A beleza existe em tudo - tanto no bem como no mal. Mas somente os artistas e os poetas sabem encontrá-la. - Charlie Chaplin
terça-feira, 7 de maio de 2013
Acordou, bocejou e esticou as costelas. Nada funciona nessa vida, ela disse. Nada funciona. Não abriu as janelas. Não arrumou a cama. Tomou banho no banheiro escuro, só depois acendeu a luz para se enxugar. Olhou-se no espelho por longos nove minutos. Ajeitou a franja com os dedos, e pôs a velha maquiagem de sempre. Pó extremamente branco e lápis extremamente preto, acentuando ainda mais aquelas olheiras horríveis de quem ficara a noite inteira chorando, chorando, chorando porque nada nunca funciona. Senhor, nunca dava certo. E queria que todo mundo visse que não dava certo, e que era culpa deles. Ela era um fruto do sistema podre. Era gorda, feia, magra, esquisita, caladona, alta, baixa, cabisbaixa, infeliz, atéia, crente, bipolar, agressiva, chata, bonita demais, vagabunda. Ela era tão você, não era? Foi para o colégio, não falou com ninguém. Todos uns idiotas. Sorrisos falsos. Felicidade forçada. Idiotas. E por que diabos nenhum idiota veio falar comigo ainda? Ninguém liga pra mim, ela pensava. É porque eu sou gorda, feia, magra, esquisita, caladona, alta, baixa, uma grande porcaria. É só por isso. Só por isso, só esse preconceito ridículo, só porque eu sou diferente. Sociedade hipócrita. Só porque eu assisto filmes épicos, jogo videogame, gosto de bonés, falo palavrão e uso camisetas duas vezes maiores do que eu. Só porque eu pinto meu cabelo de rosa choque. É por isso que eu gosto mais de bicho do que de gente, ela pensava. Viu essa citação num livro da Clarice Lispector que não entendeu nada. Livro idiota. Mas Clarice é legal, ela dizia. Gostava mais de bicho do que de gente, é… Menos das vacas. E das piranhas. Bichos desgraçados. Ela também gostava de dizer que não amava ninguém, mas espremia a camiseta da banda de rock que ela mal conhecia toda vez que via aquele garoto bonito, que ela até que gostava, mas não, não podia dizer. Todo mundo gostava dele então ela não gostava, porque ele era idiota. E também não gostava dos cachorros pulguentos que passavam por ela na calçada quando ia embora pra casa, sem falar com ninguém. E sabe o que ela detestava mais do que gente? Funkeiro. É, porque funkeiro não é gente. O gosto musical dela era o máximo. O máximo. Pregava a paz e xingava o governo por toda essa maldita desigualdade social, porque ela era diferente e gostava de John Lennon, Gandhi e Bob Marley. Mas funkeiro, por favor, merece levar um tiro na cara. Gentinha idiota. E voltava pra casa. Batia a porta com força, sabe-se lá o motivo. Dormia, comia, ia para o computador, anotava as frases e as letras de música que gostava num caderninho cheio de caveira, porque ela era diferente. Eu sou um lixo. A vida não presta. Nada funciona. Mas quer saber, que se dane-se. Porque ela tinha muita atitude. E fechava a tela do notebook, chorava, chorava, chorava, chorava porque nada funcionava. Ou porque não tinha nada melhor pra fazer. Ninguém ligava pra ela. Nenhuma mensagem. Nada. Só porque ela era gorda, feia, magra, esquisita, caladona, alta, baixa… Ela era a grande porcaria, dentro de um quarto escuro, mofando feito um cavalo velho, esperando um dia mais legal pra morrer, porque aquele… Já era. Ela podia ser legal, só não gostava de admitir. Gostava de ser diferente. Acordou, bocejou e esticou as costelas. Uma grande porcaria.
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