domingo, 6 de maio de 2012

Refúgio - Parte I


      Meu nome é José Emílio da Costa Soares, tenho 85 anos e sou natural de Belo Horizonte, mas moro em São Paulo não faz menos que trinta anos. Mudei-me para cá com Eleonora e meus três filhos. Casei cedo, como era de costume na época. Se não me falha a tola memória, a cerimônia oficial aconteceu em meados de 1945, mas o namorico já vinha de muito antes.
      Eleonora surgiu com um vestido rendado branco de gola alta, daqueles com muitos babados e essas tranqueiras que as dondocas encaravam por moda. Ah, ela estava deslumbrante... Eu fui um rapazote de sorte por ter posto uma aliança naqueles finos dedos de unhas amarelo-cobre. Pena que não pude presentear-lhe com a joia que queria. Custava o que hoje não deve passar de dois mil reais. Eu era ajudante na padaria de meu pai, minha família nunca teve muita condição financeira. E depois que ele faleceu decorrente de uma febre alta, não tive outra saída senão arrumar as trouxas.
      Perdão se me apressei. Vamos recomeçar. O nome não interessa, o lugar de onde vim pouco importa. Hoje meu lar é aqui junto com os outros velhos. Eles fedem a talco, mas fazem menos graça que bebês. Alguns enlouqueceram, outros apenas estão doentes de solidão. Conheço apenas quatro que vieram para cá por livre e espontânea vontade, se é que posso chamar a tristeza e o medo angustiante de padecer sozinho de liberdade. A maioria foi jogada aqui como cão sarnento pelos filhos ou parentes próximos. Filhos... Malditos. Embora tão desgraçados, o meu maior medo é esquecer-me das feições de minhas crianças.
      Você deve estar se perguntando como eu cheguei aqui. Peço desculpas pela minha fantasia, mas um pedaço de papel e uma caneta quase falhando são os únicos amigos fiéis que um velho decrépito pode ter. A história é longa, meu caro. Tão longa quanto o meu penar. Não quero pular os detalhes, já que um diário não tem limites de linhas e lágrimas, mas também sei que a cabeça é lacunada e o coração mais ainda.
      Começaremos então por Belo Horizonte, ano 1937. Foi nessa época que mudei para a fazenda amarela de meu pai quando mamãe largou-nos. Foi uma infância simples, mas hoje não tenho do que reclamar. Uma das minhas maiores alegrias era roubar frutas no pomar do velho Olaor. Parece bobagem, mas foram os melhores joelhos ralados e palmadas que poderia arrumar. Matava as aulas para nadar no riacho em frente à escola, levava puxões de orelha do diretor carrancudo e nunca faltava uma cantiga entre as rodas de amigos. O caminho até o colégio era cheio de pedregulhos e não tinha dinheiro para comprar sapatos bons. Os meus eram remendados. Era muito mais cômodo cortar o trecho e ir molhar os pés na grama umedecida do campo.
      Dona Jezebel também não escapa-me da memória. Era a preta velha encarregada de ajudar meu pai na cozinha. Seu salário era casa, roupa e comida. Reclamava dia e noite de dores nas costas e eu achava seus gemidos insuportáveis. Constantemente perdia os óculos, pedia-me ajuda para procurar e eu lhe questionava aos berros: "Céus, Dona Jezebel, cole esses óculos na cara! Todo dia é a mesma ladainha". Jezebel ria e dizia que um dia eu entenderia... A velhice um dia chegaria à minha cabeça também. Mas nunca pensamos nisso, não é? Somos sempre jovens, cheios de vida, com joelhos bons e preocupações supérfluas. Quem dera eu pudesse voltar no tempo e dizer ao menino Emílio para procurar os óculos sem pestanejar, porque agora mesmo eu já não sabia onde enfiara os meus.
      Era véspera de Páscoa. Única época, fora o natal, em que eu gabava-me da profissão sofrida de meu pai. Contudo, as aulas nesse período duplicavam as asneiras. Houve dias em que fizemos três redações apenas para explicar o sentido real da Páscoa. Que moleque de dez anos quer saber disso? Ah, não. Gonçalves, meu melhor amigo, convidou-me para ir matar aula no riacho com os outros da turma ao lado. Eu não pensei duas vezes. Pedi a bênção ao velho, abotoei o macacão, pus os livros nas costas e segui reto até próximo ao caminho de pedregulho... Logo depois, dobrei. Encontrei Gonçalves próximo à grande árvore e seguíamos já tirando as roupas e largando o material, gargalhando e maldizendo a pobre professora.
      Foi exatamente nesse dia, nessa aprazível véspera de Páscoa, que conheci minha Eleonora.
      Sorte que os papéis não têm ouvidos, senão já teriam me dado as costas como todos os outros. Perdão por interromper minha narração. É hora do xadrez e tenho que esconder o diário antes que alguém o veja e me encha a paciência já tão desgastada. Deveria dizer até breve? Ou quem sabe... Até onde meu coração aguentar bater.

Nenhum comentário:

Postar um comentário