terça-feira, 7 de maio de 2013

Hoje eu não vou falar de morte. Hoje eu não vou falar do adeus, da tristeza pueril. Hoje eu não vou falar do luto, das flores que enfeitam uma hipocrisia da saudade eterna, hoje eu não falarei sobre herança. Não há nenhum epitáfio no fim do arco-íris, não há indigência, tampouco cadáver, viúva e caixão. Hoje eu falarei sobre o purgatório de todos os pulmões e o inferno de poéticos corações: a própria vida. Sobre o amanhecer e o entardecer, sobre o colchão desarrumado e o despertador esganiçando. Falar sobre o que tem final é fácil, o difícil é falar do que não tem começo. Cientistas dizem que a vida começa ainda dentro do útero, com quele grão de arroz. Aquele miserável parasita que viria ser Hitler, Mozart, Cecília Meireles, Charlie Chaplin, Jack, o estripador, Osama Bin Laden e Barack Obama. Onde está a personalidade de um grão de arroz? Quem é heroi, se não nasceram ainda os seus inimigos? Quem é artista, se não houve tempo para ser lunático? Quem é poeta, se ninguém sabe escrever? A vida não é vida se não tem futuro, se não tem digital. Outros dizem que a vida só começa no primeiro choro. O que acontece após o banho de sangue? O início da morte. As pupilas que ainda não se abriram, os pés que nada valem, a fome, o medo, a vontade de voltar a ser nada, porque ser pedaço de pele desprotegida é mais temível do que a escuridão. O vento dói, a língua enrola, as luzes saltam. Queremos voltar. E nos proíbem. O primeiro choro é escravidão e o açoite vem de branco e estetoscópio pendurado no pescoço. Você não pode mais ser quem você é. Você não é mais um mísero grão de arroz. O mundo agora é seu, mas você não pode abandoná-lo quando quiser, porque já não seria vida. Se nascer é medo, quem não tem medo de morrer? O primeiro choro é também a primeira morte. Então a vida propriamente dita deve começar no início da formação da personalidade, onde criamos a primeira noção do que somos, do que temos, do que enfrentaremos. Extrovertidos, antipáticos, festeiros, caseiros, cruéis, sensíveis, calados e tagarelas. Todos juntos, numa armadilha onde a vontade de viver é um brinquedo caro. Mas a vida só começa a ser vivida quando deixamos a futilidade e cortamos as asas. Fomos nada, fomos grãos de arroz, agora somos crianças com medo de monstros. A vida não é vida sem sucesso, é sobrevida. O sucesso começa na escola. A química que matou milhares em campos de concentração, a gramática da norma culta que deixou as leis mais bonitas e menos legíveis, a história que inspirou guerras, a matemática que Einstein usou para a ajuda na construção da primeira bomba nuclear. Genialidade. Agora somos instruídos o suficiente para dominar o mundo, mas ainda somos incapazes de viver com as próprias pernas. Mas já somos mancos em direção da cura e as muletas são a vida adulta. O dinheiro, as festas, os amores, as fofocas, a sede de poder, a indiferença. É aí que a vida começa, então? Claro. A vida começa depois que a gente trabalhar, dormir, beber, ganhar dinheiro, poupar, gastar, comprar mais, jogar no lixo, drogar-se, engravidar ou engravidar alguém, ter filhos, acordar tarde, assistir televisão, trair, pagar multa, sofrer acidente de trânsito, esquecer da conta de luz, brigar com o marido, fazer greve, ir para o bar, resolver equações que você não lembra mais, pegar fiado na mercearia e depois, se sobrar tempo, envelhecer. O que sobra na velhice? O medo da solidão. Se amamos alguém, não há túmulo para dois. Se moramos com alguém, não há túmulo para dois. Se sonhamos com alguém, os sonhos morrem com a gente. A velhice é a segunda morte. Quando começa a vida, então? O grão de arroz ficou tão preocupado em ser banquete que esqueceu de viver. O grão de arroz precisa da vida após a morte, porque a vida não teve vida o bastante. A vontade de permanecer vivo continua sendo brinquedo caro demais. Não temos mais tempo para brinquedos, não temos mais dinheiro para gastar. E, então, a gente finalmente morre. Morre sem ter motivo, morre sem ter vivido. Fechar os olhos para sempre, perder a consciência. Voltamos para a escuridão, voltamos a ser nada. Em breve, diminuiremos de massa, em breve seremos grãos de arroz novamente, em breve não seremos nada, seremos apenas uma saudade. O choro, o sentimento, a emoção ficam do lado de fora. Acabou. O mundo não é mais problema nosso, porque a verdadeira morte é a primeira vida.

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