domingo, 6 de maio de 2012

1945

      Hoje é aniversário de Aharon. Sete anos. Há dez dias atrás, às 13h47, a morte gritou. Era o alarme para levar os recém-chegados até o "banho". Eu e mais nove diabos ficamos encarregados da vil tarefa de manipular a multidão de ossos e sangue judeu prestes a ser derramado.
      A câmera de gás estava faminta. Crianças, velhos, adultos, todo tipo de carne. E no meio dos olhares perdidos, o pequeno Aharon; um anjo. Olhou-me como um carneiro olha para a faca que cortará seu pescoço. Eu senti-me imundo, mas não tão imundo quanto o cano da arma que apontava para as minhas costas e para as de meus companheiros, obrigando-me a apressar os passos e aumentar o tom de voz. O menino não largava da mão da mãe. Tão pequenino e magro que não parecia ter mais de cinco anos, tão fraco que mal conseguia andar. O segundo alarme soou e todos já estavam dentro do caixão.
      Eu mesmo acionei a liberação do gás. As lágrimas que escorriam dos meus olhos misturavam-se com as lágrimas de medo do menino Aharon. Culpa. Não demorou mais que três minutos e os gritos de dor silenciaram-se. Abrimos a câmera para a retirada dos corpos. Não havia gente. Havia apenas corpos mutilados, línguas cortadas e olhos arrancados pelo impacto da morte sangrenta. Levantamos verme por verme, até ouvirmos uns gemidos fracos. Virei-me para o barulho que, naquele local onde só o vazio da tristeza podia imperar, era ensurdecedor.
      - Está vivo, Caleb! Este ainda tem pulso.
Aharon estava vivo. O corpo da mãe caiu sobre ele, impedindo que o gás o atingisse. Era inacreditável. Eu e os outros levamos o pequeno para um local seguro, demos água e pão velho. Ele parecia estar bem, ainda que um tanto desnorteado. Ainda que não houvesse espaço, nós tínhamos um lema: A vida em primeiro lugar. Sabíamos que morte nos rodeava, que Aharon continuava em perigo, mas em Auschwitz nenhum coração será ignorado. Nenhuma Estrela de Davi se apagará por nossa indiferença.
      Eis uma vantagem nos campos de concentração. Sua ausência nunca é notada. Somos números. Bastava um pijama listrado e Aharon seria o 67. Sua morte? Imprescindível para os alemães, mas completamente ignorável pelos próprios capatazes. Juntamos o menino com os outros trabalhadores. Ficou encarregado de tirar os pratos sujos do refeitório. Uma tarefa arriscada. Sim, eu disse arriscada. Para cada prato esquecido, um tiro na cabeça.
      Cuidei daquele menino como filho. Os meus eu já havia queimado, junto com os outros 2.000 mortos. Toda noite eu dava-lhe pão e leite, ainda que fosse dormir com a barriga roncando. Contava-lhe histórias de quando eu era médico. Sim, fui médico. Hoje planto batatas, mas fui um dos melhores médicos de minha região. Tratei dos feridos quando tinha o privilégio de morar no gueto, junto com baratas e ratos. Mas não me chame de doutor. Me chame de 34.
      Eram 4h30 da manhã de hoje quando me acordaram aos berros. Senti a língua voltando para o esôfago. Era minha hora de matar ou morrer. Sempre me chamaram para executar os ladrões ou infratores da fábrica. Ou simplesmente... judeus. Era o vosso crime. Corri para o pátio, o oficial me aguardava.
      - Conheces esse demônio, Caleb?
      Era Aharon, meu menino. Emudeci. Comandante Burkhard apontava para ele com a arma em punho.
      - Pelo amor de Deus, Caleb, responda-me!
      - Sim senhor, conheço. É Aharon, trabalha no refeitório da fábrica.
      - Este verme bastardo manchou minha farda com borra de café. Tive a benevolência de dar-lhe apenas uma surra como punição, quando ouvi ele berrar por seu nome. O que és dele?
      - Nada, senhor.
      - Eu bem imaginei. Rapazinho, aproxime-se.
      Aharon permaneceu estático até ouvir a segunda ordem de comando. Chorava como criança recém-nascida, mas não dava um pio. As palavras eram traiçoeiras demais. O patife acariciou-lhe a cabeça raspada e deu dois tapas camaradas em suas costas franzinas.
      Burkhard sorriu como Lúcifer. Ofereceu-me a arma e a voz foi clara.
      - Atire.
      Empurrou Aharon para que caísse de joelhos na minha frente. Eu não poderia atirar. Eu preferiria a lançar aquela bala contra minha própria cabeça. Seria o certo a fazer... Mesmo sabendo que o corpo de Aharon cairia logo sob o meu. O menino lançou um suspiro: Frömmigkeit, bitte. (Piedade, por favor.)
      - Vamos, atire! Mate-o! Estraçalhe os miolos deste verme! Vamos, estais surdo, judeu maldito? Mate-o! Antes que eu o faça! E sabes que morrerá os dois. Estou dando uma chance. Mate o infeliz!
Fechei os olhos procurando uma saída à Gott. Aharon continuava de joelhos, choramingando, machucado e com olhos roxos de gazela ferida. A surra roubara-lhe dois dentes e a dignidade.
      - Atire! Vamos, atire! Atire de uma vez! Seja homem, Caleb!
      Gritei e pressionei os olhos, os dedos escaparam-me. Caí de joelhos também. O sangue quente de Aharon inundava-me os pés. O menino que ajudei a salvar caiu, assassinado pela arma que caía de minhas mãos. Eu o abracei e quis morrer também. Malditos alemães! Malditos! A minha única vontade era atirar na cabeça de Burkhard e logo em seguida desperdiçar a última bala em mim, um traidor, um assassino. Mas o demônio roubou o revólver de mim para que eu pudesse agonizar a morte do menino que salvou-me a alma, que fez-me sorrir por dez dias.
      O corpo continua lá. Pedaços de cérebro são comidos pelos ratos famintos e ninguém arrisca a tirar meu menino daquela situação deplorável. Ele não merecia aquilo. Se ao menos ele tivesse morrido naquela maldita câmera de gás... Se ao menos eu não o tivesse achado...
      E assim me despeço, com lágrimas nos olhos e coração espirrando sangue. Não tenho mais tempo para escrever. Escondam-se, por Deus! Escondam-se. O grito da morte soou novamente. Primeiro alarme.
      - Hey, Hitler!

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