domingo, 12 de maio de 2013

Aspirinas.

Hoje tomei um vidro cheio. Um vidro todinho, repleto das famosas pílulas brancas. Misturei tudo com remédios pra gripe. Jurei que tudo não passava de uma forte dor de cabeça, decorrente desse maldito tempo de chuva. Jurei que era só uma fadiga muscular, e passaria logo. Coisa mais tosca essa de negar a morte.

O suicídio é mesmo assim? Se for, é patético. Fechar os olhos e imaginar que pronto, tudo bem. Foi só uma vida mal vivida, um desacompanhamento psíquico desastroso. Foi só um sonho ruim, vou acordar do lado de lá amanhã e tudo estará bem. O passado já bem passado. Minha carne estará bem passada, à parmegiana, com recheio de remédio. Um banquete para os devoradores de vermes alheios, aqueles carniceiros, aqueles... Que devoram a morte nossa de cada dia. Pessoas que encaram a vida como uma gripe, que encaram o batimento cardíaco como as palpitações das veias da testa. Um leve franzir de sobrancelhas. "Onde diabos eu enfiei o meu anador?"

E eu engoli todo o vidro do remédio em alguns minutos. O gosto amargo na boca era horrível. E eu imaginei que seria minha última tragada na filosofia da existência. Da existência que não valeu o choro, do mundo que não mereceu Lispector, Bukowiski, Lord Byron, Einstein. E quando a gente faz esse tipo de discurso tipicamente pré-adolescente ou pós-meia idade, percebemos que a droga invadiu mais do que o seu corpo, invadiu também a sua dignidade. Charlie Chaplin, o grande ídolo-merda que todo mundo passou a gostar depois que outro ídolo-merda se fez coexistir em fotos P&B, morreu fazendo a tristeza pra mim ser um vício. E o inferno é que não estou sendo dramático. O inferno mesmo é que não estou usando metáforas de alguém que tomou dois vidros cheios de veneno legalizado. Eu sou apaixonado por olhos tristes, ainda mais pelos olhos do grande boêmio Charlie Chaplin. E pra mim, a vida é um olho vermelho, inchado, sem colírio. Na ausência da terra onde os grandes gênios pisaram, meu último sinal de orgulho dizia que eu seria enterrado com ela. E eu não estaria vivo para ver a miséria e a decadência. Mas quem aqui falou em morte? Eu só tinha tomado minha dose de aspirina. Aquela que seria a última, certamente. A sensação de nunca mais ter dor de cabeça é maravilhosa, mas o "nunca" também assusta, e não é apenas uma sensação. Nas noites de dores de cabeça eu podia impregnar o cheiro do álcool no meu travesseiro. Eu podia fechar as luzes com a desculpa de não perturbar a visão, e mergulhar dentro da minha dor, sem que ninguém perturbasse o coitadinho com enxaqueca. Pode parecer um tipo de sadismo tipicamente imoral, mas minhas contrações na testa era mais do que uma simples dor, era a minha pele pedindo auto-carícias que minha alma só fornece involuntariamente, por meio de irritação, suor e vontade de dar um tiro no cérebro.

Mas só existia um fato. Eu acabara de tomar cerca de vinte e cinco comprimidos para dor de cabeça e gripe. Talvez remédios assim considerados tão amenos não derrubassem um homem feito eu, mas a pergunta era: Eu estava tentando me matar? Eu estava, verdadeiramente, de saco cheio? Eu realmente esperava acordar no dia seguinte sem dor de cabeça e sem pulso? Talvez fosse uma verdade que eu não conseguira engolir com água e ignorância. Era preciso algo mais. Algo mais forte que um traumatismo craniano para fazer entender que não era apenas a dor de cabeça ou o nariz escorrendo que me incomodava. Talvez as palpitações na testa não fossem tão insuportáveis quanto as batidas do coração.

Augusto Cury certamente diria que eu sou um homem excepcional pra bater as botas. Diria que eu faço algo de bom pra sociedade, afinal de contas, nunca fui preso, não me drogo, tenho uma família bacana e minhas ex-namoradas são loucas por mim, e eu por elas. Augusto Cury não diria, por exemplo, que a prisão está adormecida embaixo das minhas unhas, a droga eu comprei na farmácia, a família bacana só é bacana quando não pergunta como eu estou me sentindo e eu faço todo mundo sofrer com essa história de não desamar ninguém. Mas não, Augusto Cury não venderia tanto se perguntasse para a humanidade o motivo de serem toxicômanos por tristeza literária. Humanidade que precisa registrar com seus próprios olhos que são lindos e excepcionalmente incríveis para se trancarem no banheiro. Eles simplesmente dizem que a felicidade está nas coisas simples da vida, em coisas que não damos valor. E mais do que isso, em coisa que não têm valor. Mas eu fui lá e comprei minha dor. Não há quase nada que eu dê mais valor do que remédios para dor de cabeça, e tomara um vidro inteiro deles. Tudo demais é veneno, e a vida, quando sobra, não é diferente.

Tudo estava rodando na minha cabeça. Eu, particularmente, não acho que tenha sido efeito dos remédios. Talvez só o sono que me deu, no meio daquela euforia psicológica, mas não toda aquela náusea, aquela afobação, a sensação de estar com meu estômago em chamas. A terrível descoberta de que não colocaria ração pro meu cachorro no dia seguinte. Que minha avó chamaria meu nome, em vão, e teria que ser obrigada a abrir a porta do quarto e, logo depois de desmaiar, limpar todo o estrago que eu fizeram com a nossa pequena farmácia caseira. Seria um fim trágico para um princípio tão feliz. Um choro tão inocente. Vamos experimentar ser triste só pra ver no que dá. E é na tristeza que vemos as mazelas do mundo, o caos da sociedade em si, a pane que dá nos seus órgãos vitais, na tristeza ficamos vulneráveis às doenças sentimentais, aqueles tumores cerebrais que incham e ocupam o lugar da racionalidade verdadeiramente capaz de mudar o mundo em que vivemos. É triste. Tudo é triste, e traste.

Esse foi intervalo de tempo entre querer morrer e enfiar um dedo na garganta.

A vida é um vômito forçado.

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