terça-feira, 7 de maio de 2013

Deixando um lembrete na porta da geladeira: eu guardei a raiva pra comer no final. Estratégia do paladar nada refinado. Primeiro, as coisas que eu odeio. As coisas que possuem raízes. Amor é um parasita leguminoso no fundo do prato. Legume frio. Sujo da terra infértil, um cadáver regado com as lágrimas da próxima esperança de luto, renascido com o cheiro amargo da faca que o pica para ser a refeição mais nojenta e grotesca que a ponta da língua, acostumada com o doce de um céu da boca aberto, provará. As vitaminas, as malditas vitaminas que fazem o meu coração bater. As coisas que criam raízes são as piores. A energia que o meu fígado usa para recuperar as forças do última bebedeira. A coisa sem gosto e sem juízo que a gente devora rápido, engole e dá para o cachorro comer. A coisa verde como um arrependimento mal colhido que ensinaram que deveríamos comer. Nas cartilhas da escola, nos dias da semana, na porta da academia. Malhar o corpo é a penitência de quem não come aquela droga servida com copos d’água. Aquela obrigação que nos metem pela goela, aquela obrigação que o legista aponta como causa da morte de um crânio estourado. Ninguém morre por comer legume. Vegetarianos vivem mais, é o que dizem. Amorianos morrem mais cedo, é o que não sabem dizer. Amor não se ferve, porque perde a coisa boa - a coisa boa que mata os vermes da sanidade - , numa alusão à maldita hipótese abiogenista. Amor é essa força vital que recria a matéria inanimada, e faz o sangue ser rico em hemoglobina. A ausência da vida saudável faz o mundo padecer e as crianças criarem mais barriga. A vida saudável que não queremos ter. Eu sempre como as coisas que eu odeio primeiro. No fundo do prato sobra o incolor, o açúcar, a força vital dos olhos felizes e esbugalhados na frente da televisão. A fervura. As gorduras que entopem as minhas veias e fazem os exames cardíacos enfartarem. O medo da monotonia. A hiperatividade que faz meus dentes mastigarem amor com uma alegria inestimável. Depois dele, sempre haverá de ter uma recompensa. Sempre haverá de ter um céu da boca doce na ponta da língua com resquícios de sabor azedo. A raiva, o prazer, o ímpeto, a perdição, o vazio. A dor. Dor de barriga ou dor de cabeça por comer besteira demais. Alguém que come amor demais só arruma o prazer de padecer como um bom exemplo esquelético. Morto, assim com um diabético ou um hipocondríaco que nunca provou um beijo, uma cinema, um rosto, um sonho, um abraço, uma cama, um sentimento. Morto, morto do mesmo jeito, virando adubo da terra pobre que colocará mais um punhado de amor sem graça na mesa de um desavisado, recém-colhido. “Vem doutor, vem que tá fresquinho”. Morto, como todos os mortos um dia serão. Um bilhete na geladeira pra lembrar que eu guardei a raiva pra comer no final. Um lembrete amarelo, apagado e riscado diversas vezes, pra lembrar que eu sempre como o que eu odeio primeiro. Alguém pra lembrar que aquela raiva já foi amor. Alguém pra lembrar que eu não odeio nada sem a raiva que está dentro da geladeira, esperando que eu acabe de viver da maneira que eu mais detesto: sofrendo. Alguém pra lembrar que eu, esta noite, vou morrer de fome, de amor e tédio.

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