terça-feira, 7 de maio de 2013

No olho do furacão, não existe caos.

Queimar a língua com café é um dos poucos prazeres da vida que me deixa verdadeiramente inspirado. Talvez seja o café que me deixe inspirado, mas café frio não me dá nenhum choque término. Queimar a língua deixa meus caninos mais pontiagudos, menos sentimentais. Logo, mais humanos. Tudo fica absolutamente mais sensível, e dá vontade de sair lambendo a casa inteira, feito um cachorro vampiresco. Fico me perguntando se tudo realmente deve ter um gosto. Eu poderia comer a minha vida inteira, e ela não queimaria a minha língua. Ela não teria um gosto. Quase como comida de hospital. E eu fico aqui, alisando os caninos e me perguntando qual é a doença, então. Qual é o motivo da internação. Qual foi o acidente que deixou minha vida paraplégica, sem sal. Ou melhor, sem açúcar. Odeio café sem açúcar, porque o gosto amargo fica acentuado. E parece que nos tornamos plenamente conscientes de que café é mais um remédio necessário. Remédio pra verme, remédio pra não dormir, remédio pra ansiedade, remédio pra acordar, remédio pra parar de tomar remédio. Remédio até pra pessoas hipocondríacas. Tudo parece uma incrível receita médica. Mas a receita não inclui sentir prazer em queimar a língua. É geralmente isso o que eu faço. Encontro brechas na vida sem gosto, e ponho açúcar no meu constante diabete da existência. Talvez eu seja mesmo um erro da medicina, em fase de testes. Até que ponto ele consegue viver com essa vida sem gosto exposta no cérebro. Penso que o diagnóstico eu recebi quando falei de amor pela primeira vez, achando que era a última. Estava desenganado. É esse o problema. Estamos sempre desenganados. Bombardeados com propagandas de fim de ano que dizem que o tempo é efêmero demais. Bombardeados com cantoras de rock baianas que dizem que o amanhã pode nem chegar. Eu não deixei nada para a semana que vem. Nunca há tempo para ser feliz de novo. É sempre o último dia de nossas vidas. E se não fosse esse maldito cronômetro que sempre aponta para o 00:01, eu teria apreciado mais os meus caninos. Faz algum sentido? Queimar a língua é mais gostoso do que amar. E “queimar a língua” pode ser qualquer coisa que faça você sentir vontade de lamber a casa inteira. Ou que simplesmente te deixe inspirado para torcer a madrugada feito uma toalha molhada e escrever as besteiras que você precisar. Recusei o tratamento porque aqueles demônios de branco sempre me disseram para beber o meu café devagar. Tomar cuidado pra não queimar a língua. A dor que eu sentiria quando apertasse o botão do isqueiro na minha língua é inimaginável. Eu já queimei o meu dedo e aquela bolha demorou pra sair. Mas quando bebo meu café apressado, com medo de adormecer e gastar mais de um terço da vida no colchão, a carne apita. Vá com calma com suas drogas, rapaz. Se queimar o corpo dói, a língua também deveria doer. Os meus caninos deveriam continuar do mesmo tamanho. E o meu cachorro não teria a minha inveja por poder lamber tudo o que ele encontra pela frente. É como se a minha língua não fizesse parte do meu corpo, mas ela faz, mesmo quando eu penso que posso reduzir os minutos da vida enquanto bebo café quente. Eu me pergunto quantas coisas mais doem, mas doem tão pouco, que a gente acaba achando que é prazer. Respirar agora faz o meu pulmão sambar… Mas e se viver for uma dor também? Se o excesso de vida fizer o coração sangrar? Talvez se a morte fosse um pouquinho mais mortífera, ninguém morresse mais. Se acordar de manhã junto com os pássaros é bom, se os pássaros fossem ainda mais pássaros, eles não cantavam mais. A Terra deve ser um café com excesso de açúcar no copo. Quando chega num determinado limite, quando não há espaço para enganar o amargo da receita médica da vida sem gosto, o exagero nos impede de entrar em combustão não-espontânea. Porque morrer por ser feliz demais deve ser uma coisa monstruosa. É melhor que a gente morra achando que é feliz demais. No olho do furacão, não existe caos. E a devastação é do lado de fora, quando a língua queimada começa a sarar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário