domingo, 6 de maio de 2012

- Não olhe para mim!


       Ele estava ali, escondendo-se atrás da cortina azulada da janela com flores... Tão pequeno e frágil. Eu deveria estar segurando sua mão. O meu menino permanecia estático, com os olhos marrons petrificados e cabeça baixa. Lembrei-me das vezes em que vi aquela mesma expressão facial. Fechei os olhos.
Há três anos atrás ele vinha até meu quarto, pávido e desconfiado, derramando as mais barulhentas lágrimas. Batia os bracinhos contra meu travesseiro e não sossegava até que eu desistisse de argumentar contra seu pavor ridículo. Eu segurava sua mão e ele me guiava em silêncio até sua cama pequena e úmida.
       - Aqui mamãe! Ele está aqui!
       Meu menino tinha medo de monstros. Ele me descrevia uma criatura horrenda, gosmenta, verde e com uma boca larga cheia de dentes pontiagudos. Eu levantava o edredom e mostrava que não havia nada ali. Estava tudo bem, ele não tinha o que temer. Ele escondia-se atrás da minha saia, ainda atemorizado, olhando para todos os cantos em busca do monstro fujão. Olhava-me com olhos de amor, deitava-se mais uma vez e eu cantava para que o sono dos corações acalentados lhe visitasse novamente.
        Abri os olhos. Ele estava aterrorizado e a enfermeira tentava fazer com que ele se aproximasse de mim. Eu queria abraçá-lo e dizer que ficaria tudo bem. Eu queria...
       - Não olhe para mim! Não deixe que ele olhe para mim, tire-o daqui! Tire-o daqui imediatamente, não quero vê-lo!
       Ele chorou. O médico ainda tentou acalmá-lo dizendo que não havia o que temer, mas eu sabia... Meu menino tinha medo de monstros. Eu era um monstro. Mãos trêmulas e anêmicas, corpo debilitado, fétido e decrépito, os lábios desidratados só sentiam o salgado sabor da tristeza. A tosse era incessante, a pele já estava tão translúcida que era possível ver quase todas as minhas veias, e olheiras enormes e arroxeadas contrastavam com a palidez da minha face grotesca. Lembrei-me também do desenho de nós dois que guardava na cômoda do hospital. Redesenhava cada traço em meu pensamento conturbado pelos remédios. Uma mulher de longos cabelos castanhos segurando a mão de um pequeno menino risonho. Atrás da folha amassada, um recado: "Mamãe, aguente mais uns dias. Eu te amo". Os dias viraram meses, os meses viram anos. A quimioterapia arrancou-me fio por fio daquelas madeixas e o menino risonho chorava atrás do doutor, sendo homem antes do tempo, vendo sua mãe debatendo-se sob a cama.
       A moça de branco injetou-me um tranquilizante, mas a única agulha que eu sentia atravessando meu corpo era a incapacidade de abraçá-lo. Ele era tão pequeno... Uma borboleta cujo casulo abriram antes que aprendesse a voar. Como podiam ser tão truculentos? Ele era só uma criança, não tinha culpa. Até o espelho sentia repulsa de reproduzir a imagem que eu oferecia-lhe. Estava assustado, aterrorizado. Eu implorava para que o tirassem de seu próprio pesadelo. Eu não merecia seu olhar. Eu não merecia o toque de um anjo, minha carne estava podre e ardendo em chamas febris. Eu já não era mulher. Eu já não era mãe. Eu já não era humana. Meu corpo pulsava como o corpo de um verme também pulsa. A alma também perdera o brilho. O coração batia em outro peito.
       Adormeci. Três horas passaram-se e quando abri os olhos novamente, exausta pelo simples ato de respirar, eu o vi. Estava mais sossegado, com o dedo na boca e o velho urso de pelúcia embaixo do braço. Aproximou-se de mim com um sorriso tímido, mas ainda com a cabeça baixa em sinal de relutância. Ele beijou meu rosto rapidamente e se afastou... Eu sorri. Sorri com o desespero de quem perdera a felicidade. Algumas lágrimas pequeninas escorreram pelo rostinho que me fitava embasbacado.
       Eu queria ver aquelas lágrimas... Queria vê-lo chorar no dia de seu casamento, queria tratar de seus joelhos feridos e de seus amores incompletos. Gostaria de vê-lo tomando suas próprias atitudes e segurar sua mão para reergue-lo quando fizesse alguma besteira. Eu daria aquela viagem à Paris quando completasse dezesseis anos, prepararia um delicioso jantar para quando ele quisesse me apresentar a primeira namorada. Queria aplaudi-lo quando recebesse seu diploma de advogado. Estaria chorando também, com uma câmera na mão e de coração estufado pelo orgulho de ver meu grande homem formado. Eu queria ouvir os passinhos de meus netos correndo pela casa. Eu queria... Viver e vê-lo vivendo.
        Enquanto isso ele me via morrer. Cada dia... Ele me via morrer. Não eram apenas os aparelhos, tubos e furos em minha pele que me faziam persistir. Era ele. Um pequeno grão perdido na multidão de dissabores. O que seria dele sem alguém para cuidá-lo e protegê-lo? Meu menino não sabia, mas ele era sozinho. Eu o ajudei nos primeiros passos, mas quem diria que eu os desaprenderia. Eu o ajudei a alimentar-se sem ajuda, mas hoje minhas mãos não aguentam o peso da colher. Eu não desistiria tão facilmente. Ele precisava da minha vida mais do que eu mesma.
       Ele atirou-se em meu corpo, abraçando-me com todas as suas pequeninas forças. E neste momento eu tive certeza... Ele acabara de me libertar. Eu podia ir em paz. Ele não precisava de mim, já era um homem. Um homem ou um menino bravio o suficiente para abraçar o próprio monstro. Sussurrei baixinho em seu ouvido:
       - Perdoa-me, amor. Perdoa-me por não possuir a perfeição que tu precisas. Perdoa-me por te amar tanto a ponto de não conseguir viver vendo teu desespero. Perdoa-me pela fraqueza... Pelos momentos que não poderei viver ao teu lado. Perdoa-me, meu anjo, se a dor for tão grande que tu não consigas contornar. Mamãe disse que seria forte, mas o relógio está se apressando. Perdoa-me por desistir do teu abraço e do teu sorriso, mas já não posso com esta maldita doença. Meu amor, perdoa-me. Apenas perdoa-me porque no teu perdão eu talvez consiga me encontrar.
       Larguei sua mão lentamente... Fechei os olhos pela última vez. Meu menino já não acreditava em monstros.

Um comentário:

  1. Obrigada, Charlie. É inenarrável o que sinto quando leio o que escreve, e como passa a carne das palavras. Deixa de ser um pensamento hipotético, e faz doer cada linha e eu só consigo agradecer, obrigada.

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