sexta-feira, 11 de maio de 2012

Refúgio - Parte II

      Boa tarde. Perdoe-me a demora, eu sei que prometi voltar o quanto antes, mas confesso que desisti. A falência da motivação e o cansaço que me atinge o punho não deram tréguas essa semana. O que eu quero lembrar, muitos já esqueceram. Mas hoje, meu amigo, hoje os céus deixaram escapar o aviso detrás das nuvens. Os passarinhos estão em farra e o céu quis pintar-se de violeta. Cenário perfeito para dedicar-se às memórias.
      Sem mais delongas, voltemos então para aquela véspera de Páscoa. Meu ímpeto de pular no riacho junto com Gonçalves foi cessado quando avistei a figura de uma menina com os cabelos cor de fogo trançados, penteando a boneca de um olho só. Tapei a boca de meu amigo que ainda estava a gargalhar sem parar e nós dois olhamos embasbacados para a pequena ruivinha que cantarolava uma melodia de entristecer até mesmo o coração das rochas. Uma garota? E ainda, uma garota sozinha? Ora, aquele riacho não era ambiente para uma mocinha, e sabíamos disso. Crianças não passam de papagaios que reproduzem a fala dos adultos, e esses velhos ditos nós conhecíamos de cor. Moça direita não anda na rua desacompanhada. O que ela tinha na cabeça, afinal? Meninas costumam ser mais ajuizadas que meninos, envelhecem mais cedo e nos vemos ainda moleques no auge dos dezoito anos, enquanto elas cuidam de um marido e uma barriga. Foi então que pensamos: Deve estar perdida.
      - Ei, você!
      A menina nos encarou atemorizada e fugiu para detrás de uma árvore fina e sem folhas. Pude ver exatamente a cor de seus belos olhos de ametista por detrás dos galhos mortos. Na correria, deixou cair a boneca velha e quase deixou escapulir algumas gotas salgadas. Decerto, temia que fizéssemos algum mal à sua colega dos cabelos de corda.
     - Está perdida? Como se chama?
     A menina perdeu a timidez. Foi aos poucos ajeitando o vestido, aprumando-se toda e apertando muito bem o laço de fita que trazia na cabeça, enfeitando os fios avermelhados. Parecia uma senhora de vinte e poucos anos que acabara de levar um susto daqueles. Uma verdadeira donzela desengonçada. Deu três piscadelas rápidas e se apressou em nos falar.
     - Me chamo Eleonora. Homessa, não estou perdida! Moro nas redondezas. E vocês, cavalheiros?
     Eu e Gonçalves nos fitamos e dissemos em perfeito coral: "Cavalheiros?". O outro já queria rir. Ninguém nunca o havia chamado de cavalheiro antes. Na verdade, nem sabíamos o que queria dizer, só entendíamos que não havia cavalo algum por perto. Finalmente, peguei ares de coragem para dizer:
      - Eu me chamo Emílio. E esse é Gonçalves, meu amigo. Viemos tomar um banho pois fomos dispensados da aula mais cedo. E você, o que fazes aqui? Está perdida, com fome? Podemos pegar algumas frutas se quiser, será um gosto.
      Gonçalves me deu uma cotovelada. Decerto, estava falando feito um tolo. Eleonora riu.
      - Dispensados, claro... São dois ociosos. Não estou com fome, trouxe pão e bolo na merendeira. Mamãe mesmo que preparou, caso eu sentisse o estômago roncar. Mas fico grata, senhores. Estou aqui porque Maria só sabe fazer poesia quando escuta a sinfonia das águas.
      - Quem é Maria? - perguntei alongando o pescoço para ver se realmente só havia nós três ali.
      - Minha boneca. Ela é uma grande escritora!
      Rimos gostosamente. E só paramos quando percebemos um leve inchaço nas bochechas de Eleonora. Estava furiosa.
      - Não vejo motivo para graça. Meninos... Acham que tudo é pilhéria. - e sentou-se novamente na pedra próxima ao riacho, ignorando nossa presença e pondo-se a pentear sua Maria.
      - E meninas não deveriam ficar sozinhas. Vamos lá, vá você e sua Maria para casa. - Provocou Gonçalves.
      - O que? O que foi que disse? Por que meninas não devem ficar sozinhas?
      - Ora, porque são meninas.
      - Tem graça...
      - Não devem e pronto.
      - Pois saibam que sei me cuidar muito bem sozinha. Agora se não se importam, gostaria de apreciar o sossego que vim buscar.
      - Você fala engraçado.
      - Engraçado?
      - Cuak, cuak! Você é um papagaio. Só sabe repetir. És uma tonta!
      - Oh, céus...
      Dei um pontapé em Gonçalves que o fez morder a própria língua.
      - Desculpe Gonçalves... Ele não está acostumado a lidar com meninas.
      - E você está?
      - Bem, eu... eu...
      - Não está. Meninos não gaguejam perante meninas.
      - Não?
      - Não.
      - Então o que fazem?
      - Mamãe diz que eles nos chamam pra dançar.
      - Dançar?
      - Valsa.
      - Eu não sei dançar valsa, e aqui não tem música.
      - É verdade... Bem, acho que mamãe está enganada. Enfim, continuem o que estavam fazendo. Ou tentando fazer, não sei.
      - Você tem quantos anos?
      - Oito e meio.
      - E vai ficar aí? Nos olhando?
      - E onde está o problema?
      - Você é menina!
      - Por Deus, eu sei que sou menina. Já perdi as contas de quantas vezes ouvi que sou menina.
      - O que quero dizer é que não deve nos ver em trajes íntimos.
      - Pois se quiserem, nadem de roupa. Daqui eu não saio. E estão atrapalhando a concentração de Maria. Pelo visto, hoje não tem poesia.
      Ficamos em silêncio por dois minutos. Tempo demais para três crianças tagarelas. Você deve estar se perguntando como lembro de tudo isso, se antes mesmo havia dito que minha memória era falha. Mas garanto, lembro de cada travessão que expus nestas linhas sorridentes. Não lembro nem mesmo do que a enfermeira me disse ontem, mas lembro exatamente de tudo, como se os mesmo passarinhos que ouço agora cantassem para nós naquela tarde quente em especial.
      Gonçalves deu um pulo na água de cueca e tudo. Ele havia ido lá para nadar e não era a presença indesejável (e maravilhosa) de Eleonora que os planos sairiam do curso.
      Olhei para ela com meio sorriso e obtive como resposta um desdenhoso: "E você virou estátua?". Fui logo atrás de Gonçalves. Ríamos feito duas hienas escandalosas, mas eu não tirava os olhos da menina que cantarolava concentrada na arrumação dos cabelos de Maria. E ela fingia não me olhar também, mas pude ver suas mãozinhas em cima da testa para tapar o Sol e nos espiar melhor. Mas quando eu olhava, ela fingia estar enxugando o suor e logo voltava ao que estava fazendo. Achei graça. Estava apaixonado pela primeira e única vez.
      Esse ponto final vira reticências, amigo. Perdoe-me... Não vi o tempo passar e os passarinhos já buscam abrigo dentro das árvores. Sinal de que é hora das memórias também dormirem, senão elas se perdem por aí como vento em meio à furacão. Velhos dormem cedo para que a alma não esteja cansada amanhã. Que Deus me ajude a suportar mais um dia. Durma bem, meu caro. Até mais ver.

2 comentários:

  1. é realmente o melhor coisa que já li dentre todos o blogs que conheço, ou só passei, sei que estou muito atrasada mais como queria ter lido esse texto no dia do meu aniversário, se não for incomodar, pode me dizer quem o escreveu!? Garanto que não irá precisar me chamar pra dançar valsa.

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    1. Obrigado. Eu mesmo, rs. Faz parte de um conto que eu ainda preciso elaborar e terminar. Mas fico feliz que tenhas gostado e espero que consiga agradar cada vez mais, não? Muito obrigado mesmo.

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