A beleza existe em tudo - tanto no bem como no mal. Mas somente os artistas e os poetas sabem encontrá-la. - Charlie Chaplin
domingo, 30 de dezembro de 2012
O Sabor que Mata e Apressa - Karina Buhr
Glutamato monossódico. Aquela coisa que tem no tempero do miojo e em um monte e comida expressa, porque a gente tem muita pressa, pra deixar os sabores mais aguçados. Sabor já aguça, existe pra aguçar, não pra ser aguçado. Antes, tinha guerra. Dizia-se especiarias. Brigava-se por tempero. Nossos ouvidos e olhos, além de nossa goela, receptora de hormônios de galinhas inchadas, recebem toneladas do tal aditivo. Senão, os apressados não são fisgados.
A música precisa ser cada vez mais rápida e alta e só mais rápida e alta. Não pra acrescentar, mas pra trocar, exterminar outras formas. Os peitos cada vez mais inflados, caso pequenos sejam. Se forem grandes, o ideal é diminuí-los, pra depois inflá-los em métodos atuais. O videoclipe de quatro minutos é longo, a edição do filme tem que deixar o sujeito tonto. Não é pra acrescentar, é pra trocar, pra acompanhar a estabanação geral. O grande lance é nausear a criatura, pra emocioná-la.
São Paulo contém glutamato. Aqui, até vereador glutamata. Ele abusa do tempero, ele não mata um, mata 36. O que é um, nos tempos de hoje? Cada vez menos com pausas, cada vez mais agonia, cada vez menos silencia. A campeã era a estação Sé, lá pelas 18h. Foi ultrapassada, coitada, por uma linha amarela. Saí do Butantã tranquila. Ia caminhando, pensando e o ônibus chegou chegando. Aquela lotação que a gente já conhece, mas achei todo mundo mais apressado naquele dia. Quando aconteceu um movimento de descida coletiva, fui junto. Não contrariaria o fluxo, eu estava tranquila. E fui levada, sem me esforçar, pra estação do metrô. Não precisava, mas ia ser bom pegar o metrô, chegaria mais... rápido.
Ainda sem forças pra sair do fluxo, minha alegria era quando chegavam as escadas rolantes. Aí que eu respirava tanto! Mas elas acabam um dia. Cheguei onde queria e todos queriam também, na Avenida Paulista. Fiz todo o percurso sem prestar atenção em nada, sem olhar indicação de sentido, só deixei fluir e, pela primeira vez, isso tinha um sentido ruim. Cheguei ao meu destino antes da hora. E fiquei esperando meu namorado, olhando o povo apressado.
Outro dia, fui assistir de novo a um filme de que gostei muito, O sétimo selo. Me deu uma coceira no braço, uma sede, achei o sofá duro. Não conseguia desligar do dia, aí me deu um sono, irreal pra mim naquele horário. Decepcionadíssima, levantei e fui dormir. Um desfecho medíocre na minha crise de abstinência monossódica. É um filme glutamato zero! É um filme força total, que bate na cara, mostrando que a gente talvez tenha perdido a capacidade de ser espectador que respira.
Num ataque não habitual de otimismo, pensei que não! Um banho de mar pode resolver. Um banho de mar, com certeza, resolve. Só não sei quando vai dar, mas se tem algo que resolve, é um banho de mar.
Baiana, recifense, paulistana e universalista, Karina Buhr é cantora, compositora, percussionista e desenhista.
Texto intitulado "O Sabor que Mata e Apressa", originalmente postado na coluna da "Revista da Cultura", na edição de novembro de 2012.
Como Ser Feliz na Cidade de Feliz? - Fábricio Carpinejar
Em Feliz, cidade de onze mil habitantes encravada no vale do Caí, os motoristas ainda lavam seus carros, as crianças ainda lavam seus cachorros, os estudantes ainda esperam o feijão brotar no algodão na escola, as faxineiras ainda passam óleo de peroba nos móveis, os filhos ainda ajudam a separar marinheiro do arroz, as famílias ainda emolduram fotos da primeira comunhão, os relógios ainda são regulados pelas badaladas da igreja, os homens ainda discutem se Deus existe bebendo cerveja.
Ainda são feitos trotes, ainda se borda, ainda se forram gavetas com papel-presente, ainda se recebem visitas na sala de estar, ainda se descasca laranjas, ainda são feitas contas no papel, ainda há tempo para o leite ferver e o bolo descansar, ainda se conversa à toa na varanda, ainda se deixam o carro aberto e as roupas no varal. Não duvido que a lata de azeite ainda seja furada com um preguinho.
É mais simples ser feliz na cidade de Feliz e nem estou falando do alto índice de alfabetização de 98%.
São as delícias de coisas singelas. Como colher morangos.
"Em maio, pelos cachinhos, sei que teremos uma safra boa e que não passaremos sufoco. É a minha maior felicidade, eu me sinto uma noiva", conta a agricultora Cátia Martins, 32.
Ela veio do interior de Santa Rosa com o marido, Admir, pela tranquilidade. Não se arrepende. Pode realizar o sonho de quatro filhos em escadinha, como nas antigas famílias: Felipe (13), Pablo (9), Vinícius (6) e Júnior (4).
Uma das paixões felizenses é andar a pé, passar pela Ponte de Ferro (trazida da Bélgica e instalada em 1900) e espiar como está o humor do Rio Caí. E também aprender um segundo idioma em casa. A dúvida é se a primeira língua é aportuguesa ou a alemã. Para não sofrer com o dilema, fala-se o dialeto Hunsrückisch, originado na região de Hunsrück, no sudoeste da Alemanha, e abrasileirado no sul do país.
A fala é rápida, a ponto de não se perceber diferença entre o nome e o sobrenome.
- Qual é seu nome?
- Talcilolorscheiter
- IlsunStumm
- Iracistumm
"Nossa alegria é trabalhar demais para fazer bastante festa, ter uma hortinha para passar o tempo e um ser vizinho do outro. Aqui não falamos mal das pessoas, falamos a verdade", ri Talcilo, 49, que costuma frequentar a residência do casal amigo Ilsun e Iraci.
Para Clarissa Herter, 17 anos, alegria é comemorar com um folhado de salamito. "É meu luxo", confessa, com o salgado recém embrulhado da Panificadora KS.
Ela acabou de ser contratada para seu primeiro emprego na Hidroget, como analista, selecionada após um ano de curso.
"Agora falta o primeiro namorado", completa.
Ela se encabula para contar onde mora com a mãe, Marlise. Diz, baixinho: - Bananal.
Ficar envergonhada é também um contentamento.
Em Feliz, ainda é possível descobrir as espécies dos pássaros pelo canto.
- Tesourinha? Siriri? João-de-barro?
O músico Jair Silva, 41, o Jabá, vai antecipando os sons do alto das árvores para sua namorada Andrea Barbosa, 27.
"Assim que ele me canta", ela brinca.
O casal é feliz namorando toda manhã no Parque Municipal. São 25 hectares de sossego, chimarrão e concerto gratuito de aves.
"Não existe como ser feliz sem o Parque", afirma Jair, lembrando que é o local das duas primeiras festas do município (Festa da Amora, Morango e Chantilly e Festival Nacional do Chope).
"Não existe como ser feliz sem Jair", aproveita Andrea.
Os dois se beijam longamente. Com aquela mansidão boa de branco de praça, de ruas vazias, de amor público.
Perder tempo parece que é ganhar felicidade.
Crônica intitulada "Como Ser Feliz na Cidade de Feliz?" escrita por Fabrício Carpinejar no livro "Beleza Interior, lançado em novembro de 2012.
Ainda são feitos trotes, ainda se borda, ainda se forram gavetas com papel-presente, ainda se recebem visitas na sala de estar, ainda se descasca laranjas, ainda são feitas contas no papel, ainda há tempo para o leite ferver e o bolo descansar, ainda se conversa à toa na varanda, ainda se deixam o carro aberto e as roupas no varal. Não duvido que a lata de azeite ainda seja furada com um preguinho.
É mais simples ser feliz na cidade de Feliz e nem estou falando do alto índice de alfabetização de 98%.
São as delícias de coisas singelas. Como colher morangos.
"Em maio, pelos cachinhos, sei que teremos uma safra boa e que não passaremos sufoco. É a minha maior felicidade, eu me sinto uma noiva", conta a agricultora Cátia Martins, 32.
Ela veio do interior de Santa Rosa com o marido, Admir, pela tranquilidade. Não se arrepende. Pode realizar o sonho de quatro filhos em escadinha, como nas antigas famílias: Felipe (13), Pablo (9), Vinícius (6) e Júnior (4).
Uma das paixões felizenses é andar a pé, passar pela Ponte de Ferro (trazida da Bélgica e instalada em 1900) e espiar como está o humor do Rio Caí. E também aprender um segundo idioma em casa. A dúvida é se a primeira língua é aportuguesa ou a alemã. Para não sofrer com o dilema, fala-se o dialeto Hunsrückisch, originado na região de Hunsrück, no sudoeste da Alemanha, e abrasileirado no sul do país.
A fala é rápida, a ponto de não se perceber diferença entre o nome e o sobrenome.
- Qual é seu nome?
- Talcilolorscheiter
- IlsunStumm
- Iracistumm
"Nossa alegria é trabalhar demais para fazer bastante festa, ter uma hortinha para passar o tempo e um ser vizinho do outro. Aqui não falamos mal das pessoas, falamos a verdade", ri Talcilo, 49, que costuma frequentar a residência do casal amigo Ilsun e Iraci.
Para Clarissa Herter, 17 anos, alegria é comemorar com um folhado de salamito. "É meu luxo", confessa, com o salgado recém embrulhado da Panificadora KS.
Ela acabou de ser contratada para seu primeiro emprego na Hidroget, como analista, selecionada após um ano de curso.
"Agora falta o primeiro namorado", completa.
Ela se encabula para contar onde mora com a mãe, Marlise. Diz, baixinho: - Bananal.
Ficar envergonhada é também um contentamento.
Em Feliz, ainda é possível descobrir as espécies dos pássaros pelo canto.
- Tesourinha? Siriri? João-de-barro?
O músico Jair Silva, 41, o Jabá, vai antecipando os sons do alto das árvores para sua namorada Andrea Barbosa, 27.
"Assim que ele me canta", ela brinca.
O casal é feliz namorando toda manhã no Parque Municipal. São 25 hectares de sossego, chimarrão e concerto gratuito de aves.
"Não existe como ser feliz sem o Parque", afirma Jair, lembrando que é o local das duas primeiras festas do município (Festa da Amora, Morango e Chantilly e Festival Nacional do Chope).
"Não existe como ser feliz sem Jair", aproveita Andrea.
Os dois se beijam longamente. Com aquela mansidão boa de branco de praça, de ruas vazias, de amor público.
Perder tempo parece que é ganhar felicidade.
Crônica intitulada "Como Ser Feliz na Cidade de Feliz?" escrita por Fabrício Carpinejar no livro "Beleza Interior, lançado em novembro de 2012.
terça-feira, 18 de dezembro de 2012
Sobre abandonos e sobre amor. Sobra arrependimento e sobra tristeza.
Eu permaneço estático e inquieto. A mordaça do presente ganhara uma ambivalência cruel. Eu sou tudo e eu sou nada, eu sou grito e sou silêncio. Talvez o nosso passado seja mesmo essa camisa de força toda. Essa necessidade de ouvir o mar através das conchas e colchas, esse absurdo de criar raízes na lacunas dos teus olhos tão preenchidos de monomania. E do futuro, o que vai ser? A infertilidade do meu orgulho abortou toda a seiva que minha memória precisava para manter-te viva no meu peito.
Os meus dedos doem e sangram em cinza monótono. Sangram num barulho de teclas infernal e superficial. Todos veem a beleza melancólica que do meu sangue brota, mas só tu sabes a sujeira abrigada embaixo das minhas unhas. Todo o medo de ser aquele que esquece, aquele que vê amor na despedida, o chão sem pegadas, o agrotóxico de uma plantação de perfume. Eu não nasci do teu ventre, mas tudo o que sou é teu fruto. Fruto apodrecido e sem açúcar, mas é teu. Toda essa enchurrada de pretéritos imperfeitos impregnados no meu calvário de ser pele solitária.
Tudo é semente do teu seio, tudo é mapa sem recompensa. O que seria de mim, se o futuro estivesse aqui, quando não dou conta de nascer de mais de um passado? O triste conto da pedra amarrada no pé de um afogado. A água e o pão da vida não me serviriam mais se eu soubesse que, de novo, eu azedaria a felicidade como vinagre. Minha única chance de sobrevivência é ser essa espécie de aberração desmemoriada que não aceita vir ao mundo sem antes passar pelo teu colo. E por isso peço perdão pela situação horrenda em que te coloquei. Amei-te e dei-te a alegria do peito inchado, mas do coração que fertilizamos juntos, nasceu a tristeza que anda, fala, e te abandona.
Novamente, ambivalência. Eu jurei que daria a vida por você, mas neguei morrer quando o punhal acertou minha consciência, porque minha vida não era e nunca foi o entra e sai de ar nos pulmões e a carne livre de vermes. A minha vida, desde que você me gerou, sempre foi amor. E foi tudo o que pude te oferecer, achando que o fim do amor era a eternidade de dois esqueletos no mesmo caixão. Erro meu. A minha vida sempre foi amor, e eu te dei amor até que o amor em si se esgotasse, mas o esgotamento do amor é saudade. E o resultado é que sou filho do adeus que recusou-se a morrer em teu nome.
Todo esse arrependimento é claro como Clara é a minha dor. Eu apenas sinto a sua falta. Eu sinto falta daquela camisa de força. Eu sinto falta do futuro que nos foi negado e eu preferi esquecer.
Odeio essa ambivalência de você não estar aqui e eu continuar com o cordão umbilical impresso em tudo o que escrevo. Meu amor por você é toda essa sujeira embaixo das unhas que não escorre junto com o sangue dos meus dedos.
Então, cadê sua Ana Maria Braga agora?
Ingredientes:
Quatro esperanças mexidas
Sal a gosto (cuidado pra não chorar demais)
Três doses de álcool
Um amor do passado
Uma canção dos Beatles
Uma pitada de desespero
A insônia da madrugada
Sangue em banho-maria
Cereja
Modo de preparo:
Descongele o amor do passado e misture com quatro colheres de lágrimas. Espere a insônia ferver, escute a canção dos Beatles e bata tudo por dez minutos. Junte a mistura ao forno, e prepare a inspiração para a cobertura. Separe o álcool e as esperanças, corte tudo em cubinhos, mexa numa panela quente até não sobrar nenhum pedaço visível. Bata o sangue no liquidificador, mas tenha certeza que não deixou nenhum pedaço do seu coração cair, senão a receita fica com gosto de vinagre. Tem que ser sangue bem morto que é pra render bem. Monte todos os ingredientes num recipiente de vidro. As camadas de dor no fundo, que é pra ninguém perceber. Por fim, ponha a cereja e um beijo no papel. De sobremesa, se preferir, compre uma tristeza com o perfume dela que a gente encontra em qualquer supermercado.
Servir o poema simples ou acompanhado de desilusão.
sábado, 10 de novembro de 2012
Minha intenção nunca foi comparar você com um frango.
Não, nunca foi. O problema está em você. Inacessível. E eu não gosto de estrelas. Um céu estrelado é como um livro grifado com marca-texto amarelo. Uma cor feia que esconde minhas palavras preferidas. E esconde mesmo. Inúmeros textos eu já escrevi sobre um céu limpo, comum nas noites em que alguém chora as nuvens.
É por aí que começa a tua culpa. Tão ridiculamente distante que parece uma estrela. Ou melhor, tua culpa é não parecer. O que há de mais inalcançável do que um corpo celeste? O teu corpo, diria eu e todos os meus pontos pela metade. O teu corpo e o teu cheiro que lembra o álcool das minhas bebedeiras inconformadas com a solidão. Tua culpa é não parecer com estrelas, com Luas, com Sóis e aquela porcalhada toda que só bêbados, românticos e astrônomos, com menores razões, se preocupam.
Mas não imagino estrelas. Estrelas cegam, estrelas morrem. Além de inalcançáveis, não perduram, não se sustentam sem brilhar. É de um narcisismo que só eu me permito ter e não tolero em mais ninguém. Você não é e nunca será uma estrela, porque estrelas ainda podem cair. Se você cair, eu não tenho mais nenhum pedido, nenhuma razão, nenhum motivo pra acreditar que o céu seja mesmo um bom guardião de tudo aquilo que eu mais amo.
Vira-lata. É isso que eu sou. Vira-lata faminto, sem pelo, de dente torto, com pulga e carrapato. Tudo o que eu tenho direito, menos você. Aquele desejo mais proibido, segundo o dono da padaria. É, você não passa da droga de um frango de padaria. Que não me alimenta, mas me mantém em pé. Que não me cuida, mas que fazem alguma coisa brilhar e rodar dentro das minhas pupilas, o que já é efeito psicodélico demais para quem só vê lixo e pessoas de olhares desprezíveis.
A única coisa que eu queria era que você descobrisse que morrer devorada por mim é melhor do que morrer espatifada… Por mim também, que mantenho o meu céu limpo com medo da tentação de querer te ver. Você está ali. Atrás do vidro. Eu quase posso sentir, eu quase posso matar a fome finalmente. Mas não… Você me deixa morrer. O seu dono de padaria só te aceita vendida, e eu não pago por aquilo que já morreu, por aquilo que já é meu, mesmo sem ser. Eu não tenho forças pra brigar ou morder ninguém, não tenho binóculo e nem sei uivar. Eu não vejo as sobras do piquenique, a metade do sanduíche que aquele senhor deixou cair no chão, a lixeira do restaurante. Tudo a minha volta. Todos os restos e todos os corpos. Mas eu só vejo você. Morta. Inalcançável. Quase cegante. Sangrando pra mim. E a minha boca saliva…
quinta-feira, 4 de outubro de 2012
Comunicado.
Refúgio está temporariamente cancelado até eu organizar minha vida escolar e sentimental. Agradecido.
sábado, 18 de agosto de 2012
- Olha, pai, sem as mãos! Sem você.
A estante de troféus está vazia, a porta roída pelo descaso jamais ameaçou tremer a maçaneta. Nenhum movimento de espionagem porque ainda sou pequeno demais para janelas e decepções. A estante de troféus está vazia porque todos os meus herois foram devorados pelas traças, tristezas e outros monstros escondidos no fundo da gaveta.
- “Vem! Olha pra mim, vem pra cá. Isso mesmo, vem pra mim. Bom menino… Um passo de cada vez, um pouco mais de força nos pés e você consegue fazer isso sozinho. Pegue a câmera, ele está andando!”. Eu esperava haver um nome no fim do corredor. Eu não precisava de brinquedos ou doces, eu só precisava de você do outro lado. Eu só precisava ver você agachado, com os braços estendidos para mim, sorrindo para contrastar com a barba mal feita. Eu andei em cima de grãos de milho e brasa fervente, mas nunca marquei o teu tapete preferido com minhas minúsculas marcas de sapato. As cicatrizes são pés que correm sem antes terem aprendido a caminhar.
- “Pule, pule! Eu te seguro. Bata os pés com força. Só mais uma vez, vamos. Eu estou aqui, eu estou aqui. Confie em mim, eu nunca vou deixá-lo cair. Confie em mim, confie…” Eu devo admitir que por vezes vi o seu torso mergulhado no lado mais raso da piscina. Eu devo admitir que mirei em olhos imaginários quando meus pés desprenderam-se do chão, que o som das pequenas ondulações faziam da tua voz mais imponente que cachoeiras inteiras. Eu confiei naquilo que poderia ser você. As cicatrizes são pulmões cheios d’água.
- “Não tenha medo, eu estou te segurando. Eu não vou soltá-lo, acredite. Eu nunca vou soltá-lo, pedale mais firme, enxugue o suor das mãos. Não olhe para baixo, nunca olhe para baixo. Olhe para mim, eu estou aqui. Estou aqui com você”. Eu te esperei pela primeira vez. Eu te esperei para que me salvasse dos abismos abaixo do velho pedal enferrujado. Eu te esperei para que falasse alto comigo quando eu quisesse desistir. Eu te esperei para que você me chamasse de campeão, para que marejasse os olhos com a minha risada quase inaudível afastando-se sob duas rodas. Eu despenquei. As cicatrizes são joelhos feridos.
As cicatrizes são sobrancelhas caídas e medo de espelhos por não saber qual outro rosto possui o mesmo reflexo. Eu costurei quatro estrelas no meu próprio peito por sentir a falta da única que brilhava no céu. Eu guardei moedas que já saíram de circulação porque sabia que alguns de você colecionam antiguidades. Eu completei álbuns de figurinhas por ter a certeza que ficaria orgulhoso de mim. O treinador dizia que eu era o melhor atacante do time de futebol, mas o meu técnico nunca estava na arquibancada. Desculpe, eu desisti de tentar ser o seu filho.
Caso ainda queira me ver caminhar, a filmadora ainda não falhou. Se quiseres voltar, a bicicleta ainda está no porão. Se quiseres tentar novamente, ainda tenho boias que cabem no meu braço. Se quiseres assoprar uma das velas comigo, renascemos juntos. Quando você vai querer que eu nasça, aliás? Daqui a um, dois, quarenta anos? Feito. Uma foto é tudo o que eu peço, um nome é tudo o que eu quero, e o seu amor eu mesmo invento.
Eu te quero como uma última peça do quebra-cabeças da minha melancolia de um gênio precoce. Eu te quero como uma última chance ou a última chance para o primeiro adeus. Um olá para você e uma despedida para mim, pois nossas mãos já são do mesmo tamanho, caminhamos no mesmo ritmo e afogamentos só acontecem dentro da minha alma, do nosso esquecimento. Sempre foi tarde mais para mim, pois você já tinha partido quando chamei teus olhos em prantos. Eu esperei por você, eu esperava conseguir amar você. As cicatrizes são gotas de sangue desconhecido correndo em minhas veias. E a saudade é você, pai.
- “Vem! Olha pra mim, vem pra cá. Isso mesmo, vem pra mim. Bom menino… Um passo de cada vez, um pouco mais de força nos pés e você consegue fazer isso sozinho. Pegue a câmera, ele está andando!”. Eu esperava haver um nome no fim do corredor. Eu não precisava de brinquedos ou doces, eu só precisava de você do outro lado. Eu só precisava ver você agachado, com os braços estendidos para mim, sorrindo para contrastar com a barba mal feita. Eu andei em cima de grãos de milho e brasa fervente, mas nunca marquei o teu tapete preferido com minhas minúsculas marcas de sapato. As cicatrizes são pés que correm sem antes terem aprendido a caminhar.
- “Pule, pule! Eu te seguro. Bata os pés com força. Só mais uma vez, vamos. Eu estou aqui, eu estou aqui. Confie em mim, eu nunca vou deixá-lo cair. Confie em mim, confie…” Eu devo admitir que por vezes vi o seu torso mergulhado no lado mais raso da piscina. Eu devo admitir que mirei em olhos imaginários quando meus pés desprenderam-se do chão, que o som das pequenas ondulações faziam da tua voz mais imponente que cachoeiras inteiras. Eu confiei naquilo que poderia ser você. As cicatrizes são pulmões cheios d’água.
- “Não tenha medo, eu estou te segurando. Eu não vou soltá-lo, acredite. Eu nunca vou soltá-lo, pedale mais firme, enxugue o suor das mãos. Não olhe para baixo, nunca olhe para baixo. Olhe para mim, eu estou aqui. Estou aqui com você”. Eu te esperei pela primeira vez. Eu te esperei para que me salvasse dos abismos abaixo do velho pedal enferrujado. Eu te esperei para que falasse alto comigo quando eu quisesse desistir. Eu te esperei para que você me chamasse de campeão, para que marejasse os olhos com a minha risada quase inaudível afastando-se sob duas rodas. Eu despenquei. As cicatrizes são joelhos feridos.
As cicatrizes são sobrancelhas caídas e medo de espelhos por não saber qual outro rosto possui o mesmo reflexo. Eu costurei quatro estrelas no meu próprio peito por sentir a falta da única que brilhava no céu. Eu guardei moedas que já saíram de circulação porque sabia que alguns de você colecionam antiguidades. Eu completei álbuns de figurinhas por ter a certeza que ficaria orgulhoso de mim. O treinador dizia que eu era o melhor atacante do time de futebol, mas o meu técnico nunca estava na arquibancada. Desculpe, eu desisti de tentar ser o seu filho.
Caso ainda queira me ver caminhar, a filmadora ainda não falhou. Se quiseres voltar, a bicicleta ainda está no porão. Se quiseres tentar novamente, ainda tenho boias que cabem no meu braço. Se quiseres assoprar uma das velas comigo, renascemos juntos. Quando você vai querer que eu nasça, aliás? Daqui a um, dois, quarenta anos? Feito. Uma foto é tudo o que eu peço, um nome é tudo o que eu quero, e o seu amor eu mesmo invento.
Eu te quero como uma última peça do quebra-cabeças da minha melancolia de um gênio precoce. Eu te quero como uma última chance ou a última chance para o primeiro adeus. Um olá para você e uma despedida para mim, pois nossas mãos já são do mesmo tamanho, caminhamos no mesmo ritmo e afogamentos só acontecem dentro da minha alma, do nosso esquecimento. Sempre foi tarde mais para mim, pois você já tinha partido quando chamei teus olhos em prantos. Eu esperei por você, eu esperava conseguir amar você. As cicatrizes são gotas de sangue desconhecido correndo em minhas veias. E a saudade é você, pai.
segunda-feira, 30 de julho de 2012
Refúgio - Parte III
Minhas mãos estão trêmulas. Vejam, vejam! Estão trêmulas, sim. Hoje acordei um tanto indisposto e a enfermeira enfiou um doutor com três palmos de bigode dentro do meu quarto, apesar das insistências em uma leve queda de pressão que não precisaria ser tão desesperadamente remediada. Achei que aquele mequetrefe não fosse embora nunca. Devo dizer-lhe, amigo, que é extremamente desconfortável para um homem com suas próprias rugas como eu abrigar dentro do quarto um senhor de meia idade com mãos atrevidas demais para o gosto de qualquer ser humano. Mas é isso. Envelheça e acostume-se com a ausência de uma frase tão simples: "Eu não quero ser incomodado, idiotas". Ao menos posso escrever em paz agora. As mãos já aquietaram-se um pouco. Onde estávamos? Oh, sim. No lago.
Eleonora... Ah, Eleonora. Caso Deus oferecesse a ti um dia de minha vida, veria como tuas feições serenas mudaram para sempre a rotina do pobre menino Emílio. Já não comia, não bebia, e as noites de sono tranquila eram uma raridade. Papai improvisou um suador para que eu pudesse livrar-me da constipação que nada mais era do que uma tonta febre de amor. Gonçalves ainda visitou-em três dias para entregar a lição, mas desistiu ao ver que os cadernos continuavam empilhados na mesa da mesma maneira em que ele deixava.
- Ah, Emílio! Não vai à escola hoje de novo?
- Olhe bem para mim e veja se estou em condições de ir à escola, Gonçalves.
- Caso continue assim, teu pai te levará ao médico. E se for alguma praga d'água? Já é bem sabido que você não é mais resistente que uma donzela constipada. Saberá que andou matando aula novamente para nadar no lago. Estarei perdido! Melhore, Emílio, ande. Faça um esforço e vá comigo amanhã.
- Ora, deixe de molhar as calças, não é nada grave. Trouxe os livros que pedi?
- Trouxe. Custaram-me três pontos na biblioteca da escola, já não posso pegar mais nenhum livro até vossa majestade resolver devolver estes aqui. Ainda tive que passar vergonha na frente das coordenadoras. Só você, Emílio. Só você! Desde quando se interessa por poesia?
- Tu que deverias, ler, bobalhão! É arte...
- E esse jeito de falar esquisito? Até parece aquela moça espevitada que vimos outro dia... Aquela pequetita.
Nesse instante, meu pai escancarou a porta, com a brutalidade dos velhos roceiros e disse:
- Emílio, trouxe a enfermeira nova que veio da cidade, Srta. Laninha. Está passando uns dias por aqui e ofereceu-se para ajudar, já que o posto de saúde que eu te levaria amanhã fica a alguns quilômetros da fazenda. Seja um bom menino, sim? Gonçalves, venha me ajudar a pegar travesseiros novos, por favor.
Revirei os olhos. Não era do feitio de papai pedir por favor e nem falar com voz tão afável. E ele disse mesmo enfermeira? Oh, eu já sentia a dor fina da injeção no meu traseiro. Enfiei a cara nos lençóis e apertei bem os olhos, mas não chorei. Eu já era homem feito!
Não demorou muito e Gonçalves apareceu pulando como um canguru, quase afogando-se nos travesseiros que trazia e topando no primeiro par de chinelas que encontrou pelo chão.
- Endoidou, Gonçalves?
- É ela, Emílio! É ela! Feito fantasma.
Oh sim, Gonçalves, era ela. A enfermeira trazia consigo uma maleta de instrumentos médicos e uma pequena ruiva escondida atrás das saias, cutucando o adesivo que descolava do potinho com água e sabão que carregava na mão.
- Com licença, menino Emílio. Vamos começar os exames? - e largou a maleta em cima da cama, fazendo gesto para que Eleonora sentasse na ponta e ficasse quieta.
- Cla... Cla...
- Ah, não se esforce tanto.
Eleonora parecia não lembrar de mim. Mostrou-se indiferente o tempo inteiro, soprando as bolhinhas de sabão que decoravam meu quarto e vez ou outra encostavam em mim, causando-me arrepios que tenho certeza que eram mais causados pela presença da minha amada dentro do quarto.
O pai de Eleonora falecera meses antes, e a mãe teve que sustentar ela e o irmão mais novo, que morrera de pneumonia um pouco mais tarde. Vendo-se completamente endividada e com uma filha para criar, resolveu passar um tempo no campo já que trabalho naquele lugar não faltava. Era raro ver um roceiro que nunca tivesse sofrido acidentes de trabalho, ou uma grávida sem problemas na gestação. Fora as infestações que nos tempos de seca nos assolavam. Trabalhadores ardiam em febre, e o posto de saúde mais próximo ficava inviavelmente longe.
- Vamos lá, diga "a". - Disse Laninha, enfiando-me um palito com gosto amargo na boca.
Gonçalves manteve-se quieto, pálido, encostado no canto da parede e roendo as unhas. Não entendia o porquê de tanto nervosismo. Quem deveria ficar uma pilha era eu. Além do estetoscópio frio no peito, senti também uma fisgada de ciúmes. Gonçalves olhava demais para Eleonora e talvez ele compartilhasse do mesmo sentimento que eu. Por Deus, eu mal havia saído das fraldas e já queria estrear o punho por causa de uma mulher que ainda brincava de boneca. Passado o breve momento de cegueira, Gonçalves parecia assustado demais para a surpresa de um simples apaixonado. Estava era morrendo de medo que Eleonora o dedurasse. Ri comigo mesmo.
- Não se mexa, por favor, benzinho.
Benzinho. Apenas a minha mãe chamava-se assim. Ainda sentia falta dela, preferia vê-la como morta do que como mulher adúltera. Abandonou papai quando as pontas apertaram. Mamãe sempre foi uma mulher cara, um peça de leilão. Naquele tempo ainda tinha esperanças que a louca voltasse para casa, com malas e cuias, ajoelhando-se em sinal de arrependimento e dissesse que me amava. Mas ela nunca voltou.
Eleonora parecia não se importar com minhas olhadas. As bolhinhas foram ficando mais fracas e estouravam fácil, pouco depois de largarem o arco. Ela era obrigada a olhar para mim, caso não quisesse morrer de tédio enquanto a mãe não terminava o exame enfadonho. Ajeitou os cabelos para trás da orelha e deu uma apertada no laço de fita que os amarrava, deixando apenas alguns fios cor de bronze para que eu pudesse vê-los brilhando por conta do Sol que invadia as persianas da janela caindo aos pedaços. Lançou um sorriso brando. Sorri de volta, mesmo com um termômetro incomodando-me debaixo do braço. Ela revirou os olhos num sinal de protesto e a mãe deu-lhe um delicado pisão no pé, alertando-lhe que fosse mais educada. Sorri mais largo ainda.
Papai finalmente entrou no quarto e quebrou aquele clima de romance muito desajustado. Srta. Laninha disse que eu estava ótimo e aquilo não passava de fadiga passageira. Receitou-me uns remédios caseiros e muito repouso. Ela podia-me receitar também uma dose diária de Eleonora. Tenho certeza que ficaria curado muito mais rápido, se é que a primeira paixão pode ser considerada uma enfermidade.
- E se ele não melhorar, moça? Posso chamá-la aqui novamente?
Eleonora... Ah, Eleonora. Caso Deus oferecesse a ti um dia de minha vida, veria como tuas feições serenas mudaram para sempre a rotina do pobre menino Emílio. Já não comia, não bebia, e as noites de sono tranquila eram uma raridade. Papai improvisou um suador para que eu pudesse livrar-me da constipação que nada mais era do que uma tonta febre de amor. Gonçalves ainda visitou-em três dias para entregar a lição, mas desistiu ao ver que os cadernos continuavam empilhados na mesa da mesma maneira em que ele deixava.
- Ah, Emílio! Não vai à escola hoje de novo?
- Olhe bem para mim e veja se estou em condições de ir à escola, Gonçalves.
- Caso continue assim, teu pai te levará ao médico. E se for alguma praga d'água? Já é bem sabido que você não é mais resistente que uma donzela constipada. Saberá que andou matando aula novamente para nadar no lago. Estarei perdido! Melhore, Emílio, ande. Faça um esforço e vá comigo amanhã.
- Ora, deixe de molhar as calças, não é nada grave. Trouxe os livros que pedi?
- Trouxe. Custaram-me três pontos na biblioteca da escola, já não posso pegar mais nenhum livro até vossa majestade resolver devolver estes aqui. Ainda tive que passar vergonha na frente das coordenadoras. Só você, Emílio. Só você! Desde quando se interessa por poesia?
- Tu que deverias, ler, bobalhão! É arte...
- E esse jeito de falar esquisito? Até parece aquela moça espevitada que vimos outro dia... Aquela pequetita.
Nesse instante, meu pai escancarou a porta, com a brutalidade dos velhos roceiros e disse:
- Emílio, trouxe a enfermeira nova que veio da cidade, Srta. Laninha. Está passando uns dias por aqui e ofereceu-se para ajudar, já que o posto de saúde que eu te levaria amanhã fica a alguns quilômetros da fazenda. Seja um bom menino, sim? Gonçalves, venha me ajudar a pegar travesseiros novos, por favor.
Revirei os olhos. Não era do feitio de papai pedir por favor e nem falar com voz tão afável. E ele disse mesmo enfermeira? Oh, eu já sentia a dor fina da injeção no meu traseiro. Enfiei a cara nos lençóis e apertei bem os olhos, mas não chorei. Eu já era homem feito!
Não demorou muito e Gonçalves apareceu pulando como um canguru, quase afogando-se nos travesseiros que trazia e topando no primeiro par de chinelas que encontrou pelo chão.
- Endoidou, Gonçalves?
- É ela, Emílio! É ela! Feito fantasma.
Oh sim, Gonçalves, era ela. A enfermeira trazia consigo uma maleta de instrumentos médicos e uma pequena ruiva escondida atrás das saias, cutucando o adesivo que descolava do potinho com água e sabão que carregava na mão.
- Com licença, menino Emílio. Vamos começar os exames? - e largou a maleta em cima da cama, fazendo gesto para que Eleonora sentasse na ponta e ficasse quieta.
- Cla... Cla...
- Ah, não se esforce tanto.
Eleonora parecia não lembrar de mim. Mostrou-se indiferente o tempo inteiro, soprando as bolhinhas de sabão que decoravam meu quarto e vez ou outra encostavam em mim, causando-me arrepios que tenho certeza que eram mais causados pela presença da minha amada dentro do quarto.
O pai de Eleonora falecera meses antes, e a mãe teve que sustentar ela e o irmão mais novo, que morrera de pneumonia um pouco mais tarde. Vendo-se completamente endividada e com uma filha para criar, resolveu passar um tempo no campo já que trabalho naquele lugar não faltava. Era raro ver um roceiro que nunca tivesse sofrido acidentes de trabalho, ou uma grávida sem problemas na gestação. Fora as infestações que nos tempos de seca nos assolavam. Trabalhadores ardiam em febre, e o posto de saúde mais próximo ficava inviavelmente longe.
- Vamos lá, diga "a". - Disse Laninha, enfiando-me um palito com gosto amargo na boca.
Gonçalves manteve-se quieto, pálido, encostado no canto da parede e roendo as unhas. Não entendia o porquê de tanto nervosismo. Quem deveria ficar uma pilha era eu. Além do estetoscópio frio no peito, senti também uma fisgada de ciúmes. Gonçalves olhava demais para Eleonora e talvez ele compartilhasse do mesmo sentimento que eu. Por Deus, eu mal havia saído das fraldas e já queria estrear o punho por causa de uma mulher que ainda brincava de boneca. Passado o breve momento de cegueira, Gonçalves parecia assustado demais para a surpresa de um simples apaixonado. Estava era morrendo de medo que Eleonora o dedurasse. Ri comigo mesmo.
- Não se mexa, por favor, benzinho.
Benzinho. Apenas a minha mãe chamava-se assim. Ainda sentia falta dela, preferia vê-la como morta do que como mulher adúltera. Abandonou papai quando as pontas apertaram. Mamãe sempre foi uma mulher cara, um peça de leilão. Naquele tempo ainda tinha esperanças que a louca voltasse para casa, com malas e cuias, ajoelhando-se em sinal de arrependimento e dissesse que me amava. Mas ela nunca voltou.
Eleonora parecia não se importar com minhas olhadas. As bolhinhas foram ficando mais fracas e estouravam fácil, pouco depois de largarem o arco. Ela era obrigada a olhar para mim, caso não quisesse morrer de tédio enquanto a mãe não terminava o exame enfadonho. Ajeitou os cabelos para trás da orelha e deu uma apertada no laço de fita que os amarrava, deixando apenas alguns fios cor de bronze para que eu pudesse vê-los brilhando por conta do Sol que invadia as persianas da janela caindo aos pedaços. Lançou um sorriso brando. Sorri de volta, mesmo com um termômetro incomodando-me debaixo do braço. Ela revirou os olhos num sinal de protesto e a mãe deu-lhe um delicado pisão no pé, alertando-lhe que fosse mais educada. Sorri mais largo ainda.
Papai finalmente entrou no quarto e quebrou aquele clima de romance muito desajustado. Srta. Laninha disse que eu estava ótimo e aquilo não passava de fadiga passageira. Receitou-me uns remédios caseiros e muito repouso. Ela podia-me receitar também uma dose diária de Eleonora. Tenho certeza que ficaria curado muito mais rápido, se é que a primeira paixão pode ser considerada uma enfermidade.
- E se ele não melhorar, moça? Posso chamá-la aqui novamente?
- Estou indo embora amanhã de manhã, senhor.
Levantei-me da cama como uma lebre em fuga, derramando o copo d'água quente que estava perto do abajur e recolhendo todos os quatro pares de olhos assustados para mim. Espere um momento. Ela disse mesmo... "Indo embora amanhã"?
Levantei-me da cama como uma lebre em fuga, derramando o copo d'água quente que estava perto do abajur e recolhendo todos os quatro pares de olhos assustados para mim. Espere um momento. Ela disse mesmo... "Indo embora amanhã"?
Vermelho.
Três horas da tarde e ainda vejo a madrugada. O grunhido da chaleira e o arroxeado dos meus olhos grudados gritam que eu deveria ter evitado os dois últimos copos de martini. A porta entreaberta é sinal de que meu dinheiro foi-se. Margot sempre avisa às iniciantes que não devem beber em demasia antes de sair com um cliente. Homens não gostam de mulher embrigadas pelo álcool pago com o próprio suor. É deselegante, imoral e arriscado. Agarramos a ressaca e perdemos o lucro.
Uma mulher com trinta e cinco anos já não pode ser considerada iniciante em nenhum aspecto. O único início de minha vida eu afogo todas as madrugadas em taças de champanhe e cinzas de cigarro. Margot tanto me avisou… Alguém como eu não deve acreditar em pontos finais.
Há quatro anos, eu o conheci. Sobrancelhas grossas, olheiras profundas, boca ressecada com dois cantos imóveis. Vestia-se sempre com uma jaqueta de couro marrom e a camisa azul-petróleo vivia lá com seus dois espaços desabotoados. Extremamente másculo, decidido e coloquial. E nada me chamou atenção, fora sua carteira surrada com meus cinquentas reais. Decerto, um cretino, bem como todos os homens que procuravam meus beijos.
Chamou-me de Amélia e pagou-me um conhaque. Naquelas redondezas os homens gritavam e sussurravam “Louise”. Um nome ordinário e curto assim como eu esperava que fosse a minha vida. Recusei-me a usar o nome de batismo desde o primeiro cliente. Eu não suportaria vê-lo sendo pronunciado por bocas bêbadas e mal cheirosas. Mas aquele patife chamou-me de Amélia, não se sabe o porquê. Eu, Amélia. Ele, mistério.
O conhaque não descia tão bem quanto a vontade de esganá-lo. Eu odiava seus olhos pelo simples fato de pousarem em mim, eu repugnava a palha rangendo entre seus dentes, eu sentia meus ossos estraçalhando-se por pensar que em pouco menos de uma hora o meu corpo seria tocado pro aquelas mãos asquerosas. Quem era ele, eu nunca soube. O ódio veio e nada se explicou.
Não me entenda mal. Eu, Louise, odiava todos os homens. Expunha os caninos e os pascácios ainda pagavam-me por mentir-lhes um falso desejo. Eu, Louise. Amélia morrera numa cama de motel. E eu odiava-lhe, talvez, por ter feito Amélia ressuscitar e enojar o que eu fizera com sua alma. Envergonhava-me, contorcia-me, repugnava-me. Batom vermelho, sombra de cinzeiro e decote vistoso. Uma fogosa vagabunda.
Eu arrancava forças do inferno para olhar o homem que levou toda o meu mínimo de moral para o esgoto. Mas o que foi pago deveria ser cumprido. Deitei-me com ele. Pela primeira vez senti vergonha em deixar uma barba malfeita tocar meu corpo despido. E o que era o meu início, aconteceu. Eu, Amélia, o pertencia. Louise corria atrás de outro par de calças em um bar trivial. Mas eu, não. Eu era dele, ele era meu. Jamais possui nada que não fosse bebida, batom, jóias falsificadas e tristeza. Jamais quis me possuir. Deixava esse desgosto para os homens que bancavam os meus gemidos de dor camuflados de prazer.
Foi o meu primeiro e único começo. Aquele corsário contemporâneo que a pouco fizera-me revirar os estômagos, fazia-me naquele instante repentino… Feliz. Eu, uma prostituta de esquina. Eu, Amélia.
Jogou as notas amareladas em cima da cama e partiu, assim como partira o meu coração, que pela primeira vez senti que vivia. Eu, Amélia, apaixonei-me pela primeira vez.
E nunca voltei a ser Louise novamente. Já não era eu que dependia da minha beleza, já não era eu que respirava nicotina. Os que vieram depois, viraram o próprio depois. Os que vieram depois, pegaram o trem atrasado. O vagão da luxúria estava vazio. Eu iniciara a viagem de estação em estação, atrás daquele que me foi como carvão, que fez renascer Amélia, a doce Amélia que acreditava em inícios.
Mais do que um início, eu ansiava por um final. Eu ansiava por um abraço no fim do dia ou um beijo de amor. Eu, Amélia, estava de luto por Louise. Eu, com todas as faces e cheiros, amei de verdade.
E é para matar este maldito começo que embriago-me. É para curar a saudade do gosto daquele conhaque barato, é para baratear a dor do meu vestidor rasgado no canto daquele quarto úmido. O batom forte é para desenhar uma nova boca, uma boca que nunca tocou os lábios de quem se ama, a fumaça do cigarro é para que a neblina impeça meus olhos de voltarem a encontrar os dele.
Eu não sei se uma prostituta em decadência tem o direito de acreditar em Deus. Mas se houver um céu, meu bem… O céu é vermelho. Exatamente da cor do sangue que corre por entre os pecadores. Se houver um inferno, ele tem o teu cheiro. E Louise me receberá de pernas abertas. Não permita. Arranque o copo da minha mão e leve-me para o purgatório do teu amor. Eu, Amélia, ainda não gastei as tuas notas amareladas, esperando que exista troco. Eu, Amélia… Ainda te espero, para iniciarmos com nomes e beijos. Que o céu seja uma mesa de bar, que o céu seja vermelho.
Uma mulher com trinta e cinco anos já não pode ser considerada iniciante em nenhum aspecto. O único início de minha vida eu afogo todas as madrugadas em taças de champanhe e cinzas de cigarro. Margot tanto me avisou… Alguém como eu não deve acreditar em pontos finais.
Há quatro anos, eu o conheci. Sobrancelhas grossas, olheiras profundas, boca ressecada com dois cantos imóveis. Vestia-se sempre com uma jaqueta de couro marrom e a camisa azul-petróleo vivia lá com seus dois espaços desabotoados. Extremamente másculo, decidido e coloquial. E nada me chamou atenção, fora sua carteira surrada com meus cinquentas reais. Decerto, um cretino, bem como todos os homens que procuravam meus beijos.
Chamou-me de Amélia e pagou-me um conhaque. Naquelas redondezas os homens gritavam e sussurravam “Louise”. Um nome ordinário e curto assim como eu esperava que fosse a minha vida. Recusei-me a usar o nome de batismo desde o primeiro cliente. Eu não suportaria vê-lo sendo pronunciado por bocas bêbadas e mal cheirosas. Mas aquele patife chamou-me de Amélia, não se sabe o porquê. Eu, Amélia. Ele, mistério.
O conhaque não descia tão bem quanto a vontade de esganá-lo. Eu odiava seus olhos pelo simples fato de pousarem em mim, eu repugnava a palha rangendo entre seus dentes, eu sentia meus ossos estraçalhando-se por pensar que em pouco menos de uma hora o meu corpo seria tocado pro aquelas mãos asquerosas. Quem era ele, eu nunca soube. O ódio veio e nada se explicou.
Não me entenda mal. Eu, Louise, odiava todos os homens. Expunha os caninos e os pascácios ainda pagavam-me por mentir-lhes um falso desejo. Eu, Louise. Amélia morrera numa cama de motel. E eu odiava-lhe, talvez, por ter feito Amélia ressuscitar e enojar o que eu fizera com sua alma. Envergonhava-me, contorcia-me, repugnava-me. Batom vermelho, sombra de cinzeiro e decote vistoso. Uma fogosa vagabunda.
Eu arrancava forças do inferno para olhar o homem que levou toda o meu mínimo de moral para o esgoto. Mas o que foi pago deveria ser cumprido. Deitei-me com ele. Pela primeira vez senti vergonha em deixar uma barba malfeita tocar meu corpo despido. E o que era o meu início, aconteceu. Eu, Amélia, o pertencia. Louise corria atrás de outro par de calças em um bar trivial. Mas eu, não. Eu era dele, ele era meu. Jamais possui nada que não fosse bebida, batom, jóias falsificadas e tristeza. Jamais quis me possuir. Deixava esse desgosto para os homens que bancavam os meus gemidos de dor camuflados de prazer.
Foi o meu primeiro e único começo. Aquele corsário contemporâneo que a pouco fizera-me revirar os estômagos, fazia-me naquele instante repentino… Feliz. Eu, uma prostituta de esquina. Eu, Amélia.
Jogou as notas amareladas em cima da cama e partiu, assim como partira o meu coração, que pela primeira vez senti que vivia. Eu, Amélia, apaixonei-me pela primeira vez.
E nunca voltei a ser Louise novamente. Já não era eu que dependia da minha beleza, já não era eu que respirava nicotina. Os que vieram depois, viraram o próprio depois. Os que vieram depois, pegaram o trem atrasado. O vagão da luxúria estava vazio. Eu iniciara a viagem de estação em estação, atrás daquele que me foi como carvão, que fez renascer Amélia, a doce Amélia que acreditava em inícios.
Mais do que um início, eu ansiava por um final. Eu ansiava por um abraço no fim do dia ou um beijo de amor. Eu, Amélia, estava de luto por Louise. Eu, com todas as faces e cheiros, amei de verdade.
E é para matar este maldito começo que embriago-me. É para curar a saudade do gosto daquele conhaque barato, é para baratear a dor do meu vestidor rasgado no canto daquele quarto úmido. O batom forte é para desenhar uma nova boca, uma boca que nunca tocou os lábios de quem se ama, a fumaça do cigarro é para que a neblina impeça meus olhos de voltarem a encontrar os dele.
Eu não sei se uma prostituta em decadência tem o direito de acreditar em Deus. Mas se houver um céu, meu bem… O céu é vermelho. Exatamente da cor do sangue que corre por entre os pecadores. Se houver um inferno, ele tem o teu cheiro. E Louise me receberá de pernas abertas. Não permita. Arranque o copo da minha mão e leve-me para o purgatório do teu amor. Eu, Amélia, ainda não gastei as tuas notas amareladas, esperando que exista troco. Eu, Amélia… Ainda te espero, para iniciarmos com nomes e beijos. Que o céu seja uma mesa de bar, que o céu seja vermelho.
Não acabou.
A cama está fria, o cabelo desordenado e eu esqueci de escovar os dentes esta noite. Eu sinto sua falta. Os olhos que herdei da tua poesia já não me são suficientes. Sinto falta da forma como as estrelas cantavam para mim, sinto falta da companhia debaixo da cama e ainda sinto o gosto de chocolate derretido na boca ferida. Tristes histórias começam com um final feliz.
O meu maior medo é não ter medo. Não ter medo do escuro, não ter medo da vida e não ter medo do teu anjo negro e oculto que cantarolava a tua última cena de adeus em meus piores pesadelos vividos. Pedi para que fosse forte, mas a fraqueza da tua desistência ainda habita em mim. Culpei-te por um crime que eu sozinho cometi, ainda que sozinho eu nunca me vi. Quisera eu quebrar todos os relógios que tenho em casa para não mais ouvir o barulho da perda dos anos. Esqueci a porta da gaiola aberta mais uma maldita vez. E por um segundo, achei que o canário partiria. Por um segundo, esqueci de chorar.
Abrigo muitos de mim. Abrigo o menino assustado, o velho enfraquecido e o cinza desbotado. E suicidam-me, trucidam-me sem dó e com muita piedade. Eu já não sei se me é digno possuir a cor dos teus olhos de castanheiras, tampouco o sorriso ácido. Quis sonhar, mas esqueci de abrir os olhos. As lanternas falharam, a luz nunca existiu. Tu não voltaste, ou eu perdera a tua chegada.
Sentiria orgulho de mim caso eu dissesse que virei poeta? Mas não, eu não virei. Eu virei assassino de dois de mim. O branco dos impuros me atingiu, virei cordeiro em pele de lobo. Pode parecer que nada mais faz sentido, mas para mim o sentido é que não aparece. Sentiria orgulho de mim caso eu dissesse que nunca te esqueci? Pois sim, eu te esqueci. Eu te esqueci de raiva ao lembrar dos teus olhos fechando-se para sempre, eu te esqueci na dor de ser sozinho e multidão.
Apiedei-me de mim mesmo. Diante do meu próprio egoísmo, esqueci que não venci sozinho. Esqueci do sofrimento e da perda que me criaram longe dos dentes sujos de açúcar. E hoje, sou filho da terra infértil. Sou filho do teu túmulo e não mais das tuas memórias. Há uma certa libertação em abandonar-te. Liberto do peso das mentiras em dizer que nunca te amei como deveria. Por orgulho e desespero, eu larguei a sua mão. Pela primeira vez em longos anos, eu não olhei para os dois lados antes de atravessar a solidão.
Olhe para trás, se ainda puderes mover-te. Olhe para trás e veja uma criança pálida no colo de uma mulher com cabelos longos e saias floridas. Incline mais a cabeça e veja o quanto o menino implora para que não seja ela o culpado da tua desgraça. Graças à três beijos na testa antes de dormir, no meio da tempestade de jardins descascados, eu digo que fui amado. Olhe para trás. Você os reconhece?
Não acabou. Eu insisto, não acabou. Peço para que diga às estrelas que cantem mais uma vez. Talvez as nuvens dancem nostalgicamente e as minhas palavras ganhem vida. Sinto falta dos olhos que pintaram os meus, eu repito. Sinto falta das mãos que desenharam os meus cabelos. A permanência acabou e a tela ficou por cessar. Eu não sou artista, eu só tenho o cinza que me bebe diariamente. Fui fraco para aceitar a morte como destino e quis concluir-me sem a tua ajuda. E é por isso que matei as tuas cores, como assassino poético que sou. Eu te odeio pelo simples fato de você ser verdade, pois a mentira ainda vive. E você… Abandonara-me.
No último gole de egoísmo e lágrimas, eu te peço perdão. Eu te peço perdão pela cama fria e desarrumada, pelos porta-retratos que quebrei, pelos amores que não te apresentei, pelos olhos que adormeci e pelo cinza que me tornei. Eu te peço perdão por esquecer a janela aberta na esperança de um sopro de vida qualquer. Eu te peço perdão por não conseguir te amar. Eu não acredito em monstros. Eu não acredito em céu. E é por isso que eu te guardo eternamente no inferno do meu coração.
O meu maior medo é não ter medo. Não ter medo do escuro, não ter medo da vida e não ter medo do teu anjo negro e oculto que cantarolava a tua última cena de adeus em meus piores pesadelos vividos. Pedi para que fosse forte, mas a fraqueza da tua desistência ainda habita em mim. Culpei-te por um crime que eu sozinho cometi, ainda que sozinho eu nunca me vi. Quisera eu quebrar todos os relógios que tenho em casa para não mais ouvir o barulho da perda dos anos. Esqueci a porta da gaiola aberta mais uma maldita vez. E por um segundo, achei que o canário partiria. Por um segundo, esqueci de chorar.
Abrigo muitos de mim. Abrigo o menino assustado, o velho enfraquecido e o cinza desbotado. E suicidam-me, trucidam-me sem dó e com muita piedade. Eu já não sei se me é digno possuir a cor dos teus olhos de castanheiras, tampouco o sorriso ácido. Quis sonhar, mas esqueci de abrir os olhos. As lanternas falharam, a luz nunca existiu. Tu não voltaste, ou eu perdera a tua chegada.
Sentiria orgulho de mim caso eu dissesse que virei poeta? Mas não, eu não virei. Eu virei assassino de dois de mim. O branco dos impuros me atingiu, virei cordeiro em pele de lobo. Pode parecer que nada mais faz sentido, mas para mim o sentido é que não aparece. Sentiria orgulho de mim caso eu dissesse que nunca te esqueci? Pois sim, eu te esqueci. Eu te esqueci de raiva ao lembrar dos teus olhos fechando-se para sempre, eu te esqueci na dor de ser sozinho e multidão.
Apiedei-me de mim mesmo. Diante do meu próprio egoísmo, esqueci que não venci sozinho. Esqueci do sofrimento e da perda que me criaram longe dos dentes sujos de açúcar. E hoje, sou filho da terra infértil. Sou filho do teu túmulo e não mais das tuas memórias. Há uma certa libertação em abandonar-te. Liberto do peso das mentiras em dizer que nunca te amei como deveria. Por orgulho e desespero, eu larguei a sua mão. Pela primeira vez em longos anos, eu não olhei para os dois lados antes de atravessar a solidão.
Olhe para trás, se ainda puderes mover-te. Olhe para trás e veja uma criança pálida no colo de uma mulher com cabelos longos e saias floridas. Incline mais a cabeça e veja o quanto o menino implora para que não seja ela o culpado da tua desgraça. Graças à três beijos na testa antes de dormir, no meio da tempestade de jardins descascados, eu digo que fui amado. Olhe para trás. Você os reconhece?
Não acabou. Eu insisto, não acabou. Peço para que diga às estrelas que cantem mais uma vez. Talvez as nuvens dancem nostalgicamente e as minhas palavras ganhem vida. Sinto falta dos olhos que pintaram os meus, eu repito. Sinto falta das mãos que desenharam os meus cabelos. A permanência acabou e a tela ficou por cessar. Eu não sou artista, eu só tenho o cinza que me bebe diariamente. Fui fraco para aceitar a morte como destino e quis concluir-me sem a tua ajuda. E é por isso que matei as tuas cores, como assassino poético que sou. Eu te odeio pelo simples fato de você ser verdade, pois a mentira ainda vive. E você… Abandonara-me.
No último gole de egoísmo e lágrimas, eu te peço perdão. Eu te peço perdão pela cama fria e desarrumada, pelos porta-retratos que quebrei, pelos amores que não te apresentei, pelos olhos que adormeci e pelo cinza que me tornei. Eu te peço perdão por esquecer a janela aberta na esperança de um sopro de vida qualquer. Eu te peço perdão por não conseguir te amar. Eu não acredito em monstros. Eu não acredito em céu. E é por isso que eu te guardo eternamente no inferno do meu coração.
"S" maiúsculo.
Três pontos a menos. E ele tirou 5,0 em um tema que todos obtiveram nota máxima. Ele era péssimo em gramática ou estava simplesmente fazendo pilhéria. Por seis meses consecutivos o mesmo erro. E eu fazia questão de colocar a correção em vermelho, para que na próxima meus olhos não doessem com uma falha tão banal para um menino de terceiro ano. Foi então que eu o chamei até a minha mesa.
- Serafim, por que não leu o que escrevi na redação anterior?
- Eu li, professora. E li o que escreveu nessa também.
- E por que não corrigiu?
- A senhora está errada.
- Errada? Ora, quanta audácia. Não estou, Serafim. Veja aqui, bem aqui, onde circulei.
E mostrei-lhe novamente o equívoco, dessa vez apontando com a armação do óculos e testas enrugadas com o descaramento. Serafim havia colocado novamente quase tudo em letras maiúsculas.
- Está na sua gramática, menino... Se você ousasse desgrudar suas páginas, saberia. Amor, mentira, amizade, raiva, ciúmes... Nada disso é nome de gente.
- Mas é gente sim, professora.
- Bobagem. Você conhece ou já tocou o amor? Já conversou com a raiva?
- Eu já.
Pobrezinho. Estava doido.
- Não é possível, meu querido. Sentimento a gente só sente. O próprio nome já diz. só devemos colocar em letra maiúscula aquilo que vier depois de ponto final ou for nome próprio. Já estudamos isso... E veja aqui. Você assinou o próprio nome com letra minúscula. Você não é gente, criatura?
- Não, não e não! Professor... Amor também é gente, não ofenda-o. Eu que não mereço letra maiúscula, pois nada faço. Sou apenas um segundo de vida, que importo para o mundo? Ser letra grande é merecimento. S grande é de Sabedoria.
- Não, meu amor... Seu nome é próprio.
- Que propriedade, professora? Como Serafim existem vários tantos por aí. Amor, Raiva, Amizade, Ciúmes... Só existem eles.
- Está bem, Serafim. Peça ao "Amor" para que arredonde a sua nota, então.
- Mas o amor tem mais coisas pra se preocupar do que com a prova da senhora, professora.
- Então escreva-me outra redação, com quantas linhas quiser e sem parágrafos. Explique-me quem são seus "S"entimentos.
O menino vibrou. Arrancou a folha do caderno às pressas e pôs-se a escrever. Duas horas depois, lá vinha dois olhinhos verdes com o papel na mão todo rabiscado. E fui ler.
"Tudo começou quando o Amor, barbudo e sentado na esquina, estendeu a mão mais uma vez para pedir esmola. Era um mendigo feio, que ninguém olhava, mas que estava nas estatísticas de miséria do mundo todo. Ele tinha sim a sua importância, faltava as pessoas pararem de o idealizarem como número. Mas o coitado escolheu a hora errada de manifestar-se. Falou com a Raiva, aquela velha raquítica que deve ter mais de cem anos. A Raiva mando-o trabalhar, sem saber que o Amor já estava fazendo seu papel de mendigo. O Amor, coitado... Só sabe mendigar. As pernas amputadas, os óculos escuros e o cigarro na boca querendo queimar-se por dentro eram prova disso. A Compaixão aproximou-se. Compaixão é a secretária do banqueiro da cidade, Mentira. Compaixão olhou de cara feia para a raiva e deu quatro moedas ao pobre Amor. O banqueiro aproximou-se... Disse à Compaixão que aquele dinheiro lhe dizia respeito, afinal era ele quem pagava seu salário. A Raiva sorriu, mas o Sorriso de verdade só chegaria depois. Era o recém-formado em direito, acompanhado da namorada, a Lágrima. O homem disse que as moedas pertenciam ao mendigo, que sorriu junto com o Sorriso dos desamparados. Mas se é mendigo, não há o que pertencer-lhe, argumentou o banqueiro logo em seguida. A Lágrima fez o sorriso voltar pra casa, alegando que ali não era lugar para ele ficar. Sorriso tinha fama de dominado pela mulher. Foi aí que a Amizade apareceu, com roupa de ginástica e caminhando com o cachorro gordo. Perguntou à Raiva o que estava acontecendo e ela simplesmente disse que o Amor estava roubando-os. Mentira confirmou. Compaixão só sabia chorar. Amor sorria. Nesse instante a Raiva quis bater no mendigo risonho. Foi aí que o policial chegou, o senhor paixão. Paixão só sabia agir quando os ânimos esquentavam-se e a Razão o liberava do expediente. Todos estavam detidos. A Raiva foi logo dizendo que eram todos uns incompetentes. A Compaixão teve pena dos outros prisioneiros. A Vida e a Morte estavam na mesma cela. Morte era acusada de sequestro relâmpago e a Vida era sua cúmplice. Especializadas em suicídio armado, a Vida dava motivos e a Morte concretizava o serviço. O Tempo também estava preso, com fama de querer sempre fugir. A Justiça chegou, sempre atrasada. A Raiva disse: É tudo culpa da Compaixão. A Compaixão foi logo tratando de se defender, dizendo ser escrava da Mentira. Mentira negou tudo e disse que as coisas só pioraram quando a amizade chegou. A Amizade, frágil, desmaiou. E o Amor sorriu. A Justiça deu o caso por encerrado sem antes ouvi-lo. Justiça era meio surda de um ouvido, mas ninguém sabia. Todos foram libertos, mas o Amor ficou. Amor é aquele mendigo que mesmo quando não faz nada, é culpado de tudo. Culpado pelo azedume da Raiva, pela benevolência da Compaixão, pelas armas da Mentira, pela desistência do Sorriso, pela presença da Lágrima, pelo silêncio da Amizade, pelos ímpetos da Paixão e pela burrice da Justiça. Prisão perpétua para o Amor que só queria mendigar."
Ainda não sei se Serafim tem Razão... Mas saí da escola aquela manhã com a certeza que eu, eu mesma, havia negado fortunas ao Amor durante toda a minha Vida. Nota máxima e não se fala mais nisso. Serafim de um Sorriso... Mas dessa vez, a Lágrima separou-se dele e veio morar em meus olhos. Que um dia eu me torne maiúscula. Ou quem sabe, que um dia eu me torne sentimento.
- Serafim, por que não leu o que escrevi na redação anterior?
- Eu li, professora. E li o que escreveu nessa também.
- E por que não corrigiu?
- A senhora está errada.
- Errada? Ora, quanta audácia. Não estou, Serafim. Veja aqui, bem aqui, onde circulei.
E mostrei-lhe novamente o equívoco, dessa vez apontando com a armação do óculos e testas enrugadas com o descaramento. Serafim havia colocado novamente quase tudo em letras maiúsculas.
- Está na sua gramática, menino... Se você ousasse desgrudar suas páginas, saberia. Amor, mentira, amizade, raiva, ciúmes... Nada disso é nome de gente.
- Mas é gente sim, professora.
- Bobagem. Você conhece ou já tocou o amor? Já conversou com a raiva?
- Eu já.
Pobrezinho. Estava doido.
- Não é possível, meu querido. Sentimento a gente só sente. O próprio nome já diz. só devemos colocar em letra maiúscula aquilo que vier depois de ponto final ou for nome próprio. Já estudamos isso... E veja aqui. Você assinou o próprio nome com letra minúscula. Você não é gente, criatura?
- Não, não e não! Professor... Amor também é gente, não ofenda-o. Eu que não mereço letra maiúscula, pois nada faço. Sou apenas um segundo de vida, que importo para o mundo? Ser letra grande é merecimento. S grande é de Sabedoria.
- Não, meu amor... Seu nome é próprio.
- Que propriedade, professora? Como Serafim existem vários tantos por aí. Amor, Raiva, Amizade, Ciúmes... Só existem eles.
- Está bem, Serafim. Peça ao "Amor" para que arredonde a sua nota, então.
- Mas o amor tem mais coisas pra se preocupar do que com a prova da senhora, professora.
- Então escreva-me outra redação, com quantas linhas quiser e sem parágrafos. Explique-me quem são seus "S"entimentos.
O menino vibrou. Arrancou a folha do caderno às pressas e pôs-se a escrever. Duas horas depois, lá vinha dois olhinhos verdes com o papel na mão todo rabiscado. E fui ler.
"Tudo começou quando o Amor, barbudo e sentado na esquina, estendeu a mão mais uma vez para pedir esmola. Era um mendigo feio, que ninguém olhava, mas que estava nas estatísticas de miséria do mundo todo. Ele tinha sim a sua importância, faltava as pessoas pararem de o idealizarem como número. Mas o coitado escolheu a hora errada de manifestar-se. Falou com a Raiva, aquela velha raquítica que deve ter mais de cem anos. A Raiva mando-o trabalhar, sem saber que o Amor já estava fazendo seu papel de mendigo. O Amor, coitado... Só sabe mendigar. As pernas amputadas, os óculos escuros e o cigarro na boca querendo queimar-se por dentro eram prova disso. A Compaixão aproximou-se. Compaixão é a secretária do banqueiro da cidade, Mentira. Compaixão olhou de cara feia para a raiva e deu quatro moedas ao pobre Amor. O banqueiro aproximou-se... Disse à Compaixão que aquele dinheiro lhe dizia respeito, afinal era ele quem pagava seu salário. A Raiva sorriu, mas o Sorriso de verdade só chegaria depois. Era o recém-formado em direito, acompanhado da namorada, a Lágrima. O homem disse que as moedas pertenciam ao mendigo, que sorriu junto com o Sorriso dos desamparados. Mas se é mendigo, não há o que pertencer-lhe, argumentou o banqueiro logo em seguida. A Lágrima fez o sorriso voltar pra casa, alegando que ali não era lugar para ele ficar. Sorriso tinha fama de dominado pela mulher. Foi aí que a Amizade apareceu, com roupa de ginástica e caminhando com o cachorro gordo. Perguntou à Raiva o que estava acontecendo e ela simplesmente disse que o Amor estava roubando-os. Mentira confirmou. Compaixão só sabia chorar. Amor sorria. Nesse instante a Raiva quis bater no mendigo risonho. Foi aí que o policial chegou, o senhor paixão. Paixão só sabia agir quando os ânimos esquentavam-se e a Razão o liberava do expediente. Todos estavam detidos. A Raiva foi logo dizendo que eram todos uns incompetentes. A Compaixão teve pena dos outros prisioneiros. A Vida e a Morte estavam na mesma cela. Morte era acusada de sequestro relâmpago e a Vida era sua cúmplice. Especializadas em suicídio armado, a Vida dava motivos e a Morte concretizava o serviço. O Tempo também estava preso, com fama de querer sempre fugir. A Justiça chegou, sempre atrasada. A Raiva disse: É tudo culpa da Compaixão. A Compaixão foi logo tratando de se defender, dizendo ser escrava da Mentira. Mentira negou tudo e disse que as coisas só pioraram quando a amizade chegou. A Amizade, frágil, desmaiou. E o Amor sorriu. A Justiça deu o caso por encerrado sem antes ouvi-lo. Justiça era meio surda de um ouvido, mas ninguém sabia. Todos foram libertos, mas o Amor ficou. Amor é aquele mendigo que mesmo quando não faz nada, é culpado de tudo. Culpado pelo azedume da Raiva, pela benevolência da Compaixão, pelas armas da Mentira, pela desistência do Sorriso, pela presença da Lágrima, pelo silêncio da Amizade, pelos ímpetos da Paixão e pela burrice da Justiça. Prisão perpétua para o Amor que só queria mendigar."
Ainda não sei se Serafim tem Razão... Mas saí da escola aquela manhã com a certeza que eu, eu mesma, havia negado fortunas ao Amor durante toda a minha Vida. Nota máxima e não se fala mais nisso. Serafim de um Sorriso... Mas dessa vez, a Lágrima separou-se dele e veio morar em meus olhos. Que um dia eu me torne maiúscula. Ou quem sabe, que um dia eu me torne sentimento.
sexta-feira, 11 de maio de 2012
Refúgio - Parte II
Boa tarde. Perdoe-me a demora, eu sei que prometi voltar o quanto antes, mas confesso que desisti. A falência da motivação e o cansaço que me atinge o punho não deram tréguas essa semana. O que eu quero lembrar, muitos já esqueceram. Mas hoje, meu amigo, hoje os céus deixaram escapar o aviso detrás das nuvens. Os passarinhos estão em farra e o céu quis pintar-se de violeta. Cenário perfeito para dedicar-se às memórias.
Sem mais delongas, voltemos então para aquela véspera de Páscoa. Meu ímpeto de pular no riacho junto com Gonçalves foi cessado quando avistei a figura de uma menina com os cabelos cor de fogo trançados, penteando a boneca de um olho só. Tapei a boca de meu amigo que ainda estava a gargalhar sem parar e nós dois olhamos embasbacados para a pequena ruivinha que cantarolava uma melodia de entristecer até mesmo o coração das rochas. Uma garota? E ainda, uma garota sozinha? Ora, aquele riacho não era ambiente para uma mocinha, e sabíamos disso. Crianças não passam de papagaios que reproduzem a fala dos adultos, e esses velhos ditos nós conhecíamos de cor. Moça direita não anda na rua desacompanhada. O que ela tinha na cabeça, afinal? Meninas costumam ser mais ajuizadas que meninos, envelhecem mais cedo e nos vemos ainda moleques no auge dos dezoito anos, enquanto elas cuidam de um marido e uma barriga. Foi então que pensamos: Deve estar perdida.
- Ei, você!
A menina nos encarou atemorizada e fugiu para detrás de uma árvore fina e sem folhas. Pude ver exatamente a cor de seus belos olhos de ametista por detrás dos galhos mortos. Na correria, deixou cair a boneca velha e quase deixou escapulir algumas gotas salgadas. Decerto, temia que fizéssemos algum mal à sua colega dos cabelos de corda.
- Está perdida? Como se chama?
A menina perdeu a timidez. Foi aos poucos ajeitando o vestido, aprumando-se toda e apertando muito bem o laço de fita que trazia na cabeça, enfeitando os fios avermelhados. Parecia uma senhora de vinte e poucos anos que acabara de levar um susto daqueles. Uma verdadeira donzela desengonçada. Deu três piscadelas rápidas e se apressou em nos falar.
- Me chamo Eleonora. Homessa, não estou perdida! Moro nas redondezas. E vocês, cavalheiros?
Eu e Gonçalves nos fitamos e dissemos em perfeito coral: "Cavalheiros?". O outro já queria rir. Ninguém nunca o havia chamado de cavalheiro antes. Na verdade, nem sabíamos o que queria dizer, só entendíamos que não havia cavalo algum por perto. Finalmente, peguei ares de coragem para dizer:
- Eu me chamo Emílio. E esse é Gonçalves, meu amigo. Viemos tomar um banho pois fomos dispensados da aula mais cedo. E você, o que fazes aqui? Está perdida, com fome? Podemos pegar algumas frutas se quiser, será um gosto.
Gonçalves me deu uma cotovelada. Decerto, estava falando feito um tolo. Eleonora riu.
- Dispensados, claro... São dois ociosos. Não estou com fome, trouxe pão e bolo na merendeira. Mamãe mesmo que preparou, caso eu sentisse o estômago roncar. Mas fico grata, senhores. Estou aqui porque Maria só sabe fazer poesia quando escuta a sinfonia das águas.
- Quem é Maria? - perguntei alongando o pescoço para ver se realmente só havia nós três ali.
- Minha boneca. Ela é uma grande escritora!
Rimos gostosamente. E só paramos quando percebemos um leve inchaço nas bochechas de Eleonora. Estava furiosa.
- Não vejo motivo para graça. Meninos... Acham que tudo é pilhéria. - e sentou-se novamente na pedra próxima ao riacho, ignorando nossa presença e pondo-se a pentear sua Maria.
- E meninas não deveriam ficar sozinhas. Vamos lá, vá você e sua Maria para casa. - Provocou Gonçalves.
- O que? O que foi que disse? Por que meninas não devem ficar sozinhas?
- Ora, porque são meninas.
- Tem graça...
- Não devem e pronto.
- Pois saibam que sei me cuidar muito bem sozinha. Agora se não se importam, gostaria de apreciar o sossego que vim buscar.
- Você fala engraçado.
- Engraçado?
- Cuak, cuak! Você é um papagaio. Só sabe repetir. És uma tonta!
- Oh, céus...
Dei um pontapé em Gonçalves que o fez morder a própria língua.
- Desculpe Gonçalves... Ele não está acostumado a lidar com meninas.
- E você está?
- Bem, eu... eu...
- Não está. Meninos não gaguejam perante meninas.
- Não?
- Não.
- Então o que fazem?
- Mamãe diz que eles nos chamam pra dançar.
- Dançar?
- Valsa.
- Eu não sei dançar valsa, e aqui não tem música.
- É verdade... Bem, acho que mamãe está enganada. Enfim, continuem o que estavam fazendo. Ou tentando fazer, não sei.
- Você tem quantos anos?
- Oito e meio.
- E vai ficar aí? Nos olhando?
- E onde está o problema?
- Você é menina!
- Por Deus, eu sei que sou menina. Já perdi as contas de quantas vezes ouvi que sou menina.
- O que quero dizer é que não deve nos ver em trajes íntimos.
- Pois se quiserem, nadem de roupa. Daqui eu não saio. E estão atrapalhando a concentração de Maria. Pelo visto, hoje não tem poesia.
Ficamos em silêncio por dois minutos. Tempo demais para três crianças tagarelas. Você deve estar se perguntando como lembro de tudo isso, se antes mesmo havia dito que minha memória era falha. Mas garanto, lembro de cada travessão que expus nestas linhas sorridentes. Não lembro nem mesmo do que a enfermeira me disse ontem, mas lembro exatamente de tudo, como se os mesmo passarinhos que ouço agora cantassem para nós naquela tarde quente em especial.
Gonçalves deu um pulo na água de cueca e tudo. Ele havia ido lá para nadar e não era a presença indesejável (e maravilhosa) de Eleonora que os planos sairiam do curso.
Olhei para ela com meio sorriso e obtive como resposta um desdenhoso: "E você virou estátua?". Fui logo atrás de Gonçalves. Ríamos feito duas hienas escandalosas, mas eu não tirava os olhos da menina que cantarolava concentrada na arrumação dos cabelos de Maria. E ela fingia não me olhar também, mas pude ver suas mãozinhas em cima da testa para tapar o Sol e nos espiar melhor. Mas quando eu olhava, ela fingia estar enxugando o suor e logo voltava ao que estava fazendo. Achei graça. Estava apaixonado pela primeira e única vez.
Esse ponto final vira reticências, amigo. Perdoe-me... Não vi o tempo passar e os passarinhos já buscam abrigo dentro das árvores. Sinal de que é hora das memórias também dormirem, senão elas se perdem por aí como vento em meio à furacão. Velhos dormem cedo para que a alma não esteja cansada amanhã. Que Deus me ajude a suportar mais um dia. Durma bem, meu caro. Até mais ver.
Sem mais delongas, voltemos então para aquela véspera de Páscoa. Meu ímpeto de pular no riacho junto com Gonçalves foi cessado quando avistei a figura de uma menina com os cabelos cor de fogo trançados, penteando a boneca de um olho só. Tapei a boca de meu amigo que ainda estava a gargalhar sem parar e nós dois olhamos embasbacados para a pequena ruivinha que cantarolava uma melodia de entristecer até mesmo o coração das rochas. Uma garota? E ainda, uma garota sozinha? Ora, aquele riacho não era ambiente para uma mocinha, e sabíamos disso. Crianças não passam de papagaios que reproduzem a fala dos adultos, e esses velhos ditos nós conhecíamos de cor. Moça direita não anda na rua desacompanhada. O que ela tinha na cabeça, afinal? Meninas costumam ser mais ajuizadas que meninos, envelhecem mais cedo e nos vemos ainda moleques no auge dos dezoito anos, enquanto elas cuidam de um marido e uma barriga. Foi então que pensamos: Deve estar perdida.
- Ei, você!
A menina nos encarou atemorizada e fugiu para detrás de uma árvore fina e sem folhas. Pude ver exatamente a cor de seus belos olhos de ametista por detrás dos galhos mortos. Na correria, deixou cair a boneca velha e quase deixou escapulir algumas gotas salgadas. Decerto, temia que fizéssemos algum mal à sua colega dos cabelos de corda.
- Está perdida? Como se chama?
A menina perdeu a timidez. Foi aos poucos ajeitando o vestido, aprumando-se toda e apertando muito bem o laço de fita que trazia na cabeça, enfeitando os fios avermelhados. Parecia uma senhora de vinte e poucos anos que acabara de levar um susto daqueles. Uma verdadeira donzela desengonçada. Deu três piscadelas rápidas e se apressou em nos falar.
- Me chamo Eleonora. Homessa, não estou perdida! Moro nas redondezas. E vocês, cavalheiros?
Eu e Gonçalves nos fitamos e dissemos em perfeito coral: "Cavalheiros?". O outro já queria rir. Ninguém nunca o havia chamado de cavalheiro antes. Na verdade, nem sabíamos o que queria dizer, só entendíamos que não havia cavalo algum por perto. Finalmente, peguei ares de coragem para dizer:
- Eu me chamo Emílio. E esse é Gonçalves, meu amigo. Viemos tomar um banho pois fomos dispensados da aula mais cedo. E você, o que fazes aqui? Está perdida, com fome? Podemos pegar algumas frutas se quiser, será um gosto.
Gonçalves me deu uma cotovelada. Decerto, estava falando feito um tolo. Eleonora riu.
- Dispensados, claro... São dois ociosos. Não estou com fome, trouxe pão e bolo na merendeira. Mamãe mesmo que preparou, caso eu sentisse o estômago roncar. Mas fico grata, senhores. Estou aqui porque Maria só sabe fazer poesia quando escuta a sinfonia das águas.
- Quem é Maria? - perguntei alongando o pescoço para ver se realmente só havia nós três ali.
- Minha boneca. Ela é uma grande escritora!
Rimos gostosamente. E só paramos quando percebemos um leve inchaço nas bochechas de Eleonora. Estava furiosa.
- Não vejo motivo para graça. Meninos... Acham que tudo é pilhéria. - e sentou-se novamente na pedra próxima ao riacho, ignorando nossa presença e pondo-se a pentear sua Maria.
- E meninas não deveriam ficar sozinhas. Vamos lá, vá você e sua Maria para casa. - Provocou Gonçalves.
- O que? O que foi que disse? Por que meninas não devem ficar sozinhas?
- Ora, porque são meninas.
- Tem graça...
- Não devem e pronto.
- Pois saibam que sei me cuidar muito bem sozinha. Agora se não se importam, gostaria de apreciar o sossego que vim buscar.
- Você fala engraçado.
- Engraçado?
- Cuak, cuak! Você é um papagaio. Só sabe repetir. És uma tonta!
- Oh, céus...
Dei um pontapé em Gonçalves que o fez morder a própria língua.
- Desculpe Gonçalves... Ele não está acostumado a lidar com meninas.
- E você está?
- Bem, eu... eu...
- Não está. Meninos não gaguejam perante meninas.
- Não?
- Não.
- Então o que fazem?
- Mamãe diz que eles nos chamam pra dançar.
- Dançar?
- Valsa.
- Eu não sei dançar valsa, e aqui não tem música.
- É verdade... Bem, acho que mamãe está enganada. Enfim, continuem o que estavam fazendo. Ou tentando fazer, não sei.
- Você tem quantos anos?
- Oito e meio.
- E vai ficar aí? Nos olhando?
- E onde está o problema?
- Você é menina!
- Por Deus, eu sei que sou menina. Já perdi as contas de quantas vezes ouvi que sou menina.
- O que quero dizer é que não deve nos ver em trajes íntimos.
- Pois se quiserem, nadem de roupa. Daqui eu não saio. E estão atrapalhando a concentração de Maria. Pelo visto, hoje não tem poesia.
Ficamos em silêncio por dois minutos. Tempo demais para três crianças tagarelas. Você deve estar se perguntando como lembro de tudo isso, se antes mesmo havia dito que minha memória era falha. Mas garanto, lembro de cada travessão que expus nestas linhas sorridentes. Não lembro nem mesmo do que a enfermeira me disse ontem, mas lembro exatamente de tudo, como se os mesmo passarinhos que ouço agora cantassem para nós naquela tarde quente em especial.
Gonçalves deu um pulo na água de cueca e tudo. Ele havia ido lá para nadar e não era a presença indesejável (e maravilhosa) de Eleonora que os planos sairiam do curso.
Olhei para ela com meio sorriso e obtive como resposta um desdenhoso: "E você virou estátua?". Fui logo atrás de Gonçalves. Ríamos feito duas hienas escandalosas, mas eu não tirava os olhos da menina que cantarolava concentrada na arrumação dos cabelos de Maria. E ela fingia não me olhar também, mas pude ver suas mãozinhas em cima da testa para tapar o Sol e nos espiar melhor. Mas quando eu olhava, ela fingia estar enxugando o suor e logo voltava ao que estava fazendo. Achei graça. Estava apaixonado pela primeira e única vez.
Esse ponto final vira reticências, amigo. Perdoe-me... Não vi o tempo passar e os passarinhos já buscam abrigo dentro das árvores. Sinal de que é hora das memórias também dormirem, senão elas se perdem por aí como vento em meio à furacão. Velhos dormem cedo para que a alma não esteja cansada amanhã. Que Deus me ajude a suportar mais um dia. Durma bem, meu caro. Até mais ver.
domingo, 6 de maio de 2012
Refúgio - Parte I
Meu nome é José Emílio da Costa Soares, tenho 85 anos e sou natural de Belo Horizonte, mas moro em São Paulo não faz menos que trinta anos. Mudei-me para cá com Eleonora e meus três filhos. Casei cedo, como era de costume na época. Se não me falha a tola memória, a cerimônia oficial aconteceu em meados de 1945, mas o namorico já vinha de muito antes.
Eleonora surgiu com um vestido rendado branco de gola alta, daqueles com muitos babados e essas tranqueiras que as dondocas encaravam por moda. Ah, ela estava deslumbrante... Eu fui um rapazote de sorte por ter posto uma aliança naqueles finos dedos de unhas amarelo-cobre. Pena que não pude presentear-lhe com a joia que queria. Custava o que hoje não deve passar de dois mil reais. Eu era ajudante na padaria de meu pai, minha família nunca teve muita condição financeira. E depois que ele faleceu decorrente de uma febre alta, não tive outra saída senão arrumar as trouxas.
Perdão se me apressei. Vamos recomeçar. O nome não interessa, o lugar de onde vim pouco importa. Hoje meu lar é aqui junto com os outros velhos. Eles fedem a talco, mas fazem menos graça que bebês. Alguns enlouqueceram, outros apenas estão doentes de solidão. Conheço apenas quatro que vieram para cá por livre e espontânea vontade, se é que posso chamar a tristeza e o medo angustiante de padecer sozinho de liberdade. A maioria foi jogada aqui como cão sarnento pelos filhos ou parentes próximos. Filhos... Malditos. Embora tão desgraçados, o meu maior medo é esquecer-me das feições de minhas crianças.
Você deve estar se perguntando como eu cheguei aqui. Peço desculpas pela minha fantasia, mas um pedaço de papel e uma caneta quase falhando são os únicos amigos fiéis que um velho decrépito pode ter. A história é longa, meu caro. Tão longa quanto o meu penar. Não quero pular os detalhes, já que um diário não tem limites de linhas e lágrimas, mas também sei que a cabeça é lacunada e o coração mais ainda.
Começaremos então por Belo Horizonte, ano 1937. Foi nessa época que mudei para a fazenda amarela de meu pai quando mamãe largou-nos. Foi uma infância simples, mas hoje não tenho do que reclamar. Uma das minhas maiores alegrias era roubar frutas no pomar do velho Olaor. Parece bobagem, mas foram os melhores joelhos ralados e palmadas que poderia arrumar. Matava as aulas para nadar no riacho em frente à escola, levava puxões de orelha do diretor carrancudo e nunca faltava uma cantiga entre as rodas de amigos. O caminho até o colégio era cheio de pedregulhos e não tinha dinheiro para comprar sapatos bons. Os meus eram remendados. Era muito mais cômodo cortar o trecho e ir molhar os pés na grama umedecida do campo.
Dona Jezebel também não escapa-me da memória. Era a preta velha encarregada de ajudar meu pai na cozinha. Seu salário era casa, roupa e comida. Reclamava dia e noite de dores nas costas e eu achava seus gemidos insuportáveis. Constantemente perdia os óculos, pedia-me ajuda para procurar e eu lhe questionava aos berros: "Céus, Dona Jezebel, cole esses óculos na cara! Todo dia é a mesma ladainha". Jezebel ria e dizia que um dia eu entenderia... A velhice um dia chegaria à minha cabeça também. Mas nunca pensamos nisso, não é? Somos sempre jovens, cheios de vida, com joelhos bons e preocupações supérfluas. Quem dera eu pudesse voltar no tempo e dizer ao menino Emílio para procurar os óculos sem pestanejar, porque agora mesmo eu já não sabia onde enfiara os meus.
Era véspera de Páscoa. Única época, fora o natal, em que eu gabava-me da profissão sofrida de meu pai. Contudo, as aulas nesse período duplicavam as asneiras. Houve dias em que fizemos três redações apenas para explicar o sentido real da Páscoa. Que moleque de dez anos quer saber disso? Ah, não. Gonçalves, meu melhor amigo, convidou-me para ir matar aula no riacho com os outros da turma ao lado. Eu não pensei duas vezes. Pedi a bênção ao velho, abotoei o macacão, pus os livros nas costas e segui reto até próximo ao caminho de pedregulho... Logo depois, dobrei. Encontrei Gonçalves próximo à grande árvore e seguíamos já tirando as roupas e largando o material, gargalhando e maldizendo a pobre professora.
Foi exatamente nesse dia, nessa aprazível véspera de Páscoa, que conheci minha Eleonora.
Sorte que os papéis não têm ouvidos, senão já teriam me dado as costas como todos os outros. Perdão por interromper minha narração. É hora do xadrez e tenho que esconder o diário antes que alguém o veja e me encha a paciência já tão desgastada. Deveria dizer até breve? Ou quem sabe... Até onde meu coração aguentar bater.
1945
Hoje é aniversário de Aharon. Sete anos. Há dez dias atrás, às 13h47, a morte gritou. Era o alarme para levar os recém-chegados até o "banho". Eu e mais nove diabos ficamos encarregados da vil tarefa de manipular a multidão de ossos e sangue judeu prestes a ser derramado.
A câmera de gás estava faminta. Crianças, velhos, adultos, todo tipo de carne. E no meio dos olhares perdidos, o pequeno Aharon; um anjo. Olhou-me como um carneiro olha para a faca que cortará seu pescoço. Eu senti-me imundo, mas não tão imundo quanto o cano da arma que apontava para as minhas costas e para as de meus companheiros, obrigando-me a apressar os passos e aumentar o tom de voz. O menino não largava da mão da mãe. Tão pequenino e magro que não parecia ter mais de cinco anos, tão fraco que mal conseguia andar. O segundo alarme soou e todos já estavam dentro do caixão.
Eu mesmo acionei a liberação do gás. As lágrimas que escorriam dos meus olhos misturavam-se com as lágrimas de medo do menino Aharon. Culpa. Não demorou mais que três minutos e os gritos de dor silenciaram-se. Abrimos a câmera para a retirada dos corpos. Não havia gente. Havia apenas corpos mutilados, línguas cortadas e olhos arrancados pelo impacto da morte sangrenta. Levantamos verme por verme, até ouvirmos uns gemidos fracos. Virei-me para o barulho que, naquele local onde só o vazio da tristeza podia imperar, era ensurdecedor.
- Está vivo, Caleb! Este ainda tem pulso.
Aharon estava vivo. O corpo da mãe caiu sobre ele, impedindo que o gás o atingisse. Era inacreditável. Eu e os outros levamos o pequeno para um local seguro, demos água e pão velho. Ele parecia estar bem, ainda que um tanto desnorteado. Ainda que não houvesse espaço, nós tínhamos um lema: A vida em primeiro lugar. Sabíamos que morte nos rodeava, que Aharon continuava em perigo, mas em Auschwitz nenhum coração será ignorado. Nenhuma Estrela de Davi se apagará por nossa indiferença.
Eis uma vantagem nos campos de concentração. Sua ausência nunca é notada. Somos números. Bastava um pijama listrado e Aharon seria o 67. Sua morte? Imprescindível para os alemães, mas completamente ignorável pelos próprios capatazes. Juntamos o menino com os outros trabalhadores. Ficou encarregado de tirar os pratos sujos do refeitório. Uma tarefa arriscada. Sim, eu disse arriscada. Para cada prato esquecido, um tiro na cabeça.
Cuidei daquele menino como filho. Os meus eu já havia queimado, junto com os outros 2.000 mortos. Toda noite eu dava-lhe pão e leite, ainda que fosse dormir com a barriga roncando. Contava-lhe histórias de quando eu era médico. Sim, fui médico. Hoje planto batatas, mas fui um dos melhores médicos de minha região. Tratei dos feridos quando tinha o privilégio de morar no gueto, junto com baratas e ratos. Mas não me chame de doutor. Me chame de 34.
Eram 4h30 da manhã de hoje quando me acordaram aos berros. Senti a língua voltando para o esôfago. Era minha hora de matar ou morrer. Sempre me chamaram para executar os ladrões ou infratores da fábrica. Ou simplesmente... judeus. Era o vosso crime. Corri para o pátio, o oficial me aguardava.
- Conheces esse demônio, Caleb?
Era Aharon, meu menino. Emudeci. Comandante Burkhard apontava para ele com a arma em punho.
- Pelo amor de Deus, Caleb, responda-me!
- Sim senhor, conheço. É Aharon, trabalha no refeitório da fábrica.
- Este verme bastardo manchou minha farda com borra de café. Tive a benevolência de dar-lhe apenas uma surra como punição, quando ouvi ele berrar por seu nome. O que és dele?
- Nada, senhor.
- Eu bem imaginei. Rapazinho, aproxime-se.
Aharon permaneceu estático até ouvir a segunda ordem de comando. Chorava como criança recém-nascida, mas não dava um pio. As palavras eram traiçoeiras demais. O patife acariciou-lhe a cabeça raspada e deu dois tapas camaradas em suas costas franzinas.
Burkhard sorriu como Lúcifer. Ofereceu-me a arma e a voz foi clara.
- Atire.
Empurrou Aharon para que caísse de joelhos na minha frente. Eu não poderia atirar. Eu preferiria a lançar aquela bala contra minha própria cabeça. Seria o certo a fazer... Mesmo sabendo que o corpo de Aharon cairia logo sob o meu. O menino lançou um suspiro: Frömmigkeit, bitte. (Piedade, por favor.)
- Vamos, atire! Mate-o! Estraçalhe os miolos deste verme! Vamos, estais surdo, judeu maldito? Mate-o! Antes que eu o faça! E sabes que morrerá os dois. Estou dando uma chance. Mate o infeliz!
Fechei os olhos procurando uma saída à Gott. Aharon continuava de joelhos, choramingando, machucado e com olhos roxos de gazela ferida. A surra roubara-lhe dois dentes e a dignidade.
- Atire! Vamos, atire! Atire de uma vez! Seja homem, Caleb!
Gritei e pressionei os olhos, os dedos escaparam-me. Caí de joelhos também. O sangue quente de Aharon inundava-me os pés. O menino que ajudei a salvar caiu, assassinado pela arma que caía de minhas mãos. Eu o abracei e quis morrer também. Malditos alemães! Malditos! A minha única vontade era atirar na cabeça de Burkhard e logo em seguida desperdiçar a última bala em mim, um traidor, um assassino. Mas o demônio roubou o revólver de mim para que eu pudesse agonizar a morte do menino que salvou-me a alma, que fez-me sorrir por dez dias.
O corpo continua lá. Pedaços de cérebro são comidos pelos ratos famintos e ninguém arrisca a tirar meu menino daquela situação deplorável. Ele não merecia aquilo. Se ao menos ele tivesse morrido naquela maldita câmera de gás... Se ao menos eu não o tivesse achado...
E assim me despeço, com lágrimas nos olhos e coração espirrando sangue. Não tenho mais tempo para escrever. Escondam-se, por Deus! Escondam-se. O grito da morte soou novamente. Primeiro alarme.
- Hey, Hitler!
A câmera de gás estava faminta. Crianças, velhos, adultos, todo tipo de carne. E no meio dos olhares perdidos, o pequeno Aharon; um anjo. Olhou-me como um carneiro olha para a faca que cortará seu pescoço. Eu senti-me imundo, mas não tão imundo quanto o cano da arma que apontava para as minhas costas e para as de meus companheiros, obrigando-me a apressar os passos e aumentar o tom de voz. O menino não largava da mão da mãe. Tão pequenino e magro que não parecia ter mais de cinco anos, tão fraco que mal conseguia andar. O segundo alarme soou e todos já estavam dentro do caixão.
Eu mesmo acionei a liberação do gás. As lágrimas que escorriam dos meus olhos misturavam-se com as lágrimas de medo do menino Aharon. Culpa. Não demorou mais que três minutos e os gritos de dor silenciaram-se. Abrimos a câmera para a retirada dos corpos. Não havia gente. Havia apenas corpos mutilados, línguas cortadas e olhos arrancados pelo impacto da morte sangrenta. Levantamos verme por verme, até ouvirmos uns gemidos fracos. Virei-me para o barulho que, naquele local onde só o vazio da tristeza podia imperar, era ensurdecedor.
- Está vivo, Caleb! Este ainda tem pulso.
Aharon estava vivo. O corpo da mãe caiu sobre ele, impedindo que o gás o atingisse. Era inacreditável. Eu e os outros levamos o pequeno para um local seguro, demos água e pão velho. Ele parecia estar bem, ainda que um tanto desnorteado. Ainda que não houvesse espaço, nós tínhamos um lema: A vida em primeiro lugar. Sabíamos que morte nos rodeava, que Aharon continuava em perigo, mas em Auschwitz nenhum coração será ignorado. Nenhuma Estrela de Davi se apagará por nossa indiferença.
Eis uma vantagem nos campos de concentração. Sua ausência nunca é notada. Somos números. Bastava um pijama listrado e Aharon seria o 67. Sua morte? Imprescindível para os alemães, mas completamente ignorável pelos próprios capatazes. Juntamos o menino com os outros trabalhadores. Ficou encarregado de tirar os pratos sujos do refeitório. Uma tarefa arriscada. Sim, eu disse arriscada. Para cada prato esquecido, um tiro na cabeça.
Cuidei daquele menino como filho. Os meus eu já havia queimado, junto com os outros 2.000 mortos. Toda noite eu dava-lhe pão e leite, ainda que fosse dormir com a barriga roncando. Contava-lhe histórias de quando eu era médico. Sim, fui médico. Hoje planto batatas, mas fui um dos melhores médicos de minha região. Tratei dos feridos quando tinha o privilégio de morar no gueto, junto com baratas e ratos. Mas não me chame de doutor. Me chame de 34.
Eram 4h30 da manhã de hoje quando me acordaram aos berros. Senti a língua voltando para o esôfago. Era minha hora de matar ou morrer. Sempre me chamaram para executar os ladrões ou infratores da fábrica. Ou simplesmente... judeus. Era o vosso crime. Corri para o pátio, o oficial me aguardava.
- Conheces esse demônio, Caleb?
Era Aharon, meu menino. Emudeci. Comandante Burkhard apontava para ele com a arma em punho.
- Pelo amor de Deus, Caleb, responda-me!
- Sim senhor, conheço. É Aharon, trabalha no refeitório da fábrica.
- Este verme bastardo manchou minha farda com borra de café. Tive a benevolência de dar-lhe apenas uma surra como punição, quando ouvi ele berrar por seu nome. O que és dele?
- Nada, senhor.
- Eu bem imaginei. Rapazinho, aproxime-se.
Aharon permaneceu estático até ouvir a segunda ordem de comando. Chorava como criança recém-nascida, mas não dava um pio. As palavras eram traiçoeiras demais. O patife acariciou-lhe a cabeça raspada e deu dois tapas camaradas em suas costas franzinas.
Burkhard sorriu como Lúcifer. Ofereceu-me a arma e a voz foi clara.
- Atire.
Empurrou Aharon para que caísse de joelhos na minha frente. Eu não poderia atirar. Eu preferiria a lançar aquela bala contra minha própria cabeça. Seria o certo a fazer... Mesmo sabendo que o corpo de Aharon cairia logo sob o meu. O menino lançou um suspiro: Frömmigkeit, bitte. (Piedade, por favor.)
- Vamos, atire! Mate-o! Estraçalhe os miolos deste verme! Vamos, estais surdo, judeu maldito? Mate-o! Antes que eu o faça! E sabes que morrerá os dois. Estou dando uma chance. Mate o infeliz!
Fechei os olhos procurando uma saída à Gott. Aharon continuava de joelhos, choramingando, machucado e com olhos roxos de gazela ferida. A surra roubara-lhe dois dentes e a dignidade.
- Atire! Vamos, atire! Atire de uma vez! Seja homem, Caleb!
Gritei e pressionei os olhos, os dedos escaparam-me. Caí de joelhos também. O sangue quente de Aharon inundava-me os pés. O menino que ajudei a salvar caiu, assassinado pela arma que caía de minhas mãos. Eu o abracei e quis morrer também. Malditos alemães! Malditos! A minha única vontade era atirar na cabeça de Burkhard e logo em seguida desperdiçar a última bala em mim, um traidor, um assassino. Mas o demônio roubou o revólver de mim para que eu pudesse agonizar a morte do menino que salvou-me a alma, que fez-me sorrir por dez dias.
O corpo continua lá. Pedaços de cérebro são comidos pelos ratos famintos e ninguém arrisca a tirar meu menino daquela situação deplorável. Ele não merecia aquilo. Se ao menos ele tivesse morrido naquela maldita câmera de gás... Se ao menos eu não o tivesse achado...
E assim me despeço, com lágrimas nos olhos e coração espirrando sangue. Não tenho mais tempo para escrever. Escondam-se, por Deus! Escondam-se. O grito da morte soou novamente. Primeiro alarme.
- Hey, Hitler!
- Não olhe para mim!
Ele estava ali, escondendo-se atrás da cortina azulada da janela com flores... Tão pequeno e frágil. Eu deveria estar segurando sua mão. O meu menino permanecia estático, com os olhos marrons petrificados e cabeça baixa. Lembrei-me das vezes em que vi aquela mesma expressão facial. Fechei os olhos.
Há três anos atrás ele vinha até meu quarto, pávido e desconfiado, derramando as mais barulhentas lágrimas. Batia os bracinhos contra meu travesseiro e não sossegava até que eu desistisse de argumentar contra seu pavor ridículo. Eu segurava sua mão e ele me guiava em silêncio até sua cama pequena e úmida.
- Aqui mamãe! Ele está aqui!
Meu menino tinha medo de monstros. Ele me descrevia uma criatura horrenda, gosmenta, verde e com uma boca larga cheia de dentes pontiagudos. Eu levantava o edredom e mostrava que não havia nada ali. Estava tudo bem, ele não tinha o que temer. Ele escondia-se atrás da minha saia, ainda atemorizado, olhando para todos os cantos em busca do monstro fujão. Olhava-me com olhos de amor, deitava-se mais uma vez e eu cantava para que o sono dos corações acalentados lhe visitasse novamente.
Abri os olhos. Ele estava aterrorizado e a enfermeira tentava fazer com que ele se aproximasse de mim. Eu queria abraçá-lo e dizer que ficaria tudo bem. Eu queria...
- Não olhe para mim! Não deixe que ele olhe para mim, tire-o daqui! Tire-o daqui imediatamente, não quero vê-lo!
Ele chorou. O médico ainda tentou acalmá-lo dizendo que não havia o que temer, mas eu sabia... Meu menino tinha medo de monstros. Eu era um monstro. Mãos trêmulas e anêmicas, corpo debilitado, fétido e decrépito, os lábios desidratados só sentiam o salgado sabor da tristeza. A tosse era incessante, a pele já estava tão translúcida que era possível ver quase todas as minhas veias, e olheiras enormes e arroxeadas contrastavam com a palidez da minha face grotesca. Lembrei-me também do desenho de nós dois que guardava na cômoda do hospital. Redesenhava cada traço em meu pensamento conturbado pelos remédios. Uma mulher de longos cabelos castanhos segurando a mão de um pequeno menino risonho. Atrás da folha amassada, um recado: "Mamãe, aguente mais uns dias. Eu te amo". Os dias viraram meses, os meses viram anos. A quimioterapia arrancou-me fio por fio daquelas madeixas e o menino risonho chorava atrás do doutor, sendo homem antes do tempo, vendo sua mãe debatendo-se sob a cama.
A moça de branco injetou-me um tranquilizante, mas a única agulha que eu sentia atravessando meu corpo era a incapacidade de abraçá-lo. Ele era tão pequeno... Uma borboleta cujo casulo abriram antes que aprendesse a voar. Como podiam ser tão truculentos? Ele era só uma criança, não tinha culpa. Até o espelho sentia repulsa de reproduzir a imagem que eu oferecia-lhe. Estava assustado, aterrorizado. Eu implorava para que o tirassem de seu próprio pesadelo. Eu não merecia seu olhar. Eu não merecia o toque de um anjo, minha carne estava podre e ardendo em chamas febris. Eu já não era mulher. Eu já não era mãe. Eu já não era humana. Meu corpo pulsava como o corpo de um verme também pulsa. A alma também perdera o brilho. O coração batia em outro peito.
Adormeci. Três horas passaram-se e quando abri os olhos novamente, exausta pelo simples ato de respirar, eu o vi. Estava mais sossegado, com o dedo na boca e o velho urso de pelúcia embaixo do braço. Aproximou-se de mim com um sorriso tímido, mas ainda com a cabeça baixa em sinal de relutância. Ele beijou meu rosto rapidamente e se afastou... Eu sorri. Sorri com o desespero de quem perdera a felicidade. Algumas lágrimas pequeninas escorreram pelo rostinho que me fitava embasbacado.
Eu queria ver aquelas lágrimas... Queria vê-lo chorar no dia de seu casamento, queria tratar de seus joelhos feridos e de seus amores incompletos. Gostaria de vê-lo tomando suas próprias atitudes e segurar sua mão para reergue-lo quando fizesse alguma besteira. Eu daria aquela viagem à Paris quando completasse dezesseis anos, prepararia um delicioso jantar para quando ele quisesse me apresentar a primeira namorada. Queria aplaudi-lo quando recebesse seu diploma de advogado. Estaria chorando também, com uma câmera na mão e de coração estufado pelo orgulho de ver meu grande homem formado. Eu queria ouvir os passinhos de meus netos correndo pela casa. Eu queria... Viver e vê-lo vivendo.
Enquanto isso ele me via morrer. Cada dia... Ele me via morrer. Não eram apenas os aparelhos, tubos e furos em minha pele que me faziam persistir. Era ele. Um pequeno grão perdido na multidão de dissabores. O que seria dele sem alguém para cuidá-lo e protegê-lo? Meu menino não sabia, mas ele era sozinho. Eu o ajudei nos primeiros passos, mas quem diria que eu os desaprenderia. Eu o ajudei a alimentar-se sem ajuda, mas hoje minhas mãos não aguentam o peso da colher. Eu não desistiria tão facilmente. Ele precisava da minha vida mais do que eu mesma.
Ele atirou-se em meu corpo, abraçando-me com todas as suas pequeninas forças. E neste momento eu tive certeza... Ele acabara de me libertar. Eu podia ir em paz. Ele não precisava de mim, já era um homem. Um homem ou um menino bravio o suficiente para abraçar o próprio monstro. Sussurrei baixinho em seu ouvido:
- Perdoa-me, amor. Perdoa-me por não possuir a perfeição que tu precisas. Perdoa-me por te amar tanto a ponto de não conseguir viver vendo teu desespero. Perdoa-me pela fraqueza... Pelos momentos que não poderei viver ao teu lado. Perdoa-me, meu anjo, se a dor for tão grande que tu não consigas contornar. Mamãe disse que seria forte, mas o relógio está se apressando. Perdoa-me por desistir do teu abraço e do teu sorriso, mas já não posso com esta maldita doença. Meu amor, perdoa-me. Apenas perdoa-me porque no teu perdão eu talvez consiga me encontrar.
Larguei sua mão lentamente... Fechei os olhos pela última vez. Meu menino já não acreditava em monstros.
Florisbela, tão bela.
Ela traiu-me, enganou-me feito uma leoa impiedosa. Deixem-me explicar como tudo aconteceu antes que Florisbela adentre no quarto e eu agarre-lhe o pescoço com unhas e dentes.
Meu nome é Serafim Barbosa, trabalhava como ferreiro na velha fábrica de Belo Horizonte, no auge dos meus vinte e poucos anos, antes de eu mudar-me para São Paulo após o matrimônio. Morava com minha já falecida mãe e mais três irmãos que perdi de vista, numa casinha de pau a pique dada de presente pelo meu avô. Trabalhei desde os doze anos e as bolhas nas mãos não me deixam mentir. A vida foi desgraçada comigo, mas teve lá suas boas surpresas. Foi na capital mineira, dia dois de setembro que eu a conheci, na quermesse da cidade.
Florisbela usava um vestido branco com um laço nas costas, que marcava perfeitamente sua cintura afilada de menina-mulher. Os cabelos soltos deixavam à mostra os longos fios aloirados pelo Sol e a pele branca entregava algumas sardas que davam-lhe o ar dos anjos mais adoráveis. Não contive os olhares afoitos. Ela não devia ter mais que quinze anos, era uma moça linda e encantadora. Ora, eu vos pergunto, que qualidade eu, um pobre ferreiro, teria para conquistar uma donzela tão formosa? Ainda não sei a resposta, meus caros. Mas é certo que ela olhara-me também.
Um risinho seco, daqueles de canto de boca, desenhou-se nos lábios de minha menina. Tirei o chapéu surrado, dando uma ou duas ajeitadas no cabelo despenteado, e sorri-lhe de volta, tendo eu a audácia de mostrar-lhe meus dentes ralos. Aproximei três passos e perguntei seu nome. Ela ainda calou-se, fazendo-se de desentendida, mas soube que se chamava Florisbela. Não há nome que se encaixasse melhor. Uma flor, com beleza e espinhos inigualáveis.
O namoro durou um ano e meio. Os pais de Florisbela, dois velhos imundos e esnobes, não suportavam a minha presença. Decerto que eu aparecia sempre de pés desnudos, vestindo-me com trapos e vergonha. Mas Florisbela não desistira de mim. À noite, quando eles saíam para passear na praça, a minha menina arrumava um jeito de despistar a governanta, afirmando que ia na confeitaria comprar alguns quitutes, e encontrava-me atrás dos murros da escola abandonada. Não haviam beijos ou carícias, eu no máximo apalpava-lhe as mãozinhas. Florisbela gostava de criar diálogos entre as estrelas e eu ria de sua inocência. Nossas noites eram repletas de sorrisos e histórias. Eu presenteava-lhe com rosas roubadas e ela retribuía com gritinhos de felicidade. Minha tão doce alma gêmea.
Certo dia, Florisbela chegou em mim aos prantos. Explicou-me em meio à soluços agoniantes que os pais estavam querendo mandá-la para estudar fora do país. Meu coração recebeu uma punhalada e eu quase perdi os sentidos naquele exato momento. Eu queria agarrá-la por entre os braços e impedir que tal barbaridade fosse feita com nosso amor. Como eu viveria sem minha Bela? Como? Não haveria maneira, eu morreria de inanição logo em seguida. Foi então que Florisbela disparou. "Leve-me embora contigo, vamos nos casar! Vamos fugir para longe, Serafim". Essas palavras soaram como fantasmas para mim. Com que dinheiro? Com que transporte? Para onde? Amor não sustenta a vida. Dinheiro sim. Vendo meu silêncio impertinente, Florisbela empurrou-me e pôs-se a chorar ainda mais, dizendo que eu não a amava. Uma mentira que doeu mais do que uma lâmina atravessando minha carne. Eu a amava mais que a mim mesmo.
Fui para casa desolado, pensando na proposta e no outro dia antes do raiar do Sol, aprontei-me de coragem, fiz as malas e fui para a sacada da casa de Florisbela. Duas pedrinhas na janela a fizeram despertar, e um sorriso apareceu junto com nascer do Sol. Nenhuma palavra a mais. Florisbela aprontou-se, desceu a sacada e fomos juntos para a estrada, com três malinhas e muito amor nas costas.
Casamos numa Igrejinha antiga que agora não recordo-me o nome, tendo apenas às bençãos de Deus e de um pastor que me devia favores. Mudamos para São Paulo e as coisas mudaram também. Nos cinco primeiros anos do casamento, vieram Edmundo e Frantchesca, duas criaturinhas que puxaram exatamente os tons aloirados da mãe e meus grandes olhos azuis. Para minha tristeza, Frantchesca morreu de febre alta. Florisbela ficou desolada, emagreceu uns três quilos, e Edmundo quase não recebeu atenção da mãe nesse meio tempo. Não comia, não bebia, apenas chorava e desidratava. As pétalas de minha flor caiam pouco a pouco.
Após voltar do trabalho, fui pegar meu menino na escola do bairro. Uma sexta-feira chuvosa, onde não havia outro som senão os ruídos das árvores banhadas pelo temporal. Peguei a mãozinha de Edmundo e encaminhei-me direto para casa, preocupado com minha Flor.
Encontrei um vazio devastador e um recado em cima da cama remendada: "Querido esposo, querido filho... Já sequei-me em lágrimas, virei mulher cadáver. Peço desculpas pelo que acabei de fazer, e quero-lhes dizer que os amo com todas as minhas inúteis forças. A vida abandonou-me, e encontrarei meu anjo nos braços do meu Senhor. Eu os amos, cuidem-se."
Florisbela traiu-me. Encontrei-me jogado ao mundo, como cão vagabundo, para que eu morresse pouco a pouco, ou visse meu filho morrer perante à minha invalidez. Florisbela foi embora, para todo o sempre. Jamais a vi novamente, mas a espero todos os dias no quarto. Sei que ela voltará! Sei que ela verá Edmundo formar-se numa boa escola, sei que ela escutará os passinhos do primeiro neto. A janela do quarto permanece aberta. Florisbela abandonou a vida, e abandonou-me junto. Ela traiu-me com a Morte, e deixou-me como herança apenas a vontade de desistir e as lembranças de um amor escasso.
Meu nome é Serafim Barbosa, trabalhava como ferreiro na velha fábrica de Belo Horizonte, no auge dos meus vinte e poucos anos, antes de eu mudar-me para São Paulo após o matrimônio. Morava com minha já falecida mãe e mais três irmãos que perdi de vista, numa casinha de pau a pique dada de presente pelo meu avô. Trabalhei desde os doze anos e as bolhas nas mãos não me deixam mentir. A vida foi desgraçada comigo, mas teve lá suas boas surpresas. Foi na capital mineira, dia dois de setembro que eu a conheci, na quermesse da cidade.
Florisbela usava um vestido branco com um laço nas costas, que marcava perfeitamente sua cintura afilada de menina-mulher. Os cabelos soltos deixavam à mostra os longos fios aloirados pelo Sol e a pele branca entregava algumas sardas que davam-lhe o ar dos anjos mais adoráveis. Não contive os olhares afoitos. Ela não devia ter mais que quinze anos, era uma moça linda e encantadora. Ora, eu vos pergunto, que qualidade eu, um pobre ferreiro, teria para conquistar uma donzela tão formosa? Ainda não sei a resposta, meus caros. Mas é certo que ela olhara-me também.
Um risinho seco, daqueles de canto de boca, desenhou-se nos lábios de minha menina. Tirei o chapéu surrado, dando uma ou duas ajeitadas no cabelo despenteado, e sorri-lhe de volta, tendo eu a audácia de mostrar-lhe meus dentes ralos. Aproximei três passos e perguntei seu nome. Ela ainda calou-se, fazendo-se de desentendida, mas soube que se chamava Florisbela. Não há nome que se encaixasse melhor. Uma flor, com beleza e espinhos inigualáveis.
O namoro durou um ano e meio. Os pais de Florisbela, dois velhos imundos e esnobes, não suportavam a minha presença. Decerto que eu aparecia sempre de pés desnudos, vestindo-me com trapos e vergonha. Mas Florisbela não desistira de mim. À noite, quando eles saíam para passear na praça, a minha menina arrumava um jeito de despistar a governanta, afirmando que ia na confeitaria comprar alguns quitutes, e encontrava-me atrás dos murros da escola abandonada. Não haviam beijos ou carícias, eu no máximo apalpava-lhe as mãozinhas. Florisbela gostava de criar diálogos entre as estrelas e eu ria de sua inocência. Nossas noites eram repletas de sorrisos e histórias. Eu presenteava-lhe com rosas roubadas e ela retribuía com gritinhos de felicidade. Minha tão doce alma gêmea.
Certo dia, Florisbela chegou em mim aos prantos. Explicou-me em meio à soluços agoniantes que os pais estavam querendo mandá-la para estudar fora do país. Meu coração recebeu uma punhalada e eu quase perdi os sentidos naquele exato momento. Eu queria agarrá-la por entre os braços e impedir que tal barbaridade fosse feita com nosso amor. Como eu viveria sem minha Bela? Como? Não haveria maneira, eu morreria de inanição logo em seguida. Foi então que Florisbela disparou. "Leve-me embora contigo, vamos nos casar! Vamos fugir para longe, Serafim". Essas palavras soaram como fantasmas para mim. Com que dinheiro? Com que transporte? Para onde? Amor não sustenta a vida. Dinheiro sim. Vendo meu silêncio impertinente, Florisbela empurrou-me e pôs-se a chorar ainda mais, dizendo que eu não a amava. Uma mentira que doeu mais do que uma lâmina atravessando minha carne. Eu a amava mais que a mim mesmo.
Fui para casa desolado, pensando na proposta e no outro dia antes do raiar do Sol, aprontei-me de coragem, fiz as malas e fui para a sacada da casa de Florisbela. Duas pedrinhas na janela a fizeram despertar, e um sorriso apareceu junto com nascer do Sol. Nenhuma palavra a mais. Florisbela aprontou-se, desceu a sacada e fomos juntos para a estrada, com três malinhas e muito amor nas costas.
Casamos numa Igrejinha antiga que agora não recordo-me o nome, tendo apenas às bençãos de Deus e de um pastor que me devia favores. Mudamos para São Paulo e as coisas mudaram também. Nos cinco primeiros anos do casamento, vieram Edmundo e Frantchesca, duas criaturinhas que puxaram exatamente os tons aloirados da mãe e meus grandes olhos azuis. Para minha tristeza, Frantchesca morreu de febre alta. Florisbela ficou desolada, emagreceu uns três quilos, e Edmundo quase não recebeu atenção da mãe nesse meio tempo. Não comia, não bebia, apenas chorava e desidratava. As pétalas de minha flor caiam pouco a pouco.
Após voltar do trabalho, fui pegar meu menino na escola do bairro. Uma sexta-feira chuvosa, onde não havia outro som senão os ruídos das árvores banhadas pelo temporal. Peguei a mãozinha de Edmundo e encaminhei-me direto para casa, preocupado com minha Flor.
Encontrei um vazio devastador e um recado em cima da cama remendada: "Querido esposo, querido filho... Já sequei-me em lágrimas, virei mulher cadáver. Peço desculpas pelo que acabei de fazer, e quero-lhes dizer que os amo com todas as minhas inúteis forças. A vida abandonou-me, e encontrarei meu anjo nos braços do meu Senhor. Eu os amos, cuidem-se."
Florisbela traiu-me. Encontrei-me jogado ao mundo, como cão vagabundo, para que eu morresse pouco a pouco, ou visse meu filho morrer perante à minha invalidez. Florisbela foi embora, para todo o sempre. Jamais a vi novamente, mas a espero todos os dias no quarto. Sei que ela voltará! Sei que ela verá Edmundo formar-se numa boa escola, sei que ela escutará os passinhos do primeiro neto. A janela do quarto permanece aberta. Florisbela abandonou a vida, e abandonou-me junto. Ela traiu-me com a Morte, e deixou-me como herança apenas a vontade de desistir e as lembranças de um amor escasso.
Filho das Asas Metálicas
- Você lembra seu pai!
Ela dizia-me isso com uma ruga de descontentamento na testa. Sempre as mesmas palavras quando me comportava mal ou aprontava traquinagens. Nunca um elogio. Pai era sinônimo de repreensão. Eu lembro o vazio. Eu lembro um homem sem rosto, sem nome, sem forma ou cor. Eu sou a lembrança de um passado que não aconteceu.
- Quem é meu pai?
Mamãe largou as louças no chão, fazendo um estrondo que me dói os ouvidos até os dias de hoje. Ela chorou como a pior das tempestades jamais choraria. Mãos de concha sob a face, ajoelhou-se no chão e pôs a libertar a dor que a consumia.
Mamãe amava-me tanto que deixou o sentimento atravessar seu coração como uma lâmina afiada. Me amar a fazia lembrar de um amor do passado. Um amor que me deu pernas, braços e um juízo escasso.
Ela foi até o meu quarto, trouxe o pequeno canário, abriu a gaiola e o danado perdeu-se de minha vista. Chorei nos braços de minha mãe e ela esperou que a última lágrima caísse para me dizer:
- Seu pai também tem asas. Deixamos a janela aberta, meu amor. Ele bateu asas e virou esquecimento.
Mentira. Meu pai era tristeza, dor e melancolia. Saudade. Estava escrito nos olhos molhados da mulher que me acolhia em seus braços: Eu era filho do sofrimento.
- Seu pai também é canarinho.
Não falei nada e escutei com atenção.
- Ele quis morar nas nuvens. Lá o mundo parece feito de algodão, meu bem. A lua é de queijo e as estrelas são as almas de pessoas que já deixaram esta vida. Mas para entrar no céu e virar estrela, é preciso ter uma alma brilhante. As que não brilham, viram pedacinho de noite.
- Papai virou noite ou estrela, mamãe?
Ela deu um sorriso meia-boca, como quem esconde uma meia-lágrima.
- Seu pai… Ora, seu pai é canarinho.
A conversa completou um ano e meio de idade. Era meu aniversário. Assoprei quatro velas azuis e ganhei uma caixinha. Abri desanimado, o presente era pequeno demais para ser o videogame que tanto pedi. Ganhei uma medalha que trazia a imagem de uma avião.
- Um enfeite de colar? Homens não usam colares, mamãe.
- Abra e veja… Quando sentir falta de teu pai, abra-a novamente. E depois olhe para o céu. Ele vai estar olhando para você também. Não se sinta triste, nem desamparado. Ele te ama. Ele sempre te amou… Ele só não te amou mais que a própria vida. E a vida dele é voar, meu bem.
- Meu pai é um avião, mamãe?
- Mais que isso… Teu pai é militar.
Abraçou-me. Abraçou-me como o mar que anseia proteger suas pérolas desprotegidas. E eu soube… Eu não era filho do vazio, do abandono ou do desamparo. Eu era filho do amor. Filho do amor de um homem pelo país. Papai está presente em cada mancha verde e amarela, em cada vento que sopra em meu rosto, enxugando-me as lágrimas. Papai é a alma viva de um coração solitário.
O menino cresceu. Eu entendi que jamais fui uma criança sem rosto, um desconhecido. Eu sou filho da pátria. Um soldado de bandeira branca lançada ao vento.
Mamãe também bateu asas. A medalhinha banhada em pranto permanece escondida no bolso da minha farda. E hoje olho pro céu… Mamãe dança sob seu mundo de algodão e papai continua voando até encontrar um novo pedaço de terra para pousar, se divertindo em pintar o céu de fumaça branca. Meu pai é militar. E eu? Eu sou o filho das asas metálicas.
Assinar:
Postagens (Atom)