve lá suas boas surpresas. Foi na capital mineira, dia dois de setembro que eu a conheci, na quermesse da cidade.
      Florisbela usava um vestido branco com um laço nas costas, que marcava perfeitamente sua cintura afilada de menina-mulher. Os cabelos soltos deixavam à mostra os longos fios aloirados pelo Sol e a pele branca entregava algumas sardas que davam-lhe o ar dos anjos mais adoráveis. Não contive os olhares afoitos. Ela não devia ter mais que quinze anos, era uma moça linda e encantadora. Ora, eu vos pergunto, que qualidade eu, um pobre ferreiro, teria para conquistar uma donzela tão formosa? Ainda não sei a resposta, meus caros. Mas é certo que ela olhara-me também.
      Um risinho seco, daqueles de canto de boca, desenhou-se nos lábios de minha menina. Tirei o chapéu surrado, dando uma ou duas ajeitadas no cabelo despenteado, e sorri-lhe de volta, tendo eu a audácia de mostrar-lhe meus dentes ralos. Aproximei três passos e perguntei seu nome. Ela ainda calou-se, fazendo-se de desentendida, mas soube que se chamava Florisbela. Não há nome que se encaixasse melhor. Uma flor, com beleza e espinhos inigualáveis.
      O namoro durou um ano e meio. Os pais de Florisbela, dois velhos imundos e esnobes, não suportavam a minha presença. Decerto que eu aparecia sempre de pés desnudos, vestindo-me com trapos e vergonha. Mas Florisbela não desistira de mim. À noite, quando eles saíam para passear na praça, a minha menina arrumava um jeito de despistar a governanta, afirmando que ia na confeitaria comprar alguns quitutes, e encontrava-me atrás dos murros da escola abandonada. Não haviam beijos ou carícias, eu no máximo apalpava-lhe as mãozinhas. Florisbela gostava de criar diálogos entre as estrelas e eu ria de sua inocência. Nossas noites eram repletas de sorrisos e histórias. Eu presenteava-lhe com rosas roubadas e ela retribuía com gritinhos de felicidade. Minha tão doce alma gêmea.
Certo dia, Florisbela chegou em mim aos prantos. Explicou-me em meio à soluços agoniantes que os pais estavam querendo mandá-la para estudar fora do país. Meu coração recebeu uma punhalada e eu quase perdi os sentidos naquele exato momento. Eu queria agarrá-la por entre os braços e impedir que tal barbaridade fosse feita com nosso amor. Como eu viveria sem minha Bela? Como? Não haveria maneira, eu morreria de inanição logo em seguida. Foi então que Florisbela disparou. "Leve-me embora contigo, vamos nos casar! Vamos fugir para longe, Serafim". Essas palavras soaram como fantasmas para mim. Com que dinheiro? Com que transporte? Para onde? Amor não sustenta a vida. Dinheiro sim. Vendo meu silêncio impertinente, Florisbela empurrou-me e pôs-se a chorar ainda mais, dizendo que eu não a amava. Uma mentira que doeu mais do que uma lâmina atravessando minha carne. Eu a amava mais que a mim mesmo.
Fui para casa desolado, pensando na proposta e no outro dia antes do raiar do Sol, aprontei-me de coragem, fiz as malas e fui para a sacada da casa de Florisbela. Duas pedrinhas na janela a fizeram despertar, e um sorriso apareceu junto com nascer do Sol. Nenhuma palavra a mais. Florisbela aprontou-se, desceu a sacada e fomos juntos para a estrada, com três malinhas e muito amor nas costas.
Casamos numa Igrejinha antiga que agora não recordo-me o nome, tendo apenas às bençãos de Deus e de um pastor que me devia favores. Mudamos para São Paulo e as coisas mudaram também. Nos cinco primeiros anos do casamento, vieram Edmundo e Frantchesca, duas criaturinhas que puxaram exatamente os tons aloirados da mãe e meus grandes olhos azuis. Para minha tristeza, Frantchesca morreu de febre alta. Florisbela ficou desolada, emagreceu uns três quilos, e Edmundo quase não recebeu atenção da mãe nesse meio tempo. Não comia, não bebia, apenas chorava e desidratava. As pétalas de minha flor caiam pouco a pouco.
Após voltar do trabalho, fui pegar meu menino na escola do bairro. Uma sexta-feira chuvosa, onde não havia outro som senão os ruídos das árvores banhadas pelo temporal. Peguei a mãozinha de Edmundo e encaminhei-me direto para casa, preocupado com minha Flor.
Encontrei um vazio devastador e um recado em cima da cama remendada: "Querido esposo, querido filho... Já sequei-me em lágrimas, virei mulher cadáver. Peço desculpas pelo que acabei de fazer, e quero-lhes dizer que os amo com todas as minhas inúteis forças. A vida abandonou-me, e encontrarei meu anjo nos braços do meu Senhor. Eu os amos, cuidem-se."
Florisbela traiu-me. Encontrei-me jogado ao mundo, como cão vagabundo, para que eu morresse pouco a pouco, ou visse meu filho morrer perante à minha invalidez. Florisbela foi embora, para todo o sempre. Jamais a vi novamente, mas a espero todos os dias no quarto. Sei que ela voltará! Sei que ela verá Edmundo formar-se numa boa escola, sei que ela escutará os passinhos do primeiro neto. A janela do quarto permanece aberta. Florisbela abandonou a vida, e abandonou-me junto. Ela traiu-me com a Morte, e deixou-me como herança apenas a vontade de desistir e as lembranças de um amor escasso.

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