A beleza existe em tudo - tanto no bem como no mal. Mas somente os artistas e os poetas sabem encontrá-la. - Charlie Chaplin
domingo, 26 de maio de 2013
Com quantas tragédias se faz um fundo do poço? Eu sofri e lambi minhas feridas feito um cão de rua apedrejado, suguei o sangue da ponta dos dedos, tomando o cuidado para não deixar apodrecer os cantos embaixo da unha. Eu amarrei um saco plástico dentro de cada órgão meu, fechei a luz e acendi o forno. E acordei no dia seguinte, com a saudade arranhando a porta de entrada. Gato jogado no pântano que volta pra casa todas as noites. Uma manchete manjada, uma primeira edição amarelada e um sujeito anacrônico. Parece que a regeneração do ser humano é uma espécie de Alzheimer degenerativo. É irônico. Cada marca e cada algema destruídos feito suco em pó. A pele não tem memória, mas é a consciência que faz da experiência um desespero. Ser humano implica em ser alguém definitivo. Nenhuma dessas famas de aventureiro, essas longas viagens com mochilas nas costas, essa fuga do tédio existencial. Tudo anseia por um nome, e a experiência, paradoxalmente, não vale nada. Não. A aventura diária é se descobrir. E cada descoberta não é mais experiência. Deveria ser, mas a pele não tem memória. Cada tentativa implica na probabilidade do erro, mas ninguém investe querendo errar, e a regra vale pra qualquer tipo de negócio. Ninguém quer ter experiência, e sim descobrir que não sabe de nada quando encontrar o primeiro par de olhos genuinamente sincero na rua. Quer demonstrar que não viveu nada para que os diálogos ganhem milhões nas bilheterias cinematográficas. E o inconsciente chora, pois que bonito é ferir a mesma pele todos os dias com uma tatuagem nova e na manhã seguinte arranjar forças para desenhar um novo traço. Eu sempre achei que tatuagens ficavam mais bonitas ensanguentadas. E é a tinta o que verdadeiramente fica. O sangue é descartável, uma ponte de acesso. A arte é a arte-final. Não existe rascunho para a dor, portanto. A circulação dentro de nossas veias foi o primeiro rio filosófico da Antiguidade. A tristeza, o choro, o drama, o sentimentalismo, a impotência... Nada disso passa duas vezes pelo mesmo fim.
quinta-feira, 16 de maio de 2013
Então não vamos falar de falta.
Vamos falar sobre a televisão desligada, já que todo barulho é incômodo quando não é a sua voz que me incomoda. Vamos falar sobre o escuro e do quarto sempre pequeno demais. Vamos falar sobre os refúgios da minha colcha que teríamos desarrumado juntos. Vamos falar dos meus olhos cerrados quando, sem querer, me deparo com um perfume forte que poderia ser o seu. Vamos falar sobre como passei a odiar a Lua mais do que as próprias estrelas. Vamos falar sobre as músicas que deixei de ouvir. Vamos falar sobre as cores que deixei de usar. Vamos falar sobre a vida que não sai do lugar, sobre o sangue que não quer mais escorrer, sobre os livros velhos que deixei de cheirar. Vamos falar sobre as poesias que passei a odiar. Vamos falar sobre olheiras, café, chocolate e solidão. Vamos falar sobre amor, mas falemos pouco, porque sinto falta de quando cheguei a amar você, e prometemos que não íamos falar sobre a falta. Vamos falar, então, sobre o celular desligado pelo medo incessante de mandar sinal de fumaça. Vamos falar sobre o incêndio no meio do mar que me provoca arrepio de poesia na costela, porque lá é a minha vida, lá é a minha história, meu paradoxo, meu modo de te deixar. Vamos falar sobre futebol, sobre índios, sobre sexo. Vamos falar sobre as lágrimas que não vou derramar. Vamos falar sobre o vinho que eu deixei de comprar. Vamos falar sobre a alma que deixou de brilhar. Vamos falar de um tom de cinza que eu deixei de pintar. Vamos falar sobre um adeus que eu esqueci de ensaiar. Vamos falar das fotos que nunca vamos tirar. Vamos falar sobre os caminhos que eu passei a evitar. Vamos falar da vida, da morte, da infância, vamos sentir pena um do outro, vamos falar sobre os vídeos que nunca vamos gravar. Vamos falar sobre os remédios que eu acabei de viciar. Vamos falar sobre o espelho que eu acabei de cobrir, vamos falar sobre o desgosto que eu aprendi a sentir. Vamos falar sobre nós... e acabou-se o assunto.
domingo, 12 de maio de 2013
Aspirinas.
Hoje tomei um vidro cheio. Um vidro todinho, repleto das famosas pílulas brancas. Misturei tudo com remédios pra gripe. Jurei que tudo não passava de uma forte dor de cabeça, decorrente desse maldito tempo de chuva. Jurei que era só uma fadiga muscular, e passaria logo. Coisa mais tosca essa de negar a morte.
O suicídio é mesmo assim? Se for, é patético. Fechar os olhos e imaginar que pronto, tudo bem. Foi só uma vida mal vivida, um desacompanhamento psíquico desastroso. Foi só um sonho ruim, vou acordar do lado de lá amanhã e tudo estará bem. O passado já bem passado. Minha carne estará bem passada, à parmegiana, com recheio de remédio. Um banquete para os devoradores de vermes alheios, aqueles carniceiros, aqueles... Que devoram a morte nossa de cada dia. Pessoas que encaram a vida como uma gripe, que encaram o batimento cardíaco como as palpitações das veias da testa. Um leve franzir de sobrancelhas. "Onde diabos eu enfiei o meu anador?"
E eu engoli todo o vidro do remédio em alguns minutos. O gosto amargo na boca era horrível. E eu imaginei que seria minha última tragada na filosofia da existência. Da existência que não valeu o choro, do mundo que não mereceu Lispector, Bukowiski, Lord Byron, Einstein. E quando a gente faz esse tipo de discurso tipicamente pré-adolescente ou pós-meia idade, percebemos que a droga invadiu mais do que o seu corpo, invadiu também a sua dignidade. Charlie Chaplin, o grande ídolo-merda que todo mundo passou a gostar depois que outro ídolo-merda se fez coexistir em fotos P&B, morreu fazendo a tristeza pra mim ser um vício. E o inferno é que não estou sendo dramático. O inferno mesmo é que não estou usando metáforas de alguém que tomou dois vidros cheios de veneno legalizado. Eu sou apaixonado por olhos tristes, ainda mais pelos olhos do grande boêmio Charlie Chaplin. E pra mim, a vida é um olho vermelho, inchado, sem colírio. Na ausência da terra onde os grandes gênios pisaram, meu último sinal de orgulho dizia que eu seria enterrado com ela. E eu não estaria vivo para ver a miséria e a decadência. Mas quem aqui falou em morte? Eu só tinha tomado minha dose de aspirina. Aquela que seria a última, certamente. A sensação de nunca mais ter dor de cabeça é maravilhosa, mas o "nunca" também assusta, e não é apenas uma sensação. Nas noites de dores de cabeça eu podia impregnar o cheiro do álcool no meu travesseiro. Eu podia fechar as luzes com a desculpa de não perturbar a visão, e mergulhar dentro da minha dor, sem que ninguém perturbasse o coitadinho com enxaqueca. Pode parecer um tipo de sadismo tipicamente imoral, mas minhas contrações na testa era mais do que uma simples dor, era a minha pele pedindo auto-carícias que minha alma só fornece involuntariamente, por meio de irritação, suor e vontade de dar um tiro no cérebro.
Mas só existia um fato. Eu acabara de tomar cerca de vinte e cinco comprimidos para dor de cabeça e gripe. Talvez remédios assim considerados tão amenos não derrubassem um homem feito eu, mas a pergunta era: Eu estava tentando me matar? Eu estava, verdadeiramente, de saco cheio? Eu realmente esperava acordar no dia seguinte sem dor de cabeça e sem pulso? Talvez fosse uma verdade que eu não conseguira engolir com água e ignorância. Era preciso algo mais. Algo mais forte que um traumatismo craniano para fazer entender que não era apenas a dor de cabeça ou o nariz escorrendo que me incomodava. Talvez as palpitações na testa não fossem tão insuportáveis quanto as batidas do coração.
Augusto Cury certamente diria que eu sou um homem excepcional pra bater as botas. Diria que eu faço algo de bom pra sociedade, afinal de contas, nunca fui preso, não me drogo, tenho uma família bacana e minhas ex-namoradas são loucas por mim, e eu por elas. Augusto Cury não diria, por exemplo, que a prisão está adormecida embaixo das minhas unhas, a droga eu comprei na farmácia, a família bacana só é bacana quando não pergunta como eu estou me sentindo e eu faço todo mundo sofrer com essa história de não desamar ninguém. Mas não, Augusto Cury não venderia tanto se perguntasse para a humanidade o motivo de serem toxicômanos por tristeza literária. Humanidade que precisa registrar com seus próprios olhos que são lindos e excepcionalmente incríveis para se trancarem no banheiro. Eles simplesmente dizem que a felicidade está nas coisas simples da vida, em coisas que não damos valor. E mais do que isso, em coisa que não têm valor. Mas eu fui lá e comprei minha dor. Não há quase nada que eu dê mais valor do que remédios para dor de cabeça, e tomara um vidro inteiro deles. Tudo demais é veneno, e a vida, quando sobra, não é diferente.
Tudo estava rodando na minha cabeça. Eu, particularmente, não acho que tenha sido efeito dos remédios. Talvez só o sono que me deu, no meio daquela euforia psicológica, mas não toda aquela náusea, aquela afobação, a sensação de estar com meu estômago em chamas. A terrível descoberta de que não colocaria ração pro meu cachorro no dia seguinte. Que minha avó chamaria meu nome, em vão, e teria que ser obrigada a abrir a porta do quarto e, logo depois de desmaiar, limpar todo o estrago que eu fizeram com a nossa pequena farmácia caseira. Seria um fim trágico para um princípio tão feliz. Um choro tão inocente. Vamos experimentar ser triste só pra ver no que dá. E é na tristeza que vemos as mazelas do mundo, o caos da sociedade em si, a pane que dá nos seus órgãos vitais, na tristeza ficamos vulneráveis às doenças sentimentais, aqueles tumores cerebrais que incham e ocupam o lugar da racionalidade verdadeiramente capaz de mudar o mundo em que vivemos. É triste. Tudo é triste, e traste.
Esse foi intervalo de tempo entre querer morrer e enfiar um dedo na garganta.
A vida é um vômito forçado.
O suicídio é mesmo assim? Se for, é patético. Fechar os olhos e imaginar que pronto, tudo bem. Foi só uma vida mal vivida, um desacompanhamento psíquico desastroso. Foi só um sonho ruim, vou acordar do lado de lá amanhã e tudo estará bem. O passado já bem passado. Minha carne estará bem passada, à parmegiana, com recheio de remédio. Um banquete para os devoradores de vermes alheios, aqueles carniceiros, aqueles... Que devoram a morte nossa de cada dia. Pessoas que encaram a vida como uma gripe, que encaram o batimento cardíaco como as palpitações das veias da testa. Um leve franzir de sobrancelhas. "Onde diabos eu enfiei o meu anador?"
E eu engoli todo o vidro do remédio em alguns minutos. O gosto amargo na boca era horrível. E eu imaginei que seria minha última tragada na filosofia da existência. Da existência que não valeu o choro, do mundo que não mereceu Lispector, Bukowiski, Lord Byron, Einstein. E quando a gente faz esse tipo de discurso tipicamente pré-adolescente ou pós-meia idade, percebemos que a droga invadiu mais do que o seu corpo, invadiu também a sua dignidade. Charlie Chaplin, o grande ídolo-merda que todo mundo passou a gostar depois que outro ídolo-merda se fez coexistir em fotos P&B, morreu fazendo a tristeza pra mim ser um vício. E o inferno é que não estou sendo dramático. O inferno mesmo é que não estou usando metáforas de alguém que tomou dois vidros cheios de veneno legalizado. Eu sou apaixonado por olhos tristes, ainda mais pelos olhos do grande boêmio Charlie Chaplin. E pra mim, a vida é um olho vermelho, inchado, sem colírio. Na ausência da terra onde os grandes gênios pisaram, meu último sinal de orgulho dizia que eu seria enterrado com ela. E eu não estaria vivo para ver a miséria e a decadência. Mas quem aqui falou em morte? Eu só tinha tomado minha dose de aspirina. Aquela que seria a última, certamente. A sensação de nunca mais ter dor de cabeça é maravilhosa, mas o "nunca" também assusta, e não é apenas uma sensação. Nas noites de dores de cabeça eu podia impregnar o cheiro do álcool no meu travesseiro. Eu podia fechar as luzes com a desculpa de não perturbar a visão, e mergulhar dentro da minha dor, sem que ninguém perturbasse o coitadinho com enxaqueca. Pode parecer um tipo de sadismo tipicamente imoral, mas minhas contrações na testa era mais do que uma simples dor, era a minha pele pedindo auto-carícias que minha alma só fornece involuntariamente, por meio de irritação, suor e vontade de dar um tiro no cérebro.
Mas só existia um fato. Eu acabara de tomar cerca de vinte e cinco comprimidos para dor de cabeça e gripe. Talvez remédios assim considerados tão amenos não derrubassem um homem feito eu, mas a pergunta era: Eu estava tentando me matar? Eu estava, verdadeiramente, de saco cheio? Eu realmente esperava acordar no dia seguinte sem dor de cabeça e sem pulso? Talvez fosse uma verdade que eu não conseguira engolir com água e ignorância. Era preciso algo mais. Algo mais forte que um traumatismo craniano para fazer entender que não era apenas a dor de cabeça ou o nariz escorrendo que me incomodava. Talvez as palpitações na testa não fossem tão insuportáveis quanto as batidas do coração.
Augusto Cury certamente diria que eu sou um homem excepcional pra bater as botas. Diria que eu faço algo de bom pra sociedade, afinal de contas, nunca fui preso, não me drogo, tenho uma família bacana e minhas ex-namoradas são loucas por mim, e eu por elas. Augusto Cury não diria, por exemplo, que a prisão está adormecida embaixo das minhas unhas, a droga eu comprei na farmácia, a família bacana só é bacana quando não pergunta como eu estou me sentindo e eu faço todo mundo sofrer com essa história de não desamar ninguém. Mas não, Augusto Cury não venderia tanto se perguntasse para a humanidade o motivo de serem toxicômanos por tristeza literária. Humanidade que precisa registrar com seus próprios olhos que são lindos e excepcionalmente incríveis para se trancarem no banheiro. Eles simplesmente dizem que a felicidade está nas coisas simples da vida, em coisas que não damos valor. E mais do que isso, em coisa que não têm valor. Mas eu fui lá e comprei minha dor. Não há quase nada que eu dê mais valor do que remédios para dor de cabeça, e tomara um vidro inteiro deles. Tudo demais é veneno, e a vida, quando sobra, não é diferente.
Tudo estava rodando na minha cabeça. Eu, particularmente, não acho que tenha sido efeito dos remédios. Talvez só o sono que me deu, no meio daquela euforia psicológica, mas não toda aquela náusea, aquela afobação, a sensação de estar com meu estômago em chamas. A terrível descoberta de que não colocaria ração pro meu cachorro no dia seguinte. Que minha avó chamaria meu nome, em vão, e teria que ser obrigada a abrir a porta do quarto e, logo depois de desmaiar, limpar todo o estrago que eu fizeram com a nossa pequena farmácia caseira. Seria um fim trágico para um princípio tão feliz. Um choro tão inocente. Vamos experimentar ser triste só pra ver no que dá. E é na tristeza que vemos as mazelas do mundo, o caos da sociedade em si, a pane que dá nos seus órgãos vitais, na tristeza ficamos vulneráveis às doenças sentimentais, aqueles tumores cerebrais que incham e ocupam o lugar da racionalidade verdadeiramente capaz de mudar o mundo em que vivemos. É triste. Tudo é triste, e traste.
Esse foi intervalo de tempo entre querer morrer e enfiar um dedo na garganta.
A vida é um vômito forçado.
quinta-feira, 9 de maio de 2013
Sobre as constantes descobertas da vida.
A gente escorre pelo cano, cai no desespero. Abre a porta e despenca um vazio com menos de dois centímetros de profundidade. A queda só fica maior quando a gente percebe que nenhum chão é duro o suficiente para fazer nosso cérebro virar uma geleia sentimental, sem pulso e sem tédio. Só dói quando pára de doer, porque aí sim, nossa carne silencia. O silêncio é um mar que não tem maré. Um mar não revolto, que não traz tempestades, mas não traz conchas, e não traz a criança em mim que brinca de escutar o infinito soprado pelo vento
E é exatamente assim que eu me sinto agora.
Sinto o peso do colchão entrando na minha revolução, no meu medo de pagar ingresso pra minha própria vida e não saber contar o final, dormir antes da cena que poderia ter sido a última, caso eu tivesse acordado e aplaudido a tragédia, sem ter motivo pra ficar na dúvida. A família do "A" inclui amor, ausência e abstinência. Eu já passei por cada uma dessas palavras e senti um gosto diferente no café da madrugada (e espero que você entenda o que café e madrugada representam pra mim). Algo mais do que açúcar ou adoçante. Algo que parecia a vida querendo sair do meu peito, mas nada que me provasse que o meu coração na verdade não seria uma enorme câimbra, pondo em vista que eu nunca gostei de potássio, fruta, eternidade, esse tipo de coisa que o fortalece. Pois bem. Se a vida é uma fuga, meu bem, amor é uma despedida inaudível, ausência é uma escapada pelas janelas, que eu ainda não sei bem onde fica, seguida por uma longa deficiência nas pernas e a abstinência é um arrombo no peito.
Um arrombo no peito que faz a vida fugir lenta e cruelmente, porque o desespero ficou lá nas pontas dos pés, quando o amor rouba tudo o mais depressa possível e deixa uma casca-zumbi para que o café amargo da madrugada passe direto, atravesse a alma e respingue no colchão que entrou na revolução da minha existência silenciosa e acomodada.
É exatamente assim que eu me senti a vida inteira.
A gente escorre pelo cano, cai no desespero. Abre a porta e despenca um vazio com menos de dois centímetros de profundidade. A queda só fica maior quando a gente percebe que nenhum chão é duro o suficiente para fazer nosso cérebro virar uma geleia sentimental, sem pulso e sem tédio. Só dói quando pára de doer, porque aí sim, nossa carne silencia. O silêncio é um mar que não tem maré. Um mar não revolto, que não traz tempestades, mas não traz conchas, e não traz a criança em mim que brinca de escutar o infinito soprado pelo vento
E é exatamente assim que eu me sinto agora.
Sinto o peso do colchão entrando na minha revolução, no meu medo de pagar ingresso pra minha própria vida e não saber contar o final, dormir antes da cena que poderia ter sido a última, caso eu tivesse acordado e aplaudido a tragédia, sem ter motivo pra ficar na dúvida. A família do "A" inclui amor, ausência e abstinência. Eu já passei por cada uma dessas palavras e senti um gosto diferente no café da madrugada (e espero que você entenda o que café e madrugada representam pra mim). Algo mais do que açúcar ou adoçante. Algo que parecia a vida querendo sair do meu peito, mas nada que me provasse que o meu coração na verdade não seria uma enorme câimbra, pondo em vista que eu nunca gostei de potássio, fruta, eternidade, esse tipo de coisa que o fortalece. Pois bem. Se a vida é uma fuga, meu bem, amor é uma despedida inaudível, ausência é uma escapada pelas janelas, que eu ainda não sei bem onde fica, seguida por uma longa deficiência nas pernas e a abstinência é um arrombo no peito.
Um arrombo no peito que faz a vida fugir lenta e cruelmente, porque o desespero ficou lá nas pontas dos pés, quando o amor rouba tudo o mais depressa possível e deixa uma casca-zumbi para que o café amargo da madrugada passe direto, atravesse a alma e respingue no colchão que entrou na revolução da minha existência silenciosa e acomodada.
É exatamente assim que eu me senti a vida inteira.
terça-feira, 7 de maio de 2013
O poeta não chora. O poeta ora, derrama lágrimas em letras, tristezas em versos, lamúrias em árias, vertentes de águas em palavras de mágoa… O poeta não chora, soluça em hiatos e ditongos, seus prantos são cantos, sua dor estribilhos, prismas de sílabas e irmas. O poeta mente, sente o que não consente, descontente em sentimentos, mas contente em seus lamentos. O poeta é um falsário, não disfarça a sua dor, mas fala em tom de farsa. O poeta comove, e se revela quando se esconde. O poeta ora, o leitor é quem chora.
O copo vazio, o corpo cheio, o coração indeciso, a coragem, o devaneio. A descoberta parada, a saudade calada, a esperança cansada e a vontade de ser amado. O medo de perder, a angustia de esquecer, a incoerência de não ver, a desventura de não ter. Os beijos roubados, os abraços dados, corações apertados, delírios evaporados. Os gritos roucos, os desejos loucos, a verdade de poucos e a mentira de outros. O copo encheu-se, o corpo perdeu-se, o medo esqueceu-se e a mentira abandonou-se.Caindo, caindo, caindo… Deixando-me pouco a pouco, matando-me muito a muito. Esquece-me, porque de mim já não lembro mais.
O inferno não tem cheiro de enxofre. O céu já me mostrou demônios. Perdões e pecados, juntos, como espírito e carne, caminhando lado a lado na trilha do meu purgatório onde os gritos de tormenta são teus sussurros que me gritam incertezas e talvez. O paraíso como ilha deserta, tranquila, sem coral e sem perdição. O avesso é o lado de cá, inflamável e masoquista. A paz também enlouquece os solitários, mesmo aqueles que já venceram a guerra das bocas e erguem a bandeira branca manchada de sangue e vitória como papel e lápis. A companhia das letras é veneno bom para tomar aos poucos. Aos bocados, ela seca e desentope as artérias do que deve explodir dentro da gente. Não sei e nem quero ir para o céu todos os dias, porque sou feito de metades. A linha que separa os meus desejos é o medo que se alimenta das pedras de todas as fortalezas que construí na vida. Medo que me impede de ser salvo e morar na ilha, medo que impede que tais paredes me isolem das tragédias e do inferno que preciso para sobreviver. O sofrimento que respiro é o oxigênio filtrado. Sem ele a poeira invadiria meus pensamentos e a pureza do meu pulmão ilhado seria expelida como um espirro. É esse inferno que eu preciso. Esse olho vazado, esses pés rachados, esse coração crescido. O lixo, a doença, a operação tão arriscada que nenhum cirurgião conseguiria realizar, esse tumor que inflama no meu cérebro ferido. Os ossos espalhados pelo chão, a dor, a alma despejada aos pedaços como corpo leproso, as vísceras virando comida de abutres cegos, os apedrejamentos em praça pública, os rios de melancolia que escorrem mal cheirosos pelos córregos e esgotos a céu aberto são apenas os meus dias ruins. Meus dramas e meu inferno. Ai do Demônio se eu não tivesse sede de ser feliz. Ai dos anjos se eu fosse o Deus do meu corpo. Ai do mundo se eu não tivesse medo, ai de mim se a vida não me perdoasse. Eu só não me arrependo de morar no purgatório porque o teu maldito amor também tem mania de ficar em cima do muro.
Hoje eu não vou falar de morte. Hoje eu não vou falar do adeus, da tristeza pueril. Hoje eu não vou falar do luto, das flores que enfeitam uma hipocrisia da saudade eterna, hoje eu não falarei sobre herança. Não há nenhum epitáfio no fim do arco-íris, não há indigência, tampouco cadáver, viúva e caixão. Hoje eu falarei sobre o purgatório de todos os pulmões e o inferno de poéticos corações: a própria vida. Sobre o amanhecer e o entardecer, sobre o colchão desarrumado e o despertador esganiçando. Falar sobre o que tem final é fácil, o difícil é falar do que não tem começo. Cientistas dizem que a vida começa ainda dentro do útero, com quele grão de arroz. Aquele miserável parasita que viria ser Hitler, Mozart, Cecília Meireles, Charlie Chaplin, Jack, o estripador, Osama Bin Laden e Barack Obama. Onde está a personalidade de um grão de arroz? Quem é heroi, se não nasceram ainda os seus inimigos? Quem é artista, se não houve tempo para ser lunático? Quem é poeta, se ninguém sabe escrever? A vida não é vida se não tem futuro, se não tem digital. Outros dizem que a vida só começa no primeiro choro. O que acontece após o banho de sangue? O início da morte. As pupilas que ainda não se abriram, os pés que nada valem, a fome, o medo, a vontade de voltar a ser nada, porque ser pedaço de pele desprotegida é mais temível do que a escuridão. O vento dói, a língua enrola, as luzes saltam. Queremos voltar. E nos proíbem. O primeiro choro é escravidão e o açoite vem de branco e estetoscópio pendurado no pescoço. Você não pode mais ser quem você é. Você não é mais um mísero grão de arroz. O mundo agora é seu, mas você não pode abandoná-lo quando quiser, porque já não seria vida. Se nascer é medo, quem não tem medo de morrer? O primeiro choro é também a primeira morte. Então a vida propriamente dita deve começar no início da formação da personalidade, onde criamos a primeira noção do que somos, do que temos, do que enfrentaremos. Extrovertidos, antipáticos, festeiros, caseiros, cruéis, sensíveis, calados e tagarelas. Todos juntos, numa armadilha onde a vontade de viver é um brinquedo caro. Mas a vida só começa a ser vivida quando deixamos a futilidade e cortamos as asas. Fomos nada, fomos grãos de arroz, agora somos crianças com medo de monstros. A vida não é vida sem sucesso, é sobrevida. O sucesso começa na escola. A química que matou milhares em campos de concentração, a gramática da norma culta que deixou as leis mais bonitas e menos legíveis, a história que inspirou guerras, a matemática que Einstein usou para a ajuda na construção da primeira bomba nuclear. Genialidade. Agora somos instruídos o suficiente para dominar o mundo, mas ainda somos incapazes de viver com as próprias pernas. Mas já somos mancos em direção da cura e as muletas são a vida adulta. O dinheiro, as festas, os amores, as fofocas, a sede de poder, a indiferença. É aí que a vida começa, então? Claro. A vida começa depois que a gente trabalhar, dormir, beber, ganhar dinheiro, poupar, gastar, comprar mais, jogar no lixo, drogar-se, engravidar ou engravidar alguém, ter filhos, acordar tarde, assistir televisão, trair, pagar multa, sofrer acidente de trânsito, esquecer da conta de luz, brigar com o marido, fazer greve, ir para o bar, resolver equações que você não lembra mais, pegar fiado na mercearia e depois, se sobrar tempo, envelhecer. O que sobra na velhice? O medo da solidão. Se amamos alguém, não há túmulo para dois. Se moramos com alguém, não há túmulo para dois. Se sonhamos com alguém, os sonhos morrem com a gente. A velhice é a segunda morte. Quando começa a vida, então? O grão de arroz ficou tão preocupado em ser banquete que esqueceu de viver. O grão de arroz precisa da vida após a morte, porque a vida não teve vida o bastante. A vontade de permanecer vivo continua sendo brinquedo caro demais. Não temos mais tempo para brinquedos, não temos mais dinheiro para gastar. E, então, a gente finalmente morre. Morre sem ter motivo, morre sem ter vivido. Fechar os olhos para sempre, perder a consciência. Voltamos para a escuridão, voltamos a ser nada. Em breve, diminuiremos de massa, em breve seremos grãos de arroz novamente, em breve não seremos nada, seremos apenas uma saudade. O choro, o sentimento, a emoção ficam do lado de fora. Acabou. O mundo não é mais problema nosso, porque a verdadeira morte é a primeira vida.
Enganara-me. Te ofereci lágrimas e tu mostraste a beleza das cachoeiras, a imensidão do oceano, a solenidade dos rios. Quis fazer de minhas minguadas gotículas, um segundo dilúvio. Encarnei sorrisos e tu viera com as máscaras tristes de um teatro mudo. Silenciei-me, como vítima e réu confesso da arte. Pus em tuas mãos a minha dor e tu disseste que não era nada se comparada com a melancolia dos poemas desertos. Tornei-me compositor de rimas e exalei sofrimento em forma de dilúvio e máscaras circunspectas. Assobiei para ti respingos da alma e tu me fizera acreditar que alma só tinha quem amasse. Fizera de mim um amante, um louco, um passivo. Busquei em ti soluções para que jamais me tornasse aquilo que tu me transformaste ao longo do tempo e da paixão larvária e inofensiva em que me vi apodrecido. Enriqueceu-me de sentimento, quando tudo o que me prometera fora belos olhos e uma boca ácida. E o maior engano foi querer enganar a mim mesmo, que não engano nem o mais ingênuo dos homens e a mais astuta das mulheres. Um tolo por confiar na traidora de prévio aviso. Se com toda a minha loucura ainda for capaz de balbuciar algumas palavras, eu te falo num agora já passado que amor não acontece entre um homem e uma mulher. Amor acontece entre verdade e mentira, coração e trapaça, livro e carapaça. Amor também acontece a ferro e fogo. Tu feriu-me com a espada que eu quis derreter, tu lançou o perfume dos pântanos em frascos bonitos para que eu pensasse que eram rosas. O esquecimento levou-me a decadência. Esqueci que não sei chorar, sorrir ou sofrer. Esquecer levou-me a renascer, e renascer levou-me a cavar o meu próprio túmulo. Hoje, renascido, humilhado, horrorizado e injuriado… Eu te perdoo. Eu te perdoo, traidora inescrupulosa. E o perdão só veio porque me ensinaste a amar.
Rimas. Ri mais? Rir, mas de quê? Talvez um quê de queijo, um bê de beijo. Beijo vai, mas bem jovem. Então vem! Nu mesmo, vem nuvem, vem. Mas vem sem. Sem vergonha, sem pudor, sem graça, sem açúcar e sentimento. Se sentir, não vou deixá-lo ir. Sem ir, sem ti, eu não vou a lugar nenhum, nem dois, nem três e nem quartos. Por que mentes? Ah, que mentes não sentiriam saudades doentes… Do ente querido, do ente que queria ter ido, do ente que quase foi. Ufa, e foi por pouco. Já anoiteceu. A noite teceu estrelas, estralos, entranhas e estranhos. A noite teceu trapézios trapezistas, trôpegos, traficantes, trapaceiros e tresloucados. Também temor. Ter amor, amoras, amantes, amarelos… Ah, não. Amá-los ou amar elos? Meio a meio, meio fio, meio feio, meio feito. Essa história meio fora de hora de novo? Sim. De novo, de novo e de manhã, de tarde, de velho, de ontem, de frente, defronte e de ré. Ré é renascer renascentista, iluminista, sulista, turista, budista, autista. Arista? Mundano! Mundo mudo muda mudas. Mudas de gente descrente, descontente, demente, indecente, decadente, ai! Dor de dente, dor de gente. E quem cura? Loucura.
E ela foi minha primeira namorada, encerrando os meus pés descalços e bermuda desfiada na região dos joelhos vermelhos. Foi meu primeiro beijo, minha primeira memória. Foi o primeiro prato extra que saiu do armário no primeiro natal que tive que comprar presente pra alguém. Foi meu amadurecimento, minha fruta caída, minha primeira parada na vitrine da joalheria, imaginando aquele anel de ouro branco nos finos dedos que eu entrelacei os meus no meu primeiro pedido cheio de vergonha. A segunda colher na panela de brigadeiro que devorava sozinho aos domingos. O primeiro urso que comprei com o dinheiro da minha mesada. A primeira chateação com a minha péssima memória para dias importantes, o primeiro amor… Aquela desgraçada que só sabia me explorar. Ainda bem que acabou, e digo que acabou tarde! Filha da mãe. Nem era tão bonita assim pra ser o meu primeiro erro. E a sensação de olhar pra trás e pensar: Mas por que diabos eu me apaixonei por aquele demônio? Mulher chata, sim. Muito chata. Eu disse e agora repito: Amor é uma droga. Uma droga que mata os que não se viciam nele. Não pode ser coisa desse mundo. Não pode, não. E só pode ter vindo lá de baixo. O bom é ser livre! Guardar o prato no armário e comer na casa dos amigos. Carência é coisa de pau mandado. Foi numa das bebedeiras, escutando rock pesado, que eu conheci aquela menina da rua de cima, que mora embaixo da macieira mais linda de roubar. Papo vai, papo vem, você quer namorar comigo, moça bonita? Dessa vez é pra sempre. Não é possível que não seja. São pássaros cantando, são borboletas voando. São minhas notas de literatura atingindo o nove e o dez e os parabéns da professora que sempre me diz com um sorriso no rosto: “Mas esse menino nunca esteve tão sensível”, são meus pais chamando na hora do jantar “O que foi que deu nesse moleque pra nem tocar na comida? Isso só pode ser amor”. Vai dar casamento. Ela não fala demais, ela não me cobra presente, ela nem gosta tanto de brigadeiro assim. Ela gosta de música lenta, de saia verde e de tocar a ponta dos outros dedos com o polegar. Eu tinha nomes lindos pros nossos filhos, eu chamei parente pra ser padrinho. Aí ela disse que não dava mais certo. Que tava confusa, que ia viajar e que era nova demais. Meses depois a safada viajou pra não sei onde me trair com não sei quem. Soube que noivou com um cara marinheiro. Mulher não presta. Amor não presta. Paixão, então? Quem é que precisa de paixão? Quem é que precisa de chifre, quando não se quer mugir? Isso é bom pra eu aprender a deixar de ser besta. E como tem homem besta nesse mundo, meu Deus. Dar a vida em troca do amor de uma mulher. Tenho até pena do marinheiro, que vai casar com uma criatura mundana. Ingrata. Meus amigos logo ficaram sabendo da tragédia. Churrasco! Vamos bebemorar. Porque só presta assim. Homem esquentando a barriga numa churrasqueira, muita carne e mulher desconhecida que é pra não se apegar. Eu não vou casar nunca! Ter meu apartamento, meu carro, meu trabalho meu cachorro, e minha panela de brigadeiro. E foi no tal churrasco que eu conheci o amor da minha vida. Aquele sorriso lindo, aquele cabelo loiro solto, aquele óculos meio torto… O pessoal do escritório falou: Você não perde tempo. Só perde tempo quem não ama! Essa sim vai saber me dar valor. Viajamos pelos quatro cantos do mundo, tiramos fotos em Bangladesh, em Nova York e em Dubai. Mulher companheira, independente, dona do próprio carro. Compra os próprios cigarros. Veio de cinco relacionamentos fracassados. Achei desnecessário contar do passado… Como diria Jorge Vercilo, os amores passados tornaram-se pontes pra que eu encontrasse aquela obra fantástica dos céus no churrasco de comemoração minha separação. E ainda há quem diga que não existe destino, não é mesmo? Fomos morar junto e compramos até um cachorro, um simpático buldogue. Fomos felizes durante cinco anos, até que a coitadinha morreu num acidente de carro. O amor é mesmo uma porcaria. Eu vou dizer, rapaz: Nunca, escreva aí o nunca em letra maiúscula, eu nunca, n-u-n-c-a mais vou amar alguém de novo. Porque eu só sei amar errado. Amor é como as mulheres, amor me usa, amor me trai, amor morre. Eu não vou me apaixonar de novo. Agora é só eu, o buldogue e a panela de brigadeiro queimada. Ah, o caminhão de mudança veio trazendo a nova vizinha. Mas não é que ela é bonitinha… Ei, moça, seja bem vinda!
Sem lirismos e situações metaforizadas, sem palavras difíceis com significados impressos em Aurélios e nunca pairados em teus ares, sem ramas de palavras oferecidas como quem compra buquê de rosas de um ambulante para presentear a chateação do esquecimento de uma data especial. É melhor assim, amar sem regurgitar a necessidade de fazer do amor uma “coisa” bonita. Qualquer coisa, por favor. Qualquer coisa, qualquer trivialidade, qualquer pano de chão para tornar-se seda. Uma coisa ou pessoa? Você. Você e seus cabelos que fizeram o negro do céu se esconder por vergonha de conter menos carvão. Menos carvão e menos fogo do que seus olhos que exalam fumaça mais inebriante que nicotina em sensualidade cinza. Você e sua pele com cheiros que nunca senti, mas sei de cor o nome das flores que faltam existir para descrevê-los. Eu quero assim, escancarado, de pernas pro ar, abandonando sacos plásticos para que a maresia da saudade consuma o que pertence ao vento. Eu quero escrever assim, esquecendo de conjugar a beleza, mandando sentidos fazerem seus poemas bonitos no inferno, matando rimas e construindo críticas. Eu quero assim, bruto feito diamante ceifado de mãos sofridas. Assim como joia cara, a lapidação do sentimento só serve para quem nunca vai usá-lo, apenas atirá-lo como isca para beijos artificiais. Eu te quero aqui, e mais do que isso, eu te quero pra mim, te quero por completa, te quero suja de terra e sem valor algum. Sem concordância verbal, sem adjetivos, sem regra de crase, sem vírgula decoradas, sem pausas ensaiadas, sem delicadeza, sem enfeites e cem por cento de você. Quero sangue ainda fluorescente, quero roupas ainda não rasgadas, quero virgindade de reticências e promiscuidade de pontos finais repetidos. Eu quero assim, exatamente assim. Quero que a nossa única mudança seja de posição quando o travesseiro marcar o molde de nossas cabeças após longas horas de insônia e sorrisos clichês, quero que nossas lágrimas se misturem ao café gelado que esquecemos de beber quando tentávamos nos manter acordado depois de algumas promessas trocados durante a madrugada, eu quero que seu nome esteja aqui quando a eternidade pretender chegar. Quero que a Lua me perdoe por nunca mais cortejá-la com metáforas previsíveis em textos milimetricamente acinzentados por um mim, um mero mistério barato, um apaixonado de moletas, um caçador sangrado. Que a Lua do nosso primeiro encontro me perdoe, mas você tornou-se minha folha de papel em branco, meu silêncio, minha rendição, minha poesia, meu amor. Meu único amor.
Paredes enormes e um homem encurvado.
Triste… É isso que definiria o momento. Uma canção triste, uma roupa triste, um vazio triste. Tudo é triste. E traste. É a definição mais encontrada no dicionário para quem pulou a letra “A”, por medo do amor de avalanche e foi direto para a letra “T” de tristeza por tudo. É a definição da pressa, do congelamento do descongelamento pueril. Tristeza é um sentimento coletivo, um sentimento de metrô. Um sentimento de meio metro, talvez. Tristeza é o frio que encolhe as paredes de concreto no meu quarto, que foram feitas especialmente para me caber. Mentira. Eu forço ligas metálicas com o meu próprio medo de abandonar o mundo e morar em mim. É um contra-peso. Mas a tristeza, a tristeza encolhe o concreto. Pregos não entram em mim, mas as pragas enchem a minha carne de furos. Eu não sou algo que alguém decora. Eu sou algo que alguém improvisa. Textos improvisados são melancólicos e cheios de erro, são apresentados com gagueira e má formação da língua. São zombados por correrem o risco de serem brilhantes. Brilhante como uma prata vencida. Uma joia de meretriz. Eu não sou para decorar. Enfeites são jogados no fogo do meu estômago, pois eu engulo detalhes e sintetizo o minimalismo monocromático. Eu engulo pregos e detalhes. A tristeza encolhe paredes e a tristeza, portanto, me encolheu. Concreto como uma lágrima e abstrato como uma dor. Eu sou duro com as palavras, mas as palavras me mostram a recíproca, e a recíproca verdadeira é um corpo baleado pela brandura do papel, que não aceita um grafite áspero como o meu. O mundo mudou. Eu não pulei a letra “A” e no primeiro tremor das aspas, no menor barulho, no tormento inaudível, o ar se desdobrou em um oxigênio perfumado. Um oxigênio que lembrava a essência da tristeza que eu sonhei encontrar quando abri a página do dicionário pela primeira vez. Eu não sabia nem do fim do mundo, muito menos ia saber do fim do alfabeto. Pra mim, tudo acabaria ali. Na tristeza. Mas as páginas rolaram, e rolaram, e rolaram, e a tristeza permaneceu encolhendo o meu quarto. Tudo era triste. Tudo era um sonambulismo de inquietude… Viver era não mais que um impulso cerebral. Cérebro encolhido, porque crânio também é abrigo. Eu passei pelo amor como quem passa mal. Eu passei pelo amor correndo, desfazendo-me, desintegrando-me. Mas a tristeza não passaria. Nem restituiria-me o que perdi no meio do caminho, quando minhas paredes internas eram resistentes, quando a minha resistência não era um sopro de vida inválido. Tristeza é um amor encolhido, um amor mal desenvolvido, um amor abortado. Tristeza era o meu fim, mas nada acabava. Nunca acabou. A página continuava a ser virada. Por mais que eu quisesse, letra impressa não pode ser apagada. Aspas, avalanche, tristeza, amor, final, parede. Qual é a relação das definições? Junte tudo e terá uma desordem. É essa a tal definição em comum. O nada. O pó. O verme. O caos. Maldito dicionário incompleto. Maldita a parede entristecida. Maldito sentimento de metrô. Maldita aumento da gasolina. Maldito o mundo de tristezas enormes, porque o amor encolhido não dilata esse mundo triste demais. Tudo é triste. E traste.
Sinto o meu coração indo, mas ainda não sei sentir. Num trote prolongado, com minhas pernas cansadas do meio círculo que persegue o retilíneo sonho de quem rescindiu o freio, aprecio o trajeto do açoite. Uma lamúria, uma desgraça, uma ruína. Não sou mais do que um balão de ossos no singular, sentindo o que não sabe sentir pelo resto do mundo. E sinto, ou pelo menos penso sentir, agregado ao que eu suponho ser um sofrimento de amor, o peso da falha entrecortando os meus caminhos. Eu falhei por nós dois, sem nunca ter conhecido plenamente a mim mesmo. Sem nunca ter descoberto o prazer de saber o que sinto. Invejo as árvores que sabem que são árvores, pois sofrido é um humano enraizado no meio da claridade, sofrendo no meio da existência. Invejo também os pássaros, porque a natureza não lhes permitiu o amor lascivo ao ninho abandonado pelo instinto de sobrevivência. Pássaro que sou, nômade que me permito ser, ainda não sei dizer adeus ao galho mais fraco. Ainda amo o que poderia ter me matado, o que me impediria de continuar. E dói. Permanecer vivo é um egoísmo com as renúncias mais sofridas da minha história. Numa hipótese macabra, numa hipótese acalentadora, talvez eu apenas pense que abandonei assim como só penso, iludidamente, que sinto saudade. Mas eu já não sei o que sinto. Eu já não sei o que eu sou. Eu sei sim, olhando para as pegadas de pele morta, o que fui, imaginando o peso da minha matéria bruta como um pintor imagina o som da arte. A dor estanca e o sangue coagula. A vida é que não se cura. Debaixo de toda essa terra infértil impregnada em mim, o cadáver não exala cheiro. Os cupins roeram a minha madeira de tal forma que o superficialismo adquiriu os trejeitos de um homem comum, um homem que ama, um homem que chora, um homem que sabe o que é, um homem que sabe o que sente. Mas a única verdade é que não sei. Já não sei mais sequer de qual dos meus inícios eu fingi que parti.
Engraxate. Lustrando sapatos alheios que pisam nos meus calos. Sempre com uma graxa impecavelmente preta, tirada do fundo do poço, um petróleo raro e sem valor chamado escassez de orgulho. Queixo desabado, narinas que respiram o suor e as meias podres daqueles que viveram antes e viverão melhor depois de mim. Em troca de um trocado de consideração. Já fui engraxate por muitas vezes na vida. Também já tive meus dias de biólogo. Conhecer vários corpos, estudar vários ares, desvendar os mistérios daqueles outros humanos tão meio bichos que tão pouco a humanidade precisava. Uma arara extinção não era mais saborosa de fotografar com olhos saudosos do que um sorriso espontâneo, uma boa vontade, um abraço confortável, uma caridade que não fosse de pão velho e culpa. Estudar a vida dos outros dava pouco dinheiro. Virei político, presidente da República de mal amados. Belos discursos, novos recomeços, amanhãs ensaiados com pura maestria, terno e gravata de pompa e por dentro, um saco de mentiras que só não mal cheirava por causa das boas aparências e da pele intransponível que todos julgavam impecavelmente limpa. Mas só a cara era lavada. A mão assinava contratos fantasmas com a minha própria comunidade. Eu prometo ser sempre feliz. Eu prometo aprender a engolir fantasmas, porque com sal, pimenta, noz moscada e um pouco de boa vontade qualquer medo é tragável. Eu prometo procriar e envelhecer, virar adubo de terra e jamais me render a corrupção. Abandonei os smokings depois das primeiras descobertas de fraude, quando meu nome nunca acabou em nenhuma mídia por tentativa de mudar o mundo. Já tentei ser coisa de criança, quem sabe algum tipo de bombeiro ou policial, mas os meus herois morreram de overdose de matemática, física, química, enrolação. Salvar a vida de alguns miseráveis não me parecia atraente. Tudo seria mais lógico num mundo exato. Longe de promessas, animais e graxas. Longe da vida. Tudo seria mais metricamente perfeito num mundo de raízes quadradas. Vivendo num planeta anaeróbio, onde números e números completariam o espaço entre quatro dígitos de nascimento e os mais esperados dígitos da morte. Tudo é contável e virei o contador da minha própria história. Matemático. Contava as lágrimas na hora da insônia, cumpria meus exercícios intelectuais, jamais me distraí com essas bobagens de sofrimento. Fui feliz ao quadrado, até o dia em que resolvi que o mundo precisava de mim, precisava descobrir a chave da sabedoria numérica. Mas o mundo já tem número demais e um zero a esquerda é só um zero a esquerda. Decepcionado, quis ser professor. Ensinei a mim mesmo com quantas pizzas se faz um domingo de solidão, com quantos meses de gestação minha alma desgraçada entrou no corpo de um bebê que tudo tinha para ser promissor. Ensinei tudo a mim, mas ser aprendiz e mestre dá chance aos erros. Novos rumos, novos anos, novas profissões. Aprender a ignorar. Alcoólatra, bailarino, equilibrista, tudo ao mesmo tempo. Um artista circense dramático como um palhaço, metendo medo em olhares pequenos que ainda tem o mínimo de fé na vida. Um pintor capaz de reproduzir o som do silêncio, em mais profunda ausência de tinta. Um violinista encantador de serpentes cujo veneno eu aproveitava nas sopas diárias de melancolia e autopiedade. Dramaturgo, formado na Academia Brasileira de Artes Inúteis, salvando Julieta para ver morrer Romeu. Egoísmo pelo amor vindouro dos outros. Um contador de absurdos, um lunático, um sociólogo descrente, um mentiroso. Alguém sem experiência, contratado para bicos que não emendam uma torneira de casa. Ninguém se importa com um funcionário atrasado para a própria vida, porque há outros que querem a vaga de permanecer vivendo. Vivendo a minha vida. Mas eu não abro mão das humilhações, de ter que implorar por um crachá que diga que eu sou eu, que trabalho entalhando a minha cara, como um marceneiro de arte abstrata quase incompreensível. Ora brilhante, ora amontoado de carne, ossos e velharia. Eu não abro mão de bater de porta em porta, procurando resquícios de férias e décimo terceiro. Funcionário público de um coração privado. Engraxate, advogado, professor, matemático, filósofo, geólogo, decorador de ambientes, empresário, político, médico, enfermeiro, psicólogo. Cresci sendo. Mas o que eu quero ser quando cansar de crescer?
Não me ames. Não entregues teu coração em mãos que já estraçalharam dores piores e mais frágeis. Não acendas o fósforo do nosso fim, não faças de tudo para me esquecer, não infles uma paixão errônea e desastrada. Esqueças das cobranças de afetos, de cuidados, de abraços, porque a solidão nos uniu. Não ames a mim mais do que eu amo a tua indiferença, o teu desmazelo. Meus calcanhares ainda mostram as ataduras da última vítima que tentou curar meus passos apressados e desacompanhados. Sejas essa vida própria que eu invejo. Essa piada que rimos pela falta de graça, esse mundo do avesso, esse jardim repleto de ervas daninhas. Deixas que o feio cresça entre as nossas flores, não regues a inveja de um jardineiro que não fez vingar absolutamente nada na vida, mas foi feliz enquanto o perfume das mudas sobreviveu. Sejas o meu pequeno frasco. Sejas um veneno doce e feliz, não digas que me ama, porque o amor é morte lenta e sofrida, e se for para sofrer, a minha vida basta. Só a minha. Eu não divido. Não me ames e assopre o nosso beijo como criança que assopra um dente de leão. Sejas a água que mata a sede de outras bocas, mas se me queres, reservas o mergulho e eu me desmancho feito açúcar em água doce. Amor é água salgada. Arde nas minhas cicatrizes expostas. Sejas esse continente sem mapa, jamais me entregues a chave do teu segredo, porque eu engoli a minha antes que alguém soubesse que eu a tinha. Vivas comigo um romance real. Com hora para acabar, mas sem hora para começar. Podemos nos amar a cada minuto, a cada segundo, porque nosso amor dura menos do que uma decepção. Dura menos do que um arrependimento. Podemos nos apaixonar perdidamente em cada passo achado. Pensas em mim por essa noite apenas. Na outra, matas a saudade. Mas na próxima, eu sumirei. Não deixes que a saudade morra, para que a companhia se desfaça. Amor é uma flor regada demais. Não permita que eu me afogue nas raízes. Sejas o pólen que escapa para uma terra menos alagadiça, e floresças por aqui bem perto, se assim quiseres. Mas não me ames. Não admita a submissão que as palavras da eternidade, cobrando uma felicidade egoísta e ditatorial, possam causar em tua morte súbita, bonita e poética. Não me ames hoje, nem amanhã. Mas eu sentirei o teu amor de ontem. Dormido e quente. Eu sentirei o teu amor sem cobranças, eu sentirei a tua alma cansada de não amar, eu sentirei o teu corpo exaurido de saudade. Descansado em mim. Eu sentirei que o nosso amor já não aguenta mais existir, mas que é real. O que importa é ser real. Quando não se ama alguém, não sobra tempo para pensar em não amar. Amor é queda livre. Sejamos livres, enfim. Só te peço uma única condição: não me ames, mas não esqueças de tentar amar. Amor é nossa única tentativa. E o gosto do erro é maravilhoso.
Nenhum segundo a mais no despertador. Nenhum livro novo. Nenhum doce na geladeira. Nenhum sorriso cruzando a rua. Nenhum e-mail. Nenhuma gentileza. Nenhuma mensagem de aniversário. Nenhuma mensagem atrasada de aniversário. Nenhuma piada. Nenhum xingamento. Nenhum elogio. Nenhum barulho de grilo. Nenhum grito de medo. Nenhum acampamento na sala. Nenhuma mensagem no celular. Nenhuma ligação esperada. Nenhuma ligação inesperada. Nenhum aperto de mão sobrando. Nenhum nome faltando. Nenhum pedido atendido. Nenhuma pizza paga. Nenhum drink oferecido. Nenhum sorvete derretido. Nenhuma bochecha corada. Nenhum centavo ganho. Nenhum amor inteiro. Nenhum amor parcelado. Nenhum queixo sujo de brigadeiro. Nenhuma coberta quente. Nenhum sofá com marcas de uso. Nenhum badalar de sinos. Nenhuma nuvem em forma de cavalo no céu. Nenhuma ligação. Nenhum pedido de namoro. Nenhuma escova de dentes fora do pote. Nenhum lápis apontado. Nenhuma sombra. Nenhuma presença. Dias. Noites. Vida. Piloto automático.
De tanto gritar sufocado, minha garganta criou calos. De tantos calos, desfiz os nós das gargalhadas e das palavras de amor. O amor que escrevia rimas bobas e me rimava também. Me fazia menino, me fazia ser descoberta de mim mesmo a cada dia e a cada olhar. E com os anos que matavam-me, eu o perdi. Eu perdi aquele amor de dedicatória na contracapa do livro favorito, de lençol compartilhado, de lágrimas de cócegas e de beijo na testa. Eu perdi e assumi: Estou crescido demais para amar. Odiava o velho e raquítico sentimento que me jogava pedrinhas na janela, atormentando meu sono e congelando no frio do meu desprezo. Ele deveria estar morto, assim como eu me matava por dentro. E alimentei-me de palavras bonitas, de fachada, de seriedade decorada. O clichê era desespero de quem não quis crescer. Mas letras são sempre letras, linhas são sempre linhas, vazios são sempre vazios. Não importa o pulso que escreve ou que sente, nada mudará. E é certo que de dentro da beleza da minha poesia brotava um monstro, um sofredor assíduo. Uma vertente deformada de mim mesmo que cultuei como um Deus, a minha força inatingível. Até te avistar, sentada do outro lado do rio, cantando em olhares e me amando em sorrisos. E tudo o que fiz foi te transformar em busca para me perder por completo. Tudo o que fiz foi descer do trono de fonemas ensurdecedores e colocar o pé na mortalidade dos apaixonados. E morri com fama de tolo. Abri as janelas, libertei as rimas, abandonei a régua, a métrica, a perfeição. Amor não é simetria, amor não é beleza. Amor é deixar-se levar. E deixei… Deixei que me levasse. Deixei que me amasse. E se clichê for eternidade e felicidade, amor e dor, distância e tortura… Eu quero que minhas poesias não valham um tostão, quero que toda a metáfora vá para os diabos. Libertei-me em teus braços, abandonei o velho cinza para ser arco-íris em outro céu. Eu só quero que saiba… Que você, entre tantas obras-primas, é poesia mais perfeita que já escrevi.
Pouca comida é miséria, comer pouco é educação. Feiura no rosto é apenas feio, feiura na tela é irreverência. Lixo é repugnante, lixo moldado é reciclagem. Mulher nua na rua é prostituta, mulher nua na rua segurando um cartaz é protesto. Velho com vitrola é atrasado, jovem com vinil é estilo. Pobre artista é pichador, rico com tinta é gênio. Baile funk é perda de tempo, balada eletrônica é diversão. Ir sem roupa ao shopping é atentado violento ao pudor, ir sem roupa à praia é naturalismo. Milionário usando chinelas é humilde, humilde com chinela é milionário. Cachorro com coleira é fofo, cachorro sem coleira é vira-lata. Sirene em bairro rico é ambulância, sirene em favela é polícia. Estrondo em dia de jogo são fogos de artifício, estrondo em dia de jogo dentro da comunidade são traficantes. Aluno que cola é esperto, aluno que estuda é otário. Mentira dita muitas vezes é verdade, verdade nunca dita é mentira. Solidão aos dezesseis é drama, solidão aos sessenta é necessidade. Cabelo enrolado é cabelo ruim, cabelo liso com babyliss é sexy. Palmada em filho é disciplina, palmada em aluno é caso de notícia. Modelo gorda é inaceitável, modelo magra é pleonasmo. Macaco é racismo, branquelo é apelido. Seios na televisão é apelação, seios na televisão em fevereiro é carnaval. Foto do pé é cafona, foto do pé com efeito de instagram é vintage. Criança magra é desnutrida, criança obesa é descuido. Menino com amigas é gay, meninas com amigos é oferecida. Homem com várias é inspiração, mulher com vários é mal falada. Adotar um bebê é amor, adotar um adolescente é caridade. Palavrão na rua é baixaria, palavrão na música é alternativo. Verde e amarelo é cafonice, torcer pra seleção é patriotismo. Beijar é bom, beijar dois na mesma festa é segredo, beijar outro é traição, beijar ninguém é ser encalhado. Andar de mãos dadas é fofo, andar da mãos dadas com alguém do mesmo sexo é pouca vergonha. Reclamar do governo é legal, fechar a TV no horário político é rotina. Mandar cartas é velharia, receber cartas é romantismo. Não ter filhos é lamentável, optar por não ter filhos é estilo de vida. Xingamento na cama é ousadia, xingamento na mesa é barraco. Criança loira, bem vestida e sozinha está perdida, criança negra, suja e sozinha é assaltante. A fome é um problema mundial, a fome do outro não é problema meu. Bonita e difícil é atraente, bonita e fácil é vagabunda, feia e difícil é burra, feia e fácil é descartável. Bater em mulher é machismo, mulher bater em homem é engraçado. Católico assassino é banalidade, protestante assassino é hipocrisia. Passear no campo é liberdade, morar no campo é falta de dinheiro. Óculos espelhado é horrível, óculos espelhado de marca é moda. Livro de cinquenta reais é caro, uísque de cinquenta reais é festa. Matar um cachorro é desumano, matar um boi é churrasco. Um assassinato é fatalidade, três mil é estatística. Ser ou não ser é Shakespeare, indecisão é defeito. Acreditar no amor é beleza, acreditar em alienígenas é ilusão. Grito na música é rock’n’roll, grito sem ritmo é falta de argumentos. Loucos só passaram a existir quando a normalidade foi inventada, diferenças só não foram aceitas quando alguém tentou ser diferente. Conceitos não mudam realidades, mas realidades mudam conceitos. Pessoas não são palavras, mas palavras formam pessoas. Se é certo que somos produtos do meio, é certo também que somos somente produtos. Indivíduos são matérias-primas em abundância, mas individualidade é artigo de luxo. Rótulo na embalagem é essencial, rótulo em tudo é apenas uma sociedade.
Jamais perguntaram às borboletas se elas preferiam fincar os pés na terra ao invés de morrerem esmagadas em uma janela fechada de carro. Jamais perguntaram às cobras se elas gostam de rastejar pelo chão e gastar as peçonhas com calcanhares de bichos venenosos. Queria eu saber se os pássaros não sentem inveja dos peixes e se as montanhas gostam de dançar. Nunca vi alguém questionar a vida. É porque é e nunca deixou de ser. E se as pegadas não precisassem de pés para serem marcadas? E se as águas não precisassem do vento para formarem ondas? E se a saudade, o amor e as lembranças não precisasse de mim? Difícil enxergar pelo ângulo mais fácil. Brechas e desconfortos são sempre mais cômodos. Nunca perguntei ao silêncio se ele gostava das minhas lágrimas em madrugadas petulantes, nunca quis saber se o travesseiro gosta de tanta inquietação e poesia melodramática. Eu já não gosto de ser quem nasci para ser. Enjoei das minhas olheiras e lábios ressecados, das minhas dúvidas e certezas. Mudar o velho vaso de planta do lugar não me preenche como a rotina. Estou cansado das mudanças não mudarem. Estou cansado de ver Lua e Sol e mesmo assim me sentir como um crepúsculo alaranjado; estou cansado de ser alegre e triste e sorrir largo da mesma maneira; estou cansado de ir à batizados e enterros quando nem mesmo sei em qual deles devo chorar. Afinal, ninguém perguntou para a vida se ela gosta de permanecer ou para a morte se ela gosta de partir. Talvez o que precise se chame “inversos”. Que a tristeza finque o pé no chão um dia e diga que não irá chorar. Que o ciúmes se decida e me convença que meus olhos mentem, e que meus olhos se cansem de enxergar. Ninguém perguntou à realidade se ela é realmente a dona da razão e se a mentira mente o tempo inteiro. Ninguém perguntou aos sábios se eles gostam da loucura ou para os livros se eles conformam-se com teias de aranhas. Ninguém perguntou a minha alma se ela já está cansada de cair em precipícios infinitos. Eu gostaria de saber se a vida gosta de ser vivida, se o espelho é mesmo o que está ao contrário, ou se nós estamos do lado errado. Todos clamam por sabedoria, mas ninguém quer saber de lagartas arrependidas por abraçarem o vento.
O uísque amargo na boca ainda não é tão sujo quanto o teu sangue fétido. Líquido preto jorra dos teus olhos, desmanchando íris molhadas pelo negro que resseca a noite, coagulando algo parecido com a alma de um porco, encharcando-me de algo parecido com sentimento, mas que fede como um cadáver. Eu morri há milhas de distância do funeral que teu amor me ofereceu, porque terra por terra e morte por amor, eu morro em qualquer canto e amo qualquer um. Despejo silêncios em qualquer ouvido surdo, para que a minha dor faça diferença em quem nunca sofreu com os sons da solidão aguda, mas a rouquidão da tua voz ainda me trava os dentes e nada faço a não ser forçar uma felicidade de mímicas. Porém, enrolando a língua e contorcendo meu corpo imune à vermes, eu sei que já não posso com o peso da minha mentira, e a mosca passeando no fundo da garrafa, buscando fuga e abrigo nos restos da minha própria vida que engoli a contragosto, avisa-me que a paixão pelo mundo dos bêbados não bastou. Apaga a luz e acende as trevas, porque o branco da parede me enlouquece. Testa o corte da face em mim, que sou quase pedra, que sou quase pão e manteiga. Desaparece com meu corpo e eu nunca deixarei vestígios, pois há tempos o vento despiu-me a carne, que de tão leve sobrou o nada, mas leva-me desse mundo onde o fruto que me alimenta é teu corpo que me abandona, e a água que da tua boca já bebi me embriaga como um vinho barato. Não temas o custo, pois não cobram para empilhar ossos de farinha. Leva-me embora, leva-me para o funeral onde tu choras lágrimas de arrependimento por mim, lágrimas de dor pelo amor que nunca me dera e hoje te sufocas como uma corda de nó frouxo, esverdeando-te aos poucos. Quanto dos teus pecados ainda murmuram e lamentam a ida de um sofrido solitário? Meu tempo de protesto já passou, e aqueço-me com madeira do caixão roída pelos cupins que sabem que meu corpo não precisa de barreira para a terra que irá comer minhas entranhas, pois no primeiro gole do meu coração que só soube te amar, a própria morte se envenenará.
Fugas e desistências desenfreadas. Pássaros aprisionados pelo ruído da televisão de péssimo áudio, faíscas de Sol encapuzadas pela fraqueza da lâmpada incandescente. Tresloucar para não transparecer. Transparecer fraqueza, nudez de sentimentos, respingos de luares perdidos e estrelas chorosas. Quero despir-me dessa tinta de parede que enche de traças a liberdade conquistada pelo comodismo. O bastante torna-se suficiente quando o essencial aparece além dos muros e paradigmas. Selva de pedra, coração de engrenagens, carne suja por sangue de supermercado e limpa do prazer da caça. As mãos recebem o que comer, os olhos leem histórias tristes quando querem chorar, a boca teme errar o discurso. Nada improvisado, nada antes não ensaiado. Se não riem, o erro é da platéia que não aplaude humores cansados. Se não pranteiam, dê-me cá um punhal de plástico para enfiar na dramaticidade da melancolia assistida. Estou farto e sinto-me ludibriado. Cansei da sensualidade típica das mulheres de Vênus sendo limpa com água e sabão. Eu quero sentir a beleza nua, a fera atiçada com amores impróprios, quero as amantes de dia e noite, rasgando vestidos de seda, comendo guerreiros e transpirando ódio pelos olhos. Cansei de injustiças, quando o velho pede desculpas ao recém-chegado por não saber a gíria da moda. Cansei da hipocrisia de ser apenas ser humano e nunca ser realmente superior. Hipocrisia de quem diz ser feito de cérebro e exala mediocridade. Cansei da raiva banalizada, problemas fúteis. Eu quero lanças, espadas e um quem vença o melhor. Quero duelos, morte, sangue. Quero ver o homem na arena de tigres sem armas na mão, pois cansei da estupidez de querer ser selvagem sem garras próprias. Cansei das regras de sorrisos rasos, pois eu quero afogar-me entre uma felicidade e outra. Se fores para mostrar os dentes como arma de defesa, que assuma o posto de cavalo de raça. Raça humana, animal de mente quadrúpede e pés soberbos. Cansei do céu cinza, pois cinza nada mais é que o falecimento da sensibilidade anunciada. Cansei da televisão, da rotina, dos prédios, das fábricas, das pessoas que não se importam. Cansei de ver o cansaço e o descaso, cansei desse mundo pré-construído. Cansei de implorar pela cegueira, cansei de mim. Cansei da tolerância de quem cansa a vista e só procura um óculos com grau maior.
Amanhecer. Debatem-se flores lá fora, libertando-se do aquário de cheiros que a noite deixou. A porta range, o relógio arranha lembranças, as roupas de frio, perfumadas com um inverno esquecido e penduradas no cabide, nunca mais foram usadas. A cortina luta para não arder o quarto com os primeiros filhos do orvalho, minúsculas lágrimas das folhas, quando já não é possível tapar os olhos do Sol. A liberdade ilumina-se no canto dos pássaros, mas o som inaudível do bater das asas ainda me parece mais bonito. Na cama, só um corpo. Na vida, só um vazio. O carteiro não tocou a campainha. Não há ninguém lá fora. Não há nada entre a vida e eu, não há nada que faça com que a vida entre em mim. O silêncio dói muito mais na pele daquele que não quer ouvir, pois silêncio pode ser tudo, menos nada. Silêncio é uma resposta sem pergunta. Mais um dia para amanhecer, mais uma janela para abrir, mais um jarro para regar, mais um choro escondido atrás do espelho. Rotina de bem me quer, meu bem querer. A maior parte da platéia dorme enquanto o artista está no camarim. Pois eu permaneço aqui. Na frente do palco. E todos adormecem como se o meu amanhecer estivesse insone noite passada. Para que começar tão cedo? Para que começar, aliás, se o travesseiro ao lado permanece intacto? Ó, flores mal criadas, orvalhos apressados, agasalhos dorminhocos, pássaros malditos, carteiro esquecido… Sufoca-me a fadiga do espetáculo cor de pele. Pele em pó, pés escravizados, poros tampados. Está tudo bem, meus cinco minutos acabaram-se. Acordei-me, finalmente. Conselhos desprezíveis, pessoas fadigantes, garganta molhada pelas lágrimas que engulo, vida desabando em cima das minhas pegadas. Mais um dia que pode ser cinza, amarelo, azul ou laranja. Depende do filtro da janela. Mais um dia que pode ser frio, quente, morno ou seco. Depende do ar-condicionado. Besteira, tanto faz. Meu único inverno está criando raízes no cabide, minha solidão lhe deu fogo. Câimbra no ouvido, ai que dor! Silêncios machucam mais ainda aqueles que preferem escutar a própria tristeza, pois a felicidade na boca de terceiros e quartos soa vazia, como um eco sem volta, sem fundo, sem resposta. E não volta mesmo. Nunca voltou. Minha campainha o carteiro nunca triscou. A cama não desarrumou. Você ainda não chegou. Bom dia, boa tarde, triste noite. Rotina.
João sentado na praça, lendo o mesmo jornal todos os dias, desde 1985. João sentado na praça, aquele velho esquisito que não conhece ninguém, aquela sombra no banco, de terno cinza e gravata amarela, com a bengala de um lado e o chapéu do outro. Bico de fumo na boca, tosses bravas e sabe-se lá há quantos anos ele já deveria ter morrido de qualquer porcaria no pulmão. Um homem de meia idade passa, cumprimenta João com alguma coisa parecida com um olhar desdenhoso atrás dos óculos escuros, enquanto passeia com o cachorro pequeno e gordo, de coleira apertada. João pensa: Está começando a dieta hoje e o pobre do cão que aguente as pontas. Dieta por que? Porque semana passada a mulher o abandonara, estava com crise dos anos dourados. Certamente, precisa do cachorro para não tropeçar em nada, já que o sacrifício em deixar os óculos de grau em casa é grande demais para um velho míope solteiro contra a própria vontade. João riu enquanto a figura sumia ao longe. Poxa, ele gostaria de tê-lo conhecido. Mas não houve nem tempo para pensar o nome. Uma linda mulher de cabelos presos aproximou-se, sentou-se, bebericou dois goles d’água, e prosseguiu a caminhada. João abaixou o jornal, deu duas olhadelas e riu novamente. Solteira há quinze dias depois de descobrir que o namorado a condecorara com um belo par de chifres e escuta música alta no celular de última geração para não escutar os gritos do próprio pensamento. Cede aos apelos do corpo, mas nunca houve espaço para um carinho na alma. Pobre, rica e linda senhorita… João gostaria de tê-la conhecido. Aquela, perto do carrinho de sorvete, é apaixonada por jogadores de futebol. E aquele senhor adormecido na janela do ônibus? Ah, aquele serviu ao Exército, foi marinheiro ou quem sabe rodou o mundo em quatro dias. O pipoqueiro sorri, mas queria ser palhaço. O palhaço, por sua vez, compra uma garrafa da água para tomar com os antidepressivos. O pipoqueiro que é feliz, apaixonado pela moça dos panfletos, que odeia pipoca e tem dois namorados. O rapaz de braço engessado olhando para o céu morre de medo de altura, mas sonha em pular de para-quedas. A mocinha de olhos verdes que lê romance na sombra do grande carvalho subiu demais e quer cair das nuvens. Pobres mocinhas e rapazes… Ah, pobres humanos, pobres destinos, pobres diabos. João gostaria de tê-los conhecido. Mas não, João é um velho sentado na praça, lendo o mesmo jornal desde 1985, porque as notícias são pessoas e pessoas não mudam. João é só aquele idoso fumante que não conhece ninguém, lendo as mesmas pessoas, criando novos roteiro. João é aquele velho, aquele velho sentado na praça, de terno cinza, soltando fumaça, que habita vários mundos, que decora vários cheiros, que enfeita vários olhares, que conhece várias histórias, mas nem sequer conhece a própria.
"Engordando silêncios desvendados e desmentindo o meu próprio segredo, confesso que nunca amei ninguém. Depois de um punhado de sorrisos ruborizados, com sabor de manteiga derretendo em corações escaldantes, saliento que nunca me apaixonei uma alma sequer. Foram mil amantes eternizados pela nudez que surgia da melancolia mal polida, do platonismo envaidecido, mas jamais ouviu-se notícias de que em minhas veias corria o sangue lento dos sofredores, dos bravios que estufavam o peito para dizer um célebre, clichê, açucarado e cínico “eu te amo”. Faltou-me o ar, falta-me a voz e faltará amor. Do ser humano, apaixonei-me tão somente pelo ser. Ser único, ser racional com rachaduras nos dentes quando evita mordidas quase acidentais. Apaixonei-me sim, pelos ossos e dúvidas, pelas carcaças e perfumes, pelas cóleras e por cabelos esquecidos no travesseiro. Apaixonei-me pelos detalhes quando a realidade do todo, o amor como todo mundo vê, não pôde transformar-se em grafite gasto. Amo como quem namora folhas de papel. Borracha de um lado, arrependimento do outro e borrões molhados por todas as linhas, até que se acabe a paciência de tentar me fazer amar algo além do ser, do ser medíocre, do ser pessimista, do ser covarde. Covarde, mil vezes covarde. Demônios internos não vivem mais dentro de mim. Demônios internos escrevem, suspiram, florescem, mas desistiram de amar. Desistir. Desistir, “desexistir”, deixar de existir, deixar de ser. E se nada sou, eu torno a ressaltar: nunca amei ninguém, exceto espelhos negros e frustrações. Meus dedos são longos, minhas palavras são curtas. Minha eternidade é pequena, meus pontos finais são reticências. Meu caminho é comprido, meu amor é longe, e meus pés nada mais sentem do que a dormência dos braços cruzados.
Vamos sumir. Deixa o mundo desmoronar por entre as brechas de dedos entrelaçados. Apertados na mesma agonia, enrolados no mesmo tumulto. Raiva do tecido de nossas peles, que não rasgam ao menor esforço. Suga minha irracionalidade e apressa meus caninos. Retira minha alma pelo instinto, atrai meus venenos com a flauta do teu hálito, perfura o voo de um delírio no abismo do céu da minha boca. Eu quero você descobrindo que o sonho é tão real quanto um suspiro, que o não é tão atraente como um talvez abafado no travesseiro, engomado pelo pudor, amordaçado pela vergonha jogada no chão do quarto. Inconsequência é esquecer os desvios e desvarios dessa era de monotonia. Pinta a minha arte com teus cílios comprimidos entre as nossas pálpebras fechadas. Veste no teu corpo o tênue véu da entrega, do sentimento esbranquiçado dos lençóis. Reflete nos teus olhos dilatados um amor mais inaudível que o ventilador ineficaz, mas encorpora o calor do nosso pacto. Estraga tuas cordas vocais e se entrega aos gritos. Esqueça o que é real e me encarcera na banalidade do teu prazer que escorre na boca feito seiva mal aspirada. Amor é deixar que falem. Amor é assumir o risco de ver a vida passar, arrastar as correntes enquanto nossas línguas formam cadeados. Tornar-se forte, invulnerável e tempestuoso. Eu busco ser humano, eu busco a essência do gosto quase canibal de uma alma cansada e contente, de lábios mordiscados e ardentes. Eu quero a corrida, a loucura, quero beber as tempestades que colhemos no caminho para que dos nossos beijos nasçam os raios e do nosso fôlego nasçam trovões. Não quero o meio termo. Menospreza, meu bem, o pensamento tacanho e mesquinho. Somos nós. Sempre fomos nós. Então, desata e aproveita o que escondemos. Leia a minha clausura e entrega tuas entrelinhas a curto prazo. Desfruta do nosso acaso de hora marcada. Desfaça essa paixão antes que ela vire aliança de suor. Grita. Amaldiçoa. Clama. Por favor, grita. Grita que você me quer, evita os verbos e os pensamentos do passado, urra feito animal ensanguentado, atingido nas pernas, nos seios, nos braços, no coração e no cérebro estimulado. Desaparece dentro da minha vontade. Nós somos retas que se cruzam quando querem. E a trilha do nosso caminho é a maldição do Olimpo, em um céu de deuses tão pecadores e pagãos quanto o meu amor.
De onde surgem os loucos? Quando somos matéria sangrenta inofensiva dentro de abrigos uterinos, não somos nada além de um lindo e exaustivo tic-tac. Nove meses depois, seremos jogadores de futebol ou bailarinas. Quinze anos depois, isso não dá dinheiro. Médicos, advogados, arquitetos, engenheiros… Cinco anos depois e todas aquelas inúmeras, porém contáveis opções resumem-se em duas: sucesso e fracasso. Antes de nascer, tenha o melhor berço. Depois de nascer, tenha as melhores notas. Depois de crescer, tenha o melhor emprego, o melhor salário, a melhor cara de pau. Depois de ter filhos, tire as melhores fotos deles para mostrar aos piores amigos na mesa do bar. Depois de envelhecer, tenha a melhor casa, o melhor cachorro, a pior solidão. Depois de morrer, seja amado. Loucos? Loucos são aqueles artistas miseráveis que mendigam por um mínimo de reconhecimento. Meu filho? Brilhante! A arma disparou por acidente. Minha filha? Só me dá orgulho. Será solta em um mês por bom comportamento. Se não são filhos de ninguém, de onde surgem os loucos, então? Aqueles desequilibrados, os sensíveis, os genuinamente apaixonados? Aqueles ratos escondidos em meio a poeira da sociedade, escrevendo seus livros com o próprio sangue por não terem dinheiro para a tinta da caneta? Brotos da solidão, da tristeza, da loucura própria que temos escondida no peito, mas escondemos com estetoscópios e antibióticos. Humanos são extremamente falhos. Corte uma fatia pequena, estou de dieta. Eu e minhas duas pernas esqueléticas estamos. Não é nada, só estou com frio. Eu sei, eu sei bem que estou suando, mas não ouse levantar a manga da minha blusa. Depressivo? Eu? Homem não chora. Derramei água no travesseiro ontem a noite. Suicida? Quanta bobagem. Você ainda tem aquelas aspirinas escondidas na gaveta, mãe? Só curiosidade… Só drama, tristeza, paranoia, segredos, loucura. Eu nunca, eu sempre. Quem assume a própria melancolia? Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três… Hipocrisia vendida para o senhor de mãos lavadas, para a senhora que expulsou o filho músico de casa, mas tem a coleção completa de Elvis Presley na estante. Se somos máquinas, há aqueles computadores com vírus que contaminam toda a fábrica de corações programados. Levando para o lado pessoal, é a loucura que nos difere daquele pedaço de carne ensanguentado no supermercado. E de onde surgem os loucos? Da loucura de se dizer humano.
Dedos mergulham na cicatriz flamejante da cesariana ainda recente no meu peito. Dedos apertam e rasgam os pontos já tingidos com um vermelho em tons escuros, lamaçal mal cheiroso que habita uma cova apertada repleta de veias, órgãos e nenhuma alma. Ele vem, filho das horas, herdeiro da dor, sem lágrimas e feito por si só de cálcio, pedra, areia e cimento. Ele vem, desmanchando-me em sangue puro, abrindo caminho em uma pele pré-cortada pelo vento. A anestesia são dois olhos que lembram jabuticabas recém colhidas, um cheiro de recomeço e primavera, uma corda amarrada no pescoço de algo tão frágil e inofensivo. E ele cria pernas, cria braços, cria fome e juízo. Alimenta-se das folhas rasgadas, da sopa de estrelas e mares, veio ao mundo por meio de lágrimas e por lágrimas permanece nele. Chora ao ver a cicatriz grotesca ainda pulsando por onde ele respirou a primeira vez. Engole giletes que rasgam a minha garganta, como matéria prima que sou. Cresce e retrocede. Vira feto e cicatriz novamente no primeiro medo que encontrar pela frente. É por fora que se faz o parto e emenda-se pedaços da minha carne. É marca de ferro e fogo, é marca de espada, luta e sofrimento sem vitória. Não tem alforria, não tem perdão e nem certidão de nascimento. Talvez um obituário que dirá, em letras garrafais, um nome que ele nunca aprendeu a chamar. Aprendeu sim, como primeiras palavras, a clamar por um mundo que não o queria, que não o precisava. Quasímodo sem cigana, cigana sem feitiço. Ele veio, depois das minhas vidas inteiras de espera, apressado. Empurrando-me o peito como britadeira, contorcendo-me não como lagarta, que vira borboleta e sai voando sem precisar de um hospedeiro, e sim como um verme parasita, uma sanguessuga que só suga o meu ar. Ele veio, filho do abandono, veio sem querer nascer, nasceu como todo mundo também nasce: contando os segundos para fechar os olhos pela última vez. Mas ele veio sem olhos e, portanto, sem hora para ir embora. Sem hora para me fazer estéril. Não existe vasectomia de amor, não existe aborto de poesia, não existe chá, remédio, droga ilícita, coquetel. Não existe manchete de jornal e nem protesto na rua. Dar a luz e padecer em trevas é o futuro de quem não escolhe morrer sem ter vivido. Nascer sem um útero não é tão dolorido quanto nascer sem coração; filho de vento não nasce. E dói o amor que não soube vir ao mundo e virou luz dentro de mim. Queimando. Rasgando. Renascendo.
Palavras de risco e brincadeira, palavras retiradas de uma citação barata, palavras tortas e rígidas como a Torre de Babel. Diz a lenda, a bonita lenda, que a torre não é reta para que o homem não chegasse ao reino dos céus. Diz a experiência, a vil experiência, que a poesia não é totalmente certa para que o homem não atinja o inferno da própria alma. Não há médium que interprete palavras mortas. Impostores existem, os mais sofridos, aqueles que lidam diretamente com pontos e vírgulas, estrofes e rimas. Os impostores que tentam, em vão, ressuscitar algo que não só morre no papel, mas morre dentro de si. Os piratas do amor, contrabandeando sentimentos que não valem um vintém. Palavras fora do contrato que não compram terras, mas que reluzem como ouro. Iluminam a noite de quem vê a riqueza do grafite envelhecido e a beleza do cinza. Palavras que que descem dos livros, dos livros de romance mais esdrúxulos, que não recebem críticas e elogios, mas que fazem o sono chegar isento de pesadelos. Romances entediantes vindos de um sebo qualquer. Nosso romance, nossas palavras. Minha, suas, daqueles que amam. Palavras românticas, sim, mas que se declaram para todo mundo. Uma orgia pura e celestial, palavras que se oferecem para homens e mulheres, que nos dão únicos prazeres. Únicos prazeres que o resto do mundo literário também sente. Palavras sem para-quedas que caem dos sonhos e viram gases poluentes que impedem os que leem de respirar o ar menos impuro, o ar da ignorância, o ar que menos explode os pulmões, visto que a sabedoria tem gosto de sufocamento. Ou desce como chuva, que turva os olhos molhados de lágrimas. Palavras brancas como enfermeiras que não curam ninguém. Palavras, encrenca surda. Palavras, grito mudo. Ódio, raiva, rancor, tristeza, palavras de qualquer outro lugar do mundo. Palavras difíceis aos cinco anos, palavras paralelepípedos. Mas as piores palavras do mundo aprenderemos com três e quatro letras. Dor e amor. A língua trava e o medo do erro nos retarda. Palavras também sentem falta dos paralelepípedos de antigamente. Palavra difícil é palavra que o coração não quer dizer. Palavras inquietas, irreais, irritantes, irrisórias. Palavras que nos arrastam para miragens distantes em outras histórias, outros mundos, outras vidas. Palavras parasitas, palavras sanguessugas, palavras carrapatos, palavras de poetas e trovadores, palavras de tristeza e melancolia.
Vários sóis e várias noites dentro de um mesmíssimo e escasso ser humano, porque eu também tenho fuso-horário. Anoiteceu aqui, mas a noite é o preço do dia para outra vida. Desconheço a minha luz, porque eu preciso ser escuridão em outro lugar. Minha geografia não é tão difícil de ser estudada, acredite em mim. Não são tantas fases, nem tantas estações, nem tantas flores assim. Eu costumo ser mais fácil do que um imprevisto. Uma chuva mal calculada e não anunciada pela moça do tempo que faz todo mundo perder a viagem. Menos eu, que também preciso ser Sol do outro lado do meu continente. Dói pisar em terras estranhas, nas suas próprias entranhas. Nunca estar onde você deveria estar, e sempre estar no lugar certo e na hora certa pra qualquer tipo de tragédia, porque não chove e nem faz sol por acaso. Não sou triste por improviso. É de Narciso que estamos falando quando a Terra gira em torno do Sol. Qual dos meus sóis estamos falando? Quando das minhas faces o meu próprio mundo gira? Pois não deveria girar. Se ainda há dúvida sobre vida em outros planetas, nem desconfiam que há menos vida no nosso do que imaginamos. Pelo menos, no meu cubículo de imensidão. Nas minhas terras, na minha chuva, na minha catástrofe natural. Enchentes naturais, secas naturais, desilusões naturais, alguém pode, se não for pedir muito, chegar na minha vida por cesariana? Ser terra, fogo e ar também cansa. E o mundo permanece girando. Nada acontece de tão grave que não possa ser esquecido em dois tempos. Mas ser o meu mundo também requer ser histórico. Pré-histórico. Eu fico ali, impregnado, arruinado, renascendo em outro lugar e queimando sozinho por dentro. Tudo esférico. Hoje sim, amanha não. Hoje aqui, amanhã em Plutão. Tudo girando em torno da minha própria vontade, vontade de querer simplesmente parar de rodar em um espaço vazio. Egoísmo de quebrar a maquinaria do relógio, fazer a vida retroceder, encolher-me no canto do planeta. Mas o planeta não tem cantos. A vida na Terra é descoberta. A vida em mim é exposta demais. Eu luto por um mundo quadrado porque só as esquinas me escondem.
Das contrações do meu cérebro materialista, abrindo caminho por entre pulmões e músculos, eis o meu tumor. Maligno e irretirável. Irreversível. O tumor que fez do papel em branco a névoa da criação. O tumor que destruiu as células da divisibilidade, células que morrem, cegas, pouco a pouco, explodindo do tédio de serem sozinhas no meio de um bilhão. Eu sou só uma hemácia enfraquecida no meio de um sangue aguado. Uma hemácia afogada no vermelho esbranquiçado de mim mesmo. Nada é poesia, tudo é doença, câncer, tumor. Esse eco de saudade é onomatopeia. Invenção de um delírio. Eu só queria saber quem foi que treinou as mãos da minha mente ambidestra para desenhar feições que os olhos destreinados e efêmeros poderiam esquecer. A coisa sádica que abriga um cérebro contraído e materialista com um tumor maligno que coordena uma hemácia enfraquecida na morte liquefeita de um doente. A frustração de Édipo enrijecida no meu esqueleto doído de transportar tanta dor. Édipo querendo não amar o proibido, furou os próprios olhos. Mas tumores não possuem visão. O amor fica ainda mais bonito no escuro, na tragédia, no drama. O amor fica ainda mais eterno com a fragilidade da matéria. Aquilo que se amou um dia, para sempre se amará. Ainda que o ódio destrua aquilo que de mais puro tiver. Mas a destruição não é a ruína. A destruição é o fóssil do esquecimento. E esquecer não é matar. Minha neurose não é freudiana. Não sou Édipo. Não furei meus próprios olhos. Para abafar a vergonha, sujo meus bolsos de tinta. Escrevo em mim. Amo dentro de mim. Células invisíveis e indivisíveis escorrem pelo papel de pele molhada. O desabafo de um cérebro materialista é o transbordamento das vistas que não me cegaram a memória. O tumor faz nascer a poesia. A coisa sádica que desenha os contornos daquilo que não se pode agarrar no ar. Nos átomos errôneos de antigamente, nas pequenas coisas que formam o homem e tudo o que está ao seu redor, nas pequenas partes de uma maçã, cientistas descobriram um tumor maligno dentro de um cérebro materialista repleto de hemácias aguadas e cegas, cientistas desocupados descobriram a grande doença da humanidade: somos formados por minúsculos pedaços de solidão.
"Românticos são loucos desvairados..."
Escreva um texto sem ser sobre amor, por favor”. Da ausência de palavras se fez a inspiração que brota do meu cérebro como um espinho de raízes floríferas, como um morto-vivo, comendo minha vontade de falar quando a voz que grita a dúvida já está no papel, me deixando com mais incertezas e mais inspiração. E a arte devora-me vivo, limpando os dentes com as vísceras de minhas linhas. “Escreva”. Imperativo. Criar o escrever que não seja amor, puramente amor, que não seja por amor. Criar o escrever que não seja a vontade de amar o outro, a vontade de amar a si mesmo, a vontade de não amar, a vontade de ter amor para inventar. Criar o escrever descafeinado, esfumado como borrão de carvão, o escrever que não machuca por não encontrar amor nenhum, o escrever que não sinta saudades, o escrever que não mate quem escreve e reviva quem não consegue escrever, quem ainda nem sequer sabe ler, sabe chorar, sabe engatinhar, sabe viver. Criar o escrever, o dígito, a oração que não seja de amor e por amor a um filho abortado, a um texto expelido. “Um”. Um assim. Ponto. Seco, reto, indolor, curto e rápido. Um qualquer, um aqui, um ali. Um sem amor, um com dois amores, um assim, sem matemática, sem conjunto infinito, sem nós. “Texto”. Criar o texto-criatura que não ame o criador. Criar o texto-criatura que não se transforme em pó e arrependimento quando o criador já passou a amar outro monstro. Criar o texto-criatura que não seja criatura, que seja só texto, só vírgula, ponto, verbo e mentira. “Sem”. Sem nada, só sem. Sem ninguém, sem amor, sem você, sem ele, sem ela, sem mim, sem ninguém, sem a solidão que também quer amar, sem a transparência que também quer se ofuscar. “Ser”. O ser que nunca amou, não ser o ser que deixou de ser porque morreu de amor, o ser que não aguenta mais tanto ser, sem ser o ser especial de ninguém. O ser que não se indigna por ser e amar ser o o ser que é. “Sobre”. Sobretudo, sobre o tudo que não é nada sem amor. Sobre felicidade! Ainda não falei sobre felicidade, aquela felicidade que sobra. Felicidade sem amar ninguém… Ah, “por favor”. O favor que não seja a doação ao outro ou a si mesmo… Mais uma dose de papéis no lixo, eu digo. Uma lixeira nova talvez resolva. Quem sabe uma lapiseira nova. Um grafite difícil de apagar. Uma borracha que não solte tantos pedaços. Uma vida que eu não viva. Uma vida que eu não escreva. Uma vida que eu não queira. Uma vida que eu não ame. Um silêncio. Um caderno fechado… Nada funciona. Eu só sei falar de amor, eu não sei falar de mim.
Se o lixeiro passar hoje, espero que leia isso.
Doce Clara,
Tuas lágrimas completam aniversário hoje. Eu sei, minha querida, já fazem muitos anos. Olho pro céu outonizado e lembro do nosso amor. Não são as nuvens em forma de lembranças, tampouco são as cores e os pássaros que o decoram. É aquele avião frio e melancólico que o parte ao meio. Forte, imponente, veloz… Mas incapaz de dar marcha ré. E te deixei partir até onde fosse seguro pousar, longe do meu alcance. Meu paraquedas não abriu, Clara. Me espatifei na loucura de te abandonar.
O relógio grita cada vez mais alto. Fechar os olhos tornou-se insuportável quando nem mesmo a chama da vela acesa no meio da madrugada me permite criar poesias adormecidas. Eu sequei, dogmatizei o meu próprio título de criatura ordinária e passei a ser servo do meu próprio falecimento romântico.
Tu fostes cruel, Clara. Fostes cruel com tua beleza, teu cândido olhar, tuas botas de ferro que fui obrigado a calçar e hoje me impede de continuar a vida sem você. As memórias quase perdidas me fascinam, me enlouquecem. Ainda lembro das vezes que deitei no chão do meu quarto e pus a questionar porque as tuas lágrimas não saíam marrons, exatamente da cor dos teus olhos que se desmanchavam. Você me fez vivo para logo em seguida, matar-me com a forca que eu mesmo ajudei a amarrar.
Virei estrangeiro da minha própria descoberta. Do que adiantou-me o título de bravo, forte, dono de si, se no final das contas, morri com o título de leão ou realeza? Não bastou-me o luxo, as mordomias de amar escondido. Eu quis gritar o teu nome para desconhecidos, quis rasgar o meu coração para que tu pudesses viver entre os meus pesadelos reais.
As rosas escondidas por entre os espaços do teu nome murcharam, e as lágrimas que irrigaram todo o meu oceano secaram. Hoje sobrevivo na carcaça de um homem que encobriu teus beijos com uma barba mal feita, que maquiou os sentimentos com uma estrela no peito. Hoje penso que nada valeu a pena, embora eu saiba que sou mais feliz sem você.
Não me entenda mal, minha adorável menina. Tu me fazes falta, mas a felicidade não tem a ver com espaços vazios. Pode parecer loucura, mas que a loucura seja colocada à mesa para ser dividida entre os apaixonados ou desapaixonados. Ambos possuem o mesmo par de óculos desajustado e um buquê de rosas murchas na mão. Eu sou feliz, e serei ainda mais feliz daqui para alguns anos.
Felicidade é mentira, falta de sentido. O concreto tornou-se um peso insuportável, e optei por ser feliz. Optei por trazer os abutres para se banquetearem com as migalhas que deixei no caminho de volta para teus braços. Optei por esquecer, sem que o esquecimento tenha optado por mim. Desisti de te amar, sem que o amor desistisse de vencer.
É chegado o dia do nosso adeus definitivo. Que um dia a gente se cruze pelos caminhos tortos e curtos da eternidade, meu amor. Que um dia tu desabroche e solte teu perfume de rosa até mim, para que eu não tenha que pedir ao vento para levar minhas tristezas até você. Eu te quero sorrindo, Clara. Eu te quis mal, mas te quero sempre bem.
Até o próximo fim.
Mudei com o tempo, mudei com a vida. Mudanças formam um maldito clichê que nunca se repete. Houve um tempo, não muito distante, dizem que há duas ou três paixões atrás, em que a sabedoria era a única maçã para acertar de um menino cego com arco e flecha improvisado. Houve um tempo em que a ignorância do talvez, símbolo do meio termo, era muito pior do que um simples não arredondado para menos, quando a matemática dos amores inteiros não queria ajudar. Mudei quando descobri que memórias não ficam dentro dos olhos, quando descobri que o branco é colorido e o preto, tão filosófico, é apenas preto. Mudei quando entendi que ninguém jamais aplaudiu lagartas, mesmo com todo o esforço para fazer uma metamorfose que acabará com um alfinete enfiado nas custosas asas em cima de um mostruário de um biólogo qualquer. Ninguém aplaude lagartas, ninguém lamenta pela borboleta. Mudei quando descobri que fraternidade, compaixão e amor ao próximo eclodem uma vez ao ano, como uma primavera de flores raras, acompanhados solenemente de um peru que não recebeu compaixão nenhuma, coitado. E pra não dizer que não falei das flores, Geraldo Vandré, mudei quando descobri que espinhos são pétalas atrofiadas. Raiva, ciúmes, amargura, inveja. São todos sentimentos, sentimentos humanos, sentimentos puros e isentos de máscaras, protetores de uma fragilidade medíocre de ovelha com os beiços sujos de sangue, mas por que tão vilões? Espinhos são como a humanidade, sempre enrustida em algum papel de mal caráter ser dos críticos o ganha pão. Regar? Jamais! Mas a flor morre, meu caro. A flor, sem espinhos, sem suas pétalas, morre e morre doída, morre doida. E mudei quando vi com meus próprios olhos, os tatuadores de memórias num cérebro já fatigado, os loucos. Todos os Dom Quixotes e Marias Antonietas de todos os manicômios, se juntar cada um, não dá um sábio sequer. Cheio de dúvidas, sedento por certezas, engordando noites inteiras com cálculos, amedrontando crianças que deixam seus leites com biscoito apodrecerem na noite de natal, fazendo o dente cair sem uma moeda em troca, fazendo da morte uma tristeza, fazendo do amor uma passagem. Felizes são os loucos, felizes são os que erram a maçã por sentirem o estômago reclamar. Felizes são aqueles que erram o alvo, que sorriem pra tudo mesmo quando não entendem nada. Felizes são aqueles que não conseguem mudar. Eu mudei. Eu mudei sem querer e eu mudei por querer demais.
Parece maturidade, mas não passa de uma fuga frustrada de quem recusa-se a amanhecer. Quase lembra felicidade, mas é a vida espremendo-se no fundo do poço. Sorrisos amarelos dizem ser a minoria, mas de incrédulos na própria felicidade o mundo vaza. De tanto odiarem o drama, esqueceram-se de como chorar pela desgraça de morrer em vida. Olhos que secaram e bocas que reproduzem a morte que vem de dentro. Nada os deprimem, eles dizem. Tão lamentável é ser feliz somente por não ter motivos pelos quais chorar. Artista é quem sabe dançar a valsa no ritmo do próprio coração e não quem quebra as pernas para não se cansarem, por medo de pisaram-lhe o pé. Abismos resplandecem o vazio da alma de quem não acredita em amor. De tantos repousos em frustrações cactáceas, os corpos encheram-se de furos e por mais sentimentos que tentem transbordar, nada conseguem passar além da pena de si mesmo. Até parecem mais inteligentes, eu repito, até parecem mais sóbrios. Imagine a beleza de jamais deixar-se consumir por palpitações desprezíveis, já que somos carne e carne é feita para ser consumida. Beleza teórica, eu presumo. Pois se a carne não é consumida rápido, apodrece e atrai moscas. Moscas essas que colocam seus ovos moribundos e esperam até que a vítima se distraia. É certo que quem diz que não ama, deveria dizer que ama ao menos as larvas em seus corpos apodrecidos que cada vez mais atraem sujeira. Quem não acredita em amor, paixão, fervorosidade, já amou de menos, apaixonou-se demais e deixou que o fervor amornasse. Mas é o morno que escalda e derrete a sensibilidade. Ah, quão bobos são as pobres almas que acreditam em amores eternos. O que não sabem é que histórias de eternidade só merecem ser lidas por aqueles que desgrudam as páginas coladas pelo tempo. Bobos ou não, pobres almas jamais serão. Quem murcha na solidão despreza a correnteza das lágrimas, porque dizem saber da própria dor. Mas se não conhecem o amor, o que entendem por dor? O que sentem é o peso na consciência dos covardes que guerreiam de espada e armadura, e ainda assim perdem a batalha para os de armas nuas. E aquele passado que te aprisiona? Até parecia amor e eternidade, mas o que nasce para ser amor de passagem jamais chegará a ser amor de verdade. Amores não são línguas de sogra, amores nunca murcharão. Amores de esquina, amores que vem e vão, amores confundidos com paixão, amores que nunca são.
Plantei uma semente de vazio dentro de mim e colhi solidão. Na terra infértil do meu sentimento, nasceu uma flor negra, feia, sangrenta… Nasceu morta, sugando minha vida pouco a pouco. Eu a cuidava, podava, cantava hinos de tristeza para que ela crescesse mais rápido. O adubo era minha infelicidade, a água eram as lágrimas avermelhadas que caiam, sujas de sangue. E o vermelho da minha dor a tingiu. Contrastou com o azul do meu céu de esperanças, ela era a mais bela flor vermelha do meu jardim escasso. Ela virou amor. Inatingível, com pétalas que chamavam o bem-me-quer. Tão vistosa que atraiu beija-flores, borboletas e abelhinhas barulhentas ao meu recinto. Enciumei-me e vesti-me de egoísmo. Ela era minha, eu tinha esse direito: Prisão. Era meu amor. O amor que eu tanto cuidei, que reguei com as minhas sofridas lágrimas vermelhas… Não era justo que alguém viesse e o tirasse de mim e dos meus cuidados. Desapareceram os intrusos, e minha flor virou solidão novamente. O veneno da clausura descascou a camada de tinta e ela voltou a refletir o breu da noite sem luar. Ela enganara-me… Nunca foi amor. Amor não descasca, não se acaba, não abaixa ou aumenta como maré. Eu também jamais fui jardineiro. Fui prisioneiro e carcereiro da minha própria carência negada. Libertei minha solidão depois que o erro já estava feito. O amor já morrera, afinal. Minha flor negra estava diferente… Agressiva. Criara finalmente seus próprios espinhos. E esses pontiagudos malditos rasgaram minha alma, me deformaram. Eu já não tinha forças para lutar contra o monstro que criei e alimentei. Deitado no solo podre, agonizava e implorava por um golpe de misericórdia. Um espinho direto no coração. O golpe final… Ela não o fez. Deixara-me ali, preso à minha insignificância, sozinho como sempre fui. Arrumei a bravura dos covardes e a matei. Suscetivos golpes de tesoura faziam minha flor gritar em silêncio enquanto morria mais uma vez. Último suspiro… Ela não era mais planta, ela era desespero e sofrimento. Acabou-se, o final completara seu destino. Mas no lugar de seu corpo frágil, ela me deixou frutos. Um embrião para que a vida continuasse a brotar dentro da minha alma agourenta. Plantei uma semente de solidão dentro de mim e colhi o túmulo do que já foi amor.
Tua alma é minha, teus músculos repousam nos meus, teu sangue é uma taça de vinho convidativo e envelhecido em adegas rústicas dentro dos porões do meu corpo. Dos teus olhos escorrem as primeiras luzes da primavera, mas teu inverno adormecido é meu e teu peito infértil colhe espinhos que cheiram como rosas. Teu sorriso amortece minhas quedas internas, mas teus dentes enegrecidos pela fumaça cinza dos nossos beijos são meus. Os papéis gritam, as letras cantam, mas o teu medo de silêncios é meu. Assim admiro-te, como uma miragem em céu improvável, desmanchando-se em mentiras ao longe, mas a tua única verdade sou eu e dói como uma lâmina cortando caminho nos labirintos da minha pele. Doí, porque a verdade é que mentiste o tempo inteiro, porque o engano sou eu, como uma frase errada que não foi totalmente apagada e sente o peso do novo grafite nas costas. Admiro-te, embora eu sinta tua beleza desintegrando-se pouco a pouco em minhas próprias mãos. Admiro-te, como um peixe dentro d’água namora a Lua que dança todas as noite. Iludo-me com a poeira das estrelas, com a sombra das nuvens. Tua língua dissera-me adeus, mas teu coração é meu. Pensar em margens dilacera quando um oceano inteiro de egoísmos nos separa, quando um oceano inteiro de saudades não nos deixa partir. A opção é afogar-me, a opção é amarrar penhascos no sapato e esperar que o corpo flutue para, quem sabe, recomeçar distante dos corais. Teus cabelos desenrolam-se em cachoeiras, mas os teus córregos evaporados molham os cílios meus. Amar, talvez, não seja derramar o sangue de ontem. De repente, talvez amor seja morrer aos entardeceres sem motivo lúcido. Talvez seja esquecer do amor todas a noites somente para ter o prazer de lembrar dele todos os dias. Talvez, a mais bonita e sofrida prova de amor seja simplesmente amar.
Disseram-me que pássaros não cantam quando presos. É justo que eu cante, que eu faça gargarejo quando a melodia me invadir as cordas bambas. É certo que eu grito todos os dias, mas pássaro só sabe cantar. E quem ouve, pensa que me cativei com o cativeiro. Chega de metáforas banais, porque o português poético nunca fora meu camarada. O que quero dizer é que a fala melancólica transformou-se em rima decorada, em arte copiada. O que quero dizer é que sou pássaro nascido e criado em grito, em saudade dos ventos que uivam como lobos famintos pelas vidas penosas atrás das grades escondidas por tantos outros lugares. Não faz muito tempo, mas qualquer tempo para mim é muito. Na pressa de sorrir, engoli o Sol e derreti em meu ser a ânsia de amanhecer novamente. Virei argila vermelha… E sequei. Sequei com as marcas da gaiola em meu corpo, como cicatrizes de guerra horripilantes. Não orgulho-me de ser um sobrevivente, pois antes eu tivesse ameaçado cantar e fincar raízes no solo ousado de quem dá valor ao ar que não o envenena devagar. Quem dera eu ser mutilado, expelir a dor como a ostra parasita expulsa o grão de areia aperolado. De tão morto e sem utilidade, ficou bonito, valioso, vítima da ganância dos ouvidos mudos aos cantos gritados. Se ao menos me roubassem a dor… Mas argila não vale nada, grito não assusta o silêncio, o eco do coração morto que me compõe as mais belas notas musicais fugitivas da garganta oca. Roubaram-me os pés e trocaram-me por penas que não uso para ter pena de mim mesmo. Uso para murmurias e lamentações entediantes, como cinzas que renasceram das aves. Fênix ao contrário, é o que sou. Artista que não canta, poeta que não chora, voz que não cala. Disseram-me que pássaros não cantam quando presos. Por isso, é certo que grito. Grito em gaiola de papel, e só não canto porque disseram-me que eu não podia cantar.
Vendo e vindo de fora, as lágrimas na janela distante parecem marcas de chuvas passadas. Água por água, chorei lavandas e enxuguei pântanos maiores que oceanos inteiros. Tristeza por tristeza, encarnei espíritos de porta-retratos quebrados em troca do esquecimento da memória falida, sendo sofrimento antes mesmo de ser futuro. Derrota por derrota, apostei todos os sorrisos em uma única caneta falha que nunca sequer escreveu a primeira linha da minha felicidade. Incerteza por incerteza, troquei o duvidoso pela certeza do fracasso. Fracassei quando quis tirar o amor do forno sem fermento, fracassei em provar o sal em época de açúcar. Fracassei quando tentei guardar tua eternidade em conta-gotas, como quem tenta enfeitar o céu com estrelas do mar. Falido, humilhado, mordiscado pelas dores enferrujadas que me causam necrose no coração. O uísque no fim da noite pergunta-me a quem devo culpar pelas insistências em ser um ser só, único, um ser sozinho. Da arte poética, restou-me apenas o pó sem uma gota de ética. As maças do rosto amadureceram e apodreceram antes do tempo, perdendo todo o sabor adocicado das hortas virgens, olhos que deixaram de lado a vivacidade e o brilho para serem beleza estética em uma obra-prima de uma tela que nunca ganhará molduras baratas. Sinto que nada acabou, quando tudo o que acaba é por vezes uma poeira varrida para debaixo do tapete. Joguei fora todos os tapetes do quarto, exorcizando os cacos do homem sem seus próprios fios de barba que mente para o espelho todos os dias, aguentando os ouvidos sangrarem com as palavras que foram sujas com seu tom de voz imundo e herege. Digo que pago pra ver, mas os dedos atravessando o bolso alertam-me que me faltam moedas e algumas costuras a mais para aguentar novas caminhadas. Vendo e vindo de dentro, as chuvas passadas parecem lágrimas de olhos distantes.
Piscar os olhos doía. Perder um milésimo da tua inquietação na cadeira atrapalhava as palavras do meu diário nunca escrito. Li nos teus lábios o refrão da minha música preferida, enquanto você balançava a cabeça e tentava manter o pensamento longe. Queria que soubesse o quanto sua beleza aumenta excepcionalmente quando seus olhos não encontram onde pousar… Queria que soubesse de muita coisa, aliás. As últimas folhas do caderno sempre encontram um jeito de serem marcadas com o teu nome, que sem querer aprendi quando ouvi um qualquer sortudo te chamar. Minha loucura cria canções inteiras quando seus dedos batendo na mesa anunciam que está em profundo estado de tédio. Os gritos me apressam atrás da porta do meu banheiro desde quando comecei a pensar que os pingos d’água que caíam em minha cabeça faziam cenário para o nosso primeiro beijo na chuva. Eu queria que soubesse de tudo isso, só não queria que soubesse que eu existo. Ontem, a mesma ladainha. Eu finalmente ia falar com você. Hoje, a mesma lamentação. Sim, eu finalmente ia falar com você. Não fui. Amanhã, a mesma ilusão. Talvez você finalmente vá falar comigo. Quem sabe, não? Quem sabe você enxergue além das paredes, muros, colunas, mesas, cadeiras, distância, esquecimento e covardia que nos separa. Quem sabe você tenha tanto sentimento quanto eu, que tenho olhos que sorriem primeiro do que os lábios quando você passa por mim e deixa seu perfume na minha roupa antes que o ar roube-o de mim. Eu quero acreditar que você ouça mais do que os meus passos dados em ponta de pé, que ouça o futuro que nos chama e o destino que nos convida ante o comodismo de apaixonar-se por um ser estranho que conheço mais do que a palma da minha mão rabiscada de corações feitos com caneta esferográfica. E por que raios estou assumindo isso tudo pela primeira vez? Silêncio. Hoje você esbarrou em mim e pediu desculpas, sorrindo. Coçou a cabeça com o braço esquerdo, olhou para os meus sapatos e saiu. E eu só precisava de mais cinco minutos para fazer de você o amor da minha vida.
Flores de plástico são o mal dos verdadeiramente solitários. Quando as pálpebras começam a pesar é o medo que te impede de prestar atenção na própria ausência de si mesmo. Eu nunca aprendi a dizer adeus na minha vida, quem sabe eu tema sentir a despedida tocando friamente a minha mão e ensinando-me a engatinhar ao encontro do nada. Não tenho rugas para marcar-me como homem que fez história, não tenho barba para ser a teia das minhas memórias entrelaçadas, não tenho cicatrizes visíveis para virarem lendas de sangue derramado de fato. Eu tenho ingratos olhos novos que rodaram um mundo inteiro de lembranças e deixaram-me aqui, quase cego e miserável. Eu tenho a vida recém sofrida começando a sujar pés limpos, pois durante duas eternidades mortas eu andei de joelhos, humilhando-me diante de tanta mediocridade, futilidade, crimes dos quais fui vítima que seriam facilmente resolvidos caso eu tivesse a decência de um condenado que aceita as amarras com costas eretas. Cansei-me de joelhos ralados e lágrimas caindo sempre antes de atingirem a ponta do queixo. Eu tenho a boca que fez pouco da própria língua, jogando sentimentos verdadeiros no esgoto e matando a sede com outras bocas cujos líquidos pecados envenenariam qualquer pecador como eu. Boca minha que hoje sente o amargo da saudade e dos remédios que tentam me fazer adormecer por dentro. Eu vejo-me morrer, eu sinto-me morrer, a quem eu devo pedir perdão por não me importar? Amarro na cintura a corda que me levará até o início do labirinto e na mão tenho a tesoura afiada para quando chegar no túmulo entalado e sufocado com meu nome. Ela espera-me, eu não fugirei. Como poeta, ou em outras palavras, como escravo das palavras que morre todos os dias, eu não fugirei. A febre não baixa, as veias não desaparecem do meu rosto e as olheiras que contrastam com lindos olhos castanhos que herdei da minha única despedida faz meu coração latinar. Olho para o lado e ninguém segura a minha mão, pois eu recusei a estendê-la enquanto todos os nervos do meu corpo funcionavam. Braços que atrofiaram-se e não seguram sequer um copo d’água sem ameaçar derramar. Sinto-me inútil, inválido. Concluí que toda a companhia do mundo poderia ser adquirida através das palavras, mas escrevo e nada me vem esquentar a alma que se acalma quando deveria desesperar-se. Eu recuso-me a ser frio enquanto morro, mas que diabos eu domino além do interruptor do quarto? De um lado, vazio. Do outro, flores de plástico. Eu perdi o perfume da vida cheia de amores, e o cheiro da solidão me incomoda.
"Não é o texto mais triste, nem o mais alegre. Não será meu preferido, não estufarei o peito com minha assinatura embaixo, não será o mais comprido, nem o mais curto, não escolherei as melhores palavras, não terá poesia, tampouco rima, métrica e beleza. Não será engraçado. E começa com uma negação que mais parece um pedido de desculpas aos olhos que esperam algo que vá além de puro sufocamento. Sem lógica, as palavras saem assim. Embaçadas e sem gosto como comida de hospital. Talvez seja mesmo um pronto-socorro para o que sangra aqui dentro, e, se sal é veneno para os hipertensos, a lógica também envenena os hiper românticos. Pode ser apenas um exagero, um tanto faz, uma tempestade em copo d’água. Um acorde desafinado de uma canção encharcada pela saudade. A agulha risca o meu vinil e tudo o que saí são fragmentos de um perdão inverossímil. Pois eu não perdoo. Não perdoo e sinto ódio de você por teimar em insistir, mesmo porque eu e você nunca nos separamos. Sempre forçamos aquele ‘nós’ embasbacado, fajuto, emaranhado numa cama de gato, mais cá do que lá, trôpego, desgraçado. Aquele ‘nós’ que existia dia sim e dia não, prevalecendo uma dúvida que nos levava a simplesmente acreditar. Éramos tudo isso que chamamos de inspiração. Éramos. Éramos do verbo: Eu não existo mais na sua vida, por que você continua aqui? Jogue o marcador de livros fora, desamasse a ponta da página, esconda, rasgue, queime, faça o que quiser, mas não permita-se continuar. Deixe que os textos morram sufocados, afogados nas lágrimas das cinzas que o relógio soltar. A procura acabou, os sonhos fecharam as pálpebras pela primeira vez. É a tristeza que não deixa fechar as cortinas de um palco vazio, acompanhado pelas moscas no fim da platéia que aplaude a morte de sabe-se lá o quê. O mistério do amor será descoberto por alguém com mais sorte do que aquele ‘nós’ que sempre teve uma pitada a mais de você, porque eu só sirvo para escrever, não para amar. Abra as asas e voe por ‘entreosespaços’, ‘entreasbrechas’ que deixo sobrando na janela das minhas palavras. Eu coloco a borracha na tua mão, mas lembre-se que o carvão ainda ficará comigo. Porque sempre fomos assim: criatura e criador. O que quer que tu sejas, deixe que eu seja o monstro. Deixe que eu assuma a culpa, mas me perdoe. Nós nunca vamos ficar bem, você sabe disso. Choramos por nada. Nosso sofrimento é quase uma piada sem graça. Então, no último ato, nos créditos finais, na ponta dos dedos que escrevem uma palavra e apagam três, permita-me que eu me apresente pela primeira vez: Eu sou aquele que passou a acreditar em céu só para ter como te matar dentro do próprio coração e, ainda assim, saber onde te encontrar.
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