terça-feira, 7 de maio de 2013

Dedos mergulham na cicatriz flamejante da cesariana ainda recente no meu peito. Dedos apertam e rasgam os pontos já tingidos com um vermelho em tons escuros, lamaçal mal cheiroso que habita uma cova apertada repleta de veias, órgãos e nenhuma alma. Ele vem, filho das horas, herdeiro da dor, sem lágrimas e feito por si só de cálcio, pedra, areia e cimento. Ele vem, desmanchando-me em sangue puro, abrindo caminho em uma pele pré-cortada pelo vento. A anestesia são dois olhos que lembram jabuticabas recém colhidas, um cheiro de recomeço e primavera, uma corda amarrada no pescoço de algo tão frágil e inofensivo. E ele cria pernas, cria braços, cria fome e juízo. Alimenta-se das folhas rasgadas, da sopa de estrelas e mares, veio ao mundo por meio de lágrimas e por lágrimas permanece nele. Chora ao ver a cicatriz grotesca ainda pulsando por onde ele respirou a primeira vez. Engole giletes que rasgam a minha garganta, como matéria prima que sou. Cresce e retrocede. Vira feto e cicatriz novamente no primeiro medo que encontrar pela frente. É por fora que se faz o parto e emenda-se pedaços da minha carne. É marca de ferro e fogo, é marca de espada, luta e sofrimento sem vitória. Não tem alforria, não tem perdão e nem certidão de nascimento. Talvez um obituário que dirá, em letras garrafais, um nome que ele nunca aprendeu a chamar. Aprendeu sim, como primeiras palavras, a clamar por um mundo que não o queria, que não o precisava. Quasímodo sem cigana, cigana sem feitiço. Ele veio, depois das minhas vidas inteiras de espera, apressado. Empurrando-me o peito como britadeira, contorcendo-me não como lagarta, que vira borboleta e sai voando sem precisar de um hospedeiro, e sim como um verme parasita, uma sanguessuga que só suga o meu ar. Ele veio, filho do abandono, veio sem querer nascer, nasceu como todo mundo também nasce: contando os segundos para fechar os olhos pela última vez. Mas ele veio sem olhos e, portanto, sem hora para ir embora. Sem hora para me fazer estéril. Não existe vasectomia de amor, não existe aborto de poesia, não existe chá, remédio, droga ilícita, coquetel. Não existe manchete de jornal e nem protesto na rua. Dar a luz e padecer em trevas é o futuro de quem não escolhe morrer sem ter vivido. Nascer sem um útero não é tão dolorido quanto nascer sem coração; filho de vento não nasce. E dói o amor que não soube vir ao mundo e virou luz dentro de mim. Queimando. Rasgando. Renascendo.

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