domingo, 6 de maio de 2012

Filho das Asas Metálicas

      Nascemos homens e viramos ratos acovardados quando crescemos. Fui bravio o bastante para aguentar a agonia de vir ao mundo e fraco demais para querer continuar nele. Deixei o ventre quente de minha mãe e vim virar tempestade do lado errado. Um bebê pequeno, frágil, indefeso… Escolhido pelo azar. Pedaço de matéria tão insignificante que não servia para ser erro e acabou transformando-se em tragédia. Chorei. O choro de quem começa a vida morrendo. Mamãe amou-me pela primeira vez em meados da década de 90. Mas o tempo passou.
      - Você lembra seu pai!
      Ela dizia-me isso com uma ruga de descontentamento na testa. Sempre as mesmas palavras quando me comportava mal ou aprontava traquinagens. Nunca um elogio. Pai era sinônimo de repreensão. Eu lembro o vazio. Eu lembro um homem sem rosto, sem nome, sem forma ou cor. Eu sou a lembrança de um passado que não aconteceu.      
      - Quem é meu pai?
       Mamãe largou as louças no chão, fazendo um estrondo que me dói os ouvidos até os dias de hoje. Ela chorou como a pior das tempestades jamais choraria. Mãos de concha sob a face, ajoelhou-se no chão e pôs a libertar a dor que a consumia.
      Mamãe amava-me tanto que deixou o sentimento atravessar seu coração como uma lâmina afiada. Me amar a fazia lembrar de um amor do passado. Um amor que me deu pernas, braços e um juízo escasso.
      Ela foi até o meu quarto, trouxe o pequeno canário, abriu a gaiola e o danado perdeu-se de minha vista. Chorei nos braços de minha mãe e ela esperou que a última lágrima caísse para me dizer:
      - Seu pai também tem asas. Deixamos a janela aberta, meu amor. Ele bateu asas e virou esquecimento.
       Mentira. Meu pai era tristeza, dor e melancolia. Saudade. Estava escrito nos olhos molhados da mulher que me acolhia em seus braços: Eu era filho do sofrimento.
      - Seu pai também é canarinho.
      Não falei nada e escutei com atenção.

      - Ele quis morar nas nuvens. Lá o mundo parece feito de algodão, meu bem. A lua é de queijo e as estrelas são as almas de pessoas que já deixaram esta vida. Mas para entrar no céu e virar estrela, é preciso ter uma alma brilhante. As que não brilham, viram pedacinho de noite.
      - Papai virou noite ou estrela, mamãe?
      Ela deu um sorriso meia-boca, como quem esconde uma meia-lágrima.
      - Seu pai… Ora, seu pai é canarinho.
     A conversa completou um ano e meio de idade. Era meu aniversário. Assoprei quatro velas azuis e ganhei uma caixinha. Abri desanimado, o presente era pequeno demais para ser o videogame que tanto pedi. Ganhei uma medalha que trazia a imagem de uma avião.
       - Um enfeite de colar? Homens não usam colares, mamãe.
       - Abra e veja… Quando sentir falta de teu pai, abra-a novamente. E depois olhe para o céu. Ele vai estar olhando para você também. Não se sinta triste, nem desamparado. Ele te ama. Ele sempre te amou… Ele só não te amou mais que a própria vida. E a vida dele é voar, meu bem.
      - Meu pai é um avião, mamãe?
      - Mais que isso… Teu pai é militar.
       Abraçou-me. Abraçou-me como o mar que anseia proteger suas pérolas desprotegidas. E eu soube… Eu não era filho do vazio, do abandono ou do desamparo. Eu era filho do amor. Filho do amor de um homem pelo país. Papai está presente em cada mancha verde e amarela, em cada vento que sopra em meu rosto, enxugando-me as lágrimas. Papai é a alma viva de um coração solitário.
      O menino cresceu. Eu entendi que jamais fui uma criança sem rosto, um desconhecido. Eu sou filho da pátria. Um soldado de bandeira branca lançada ao vento.
      Mamãe também bateu asas. A medalhinha banhada em pranto permanece escondida no bolso da minha farda. E hoje olho pro céu… Mamãe dança sob seu mundo de algodão e papai continua voando até encontrar um novo pedaço de terra para pousar, se divertindo em pintar o céu de fumaça branca. Meu pai é militar. E eu? Eu sou o filho das asas metálicas.

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