terça-feira, 7 de maio de 2013

Engraxate. Lustrando sapatos alheios que pisam nos meus calos. Sempre com uma graxa impecavelmente preta, tirada do fundo do poço, um petróleo raro e sem valor chamado escassez de orgulho. Queixo desabado, narinas que respiram o suor e as meias podres daqueles que viveram antes e viverão melhor depois de mim. Em troca de um trocado de consideração. Já fui engraxate por muitas vezes na vida. Também já tive meus dias de biólogo. Conhecer vários corpos, estudar vários ares, desvendar os mistérios daqueles outros humanos tão meio bichos que tão pouco a humanidade precisava. Uma arara extinção não era mais saborosa de fotografar com olhos saudosos do que um sorriso espontâneo, uma boa vontade, um abraço confortável, uma caridade que não fosse de pão velho e culpa. Estudar a vida dos outros dava pouco dinheiro. Virei político, presidente da República de mal amados. Belos discursos, novos recomeços, amanhãs ensaiados com pura maestria, terno e gravata de pompa e por dentro, um saco de mentiras que só não mal cheirava por causa das boas aparências e da pele intransponível que todos julgavam impecavelmente limpa. Mas só a cara era lavada. A mão assinava contratos fantasmas com a minha própria comunidade. Eu prometo ser sempre feliz. Eu prometo aprender a engolir fantasmas, porque com sal, pimenta, noz moscada e um pouco de boa vontade qualquer medo é tragável. Eu prometo procriar e envelhecer, virar adubo de terra e jamais me render a corrupção. Abandonei os smokings depois das primeiras descobertas de fraude, quando meu nome nunca acabou em nenhuma mídia por tentativa de mudar o mundo. Já tentei ser coisa de criança, quem sabe algum tipo de bombeiro ou policial, mas os meus herois morreram de overdose de matemática, física, química, enrolação. Salvar a vida de alguns miseráveis não me parecia atraente. Tudo seria mais lógico num mundo exato. Longe de promessas, animais e graxas. Longe da vida. Tudo seria mais metricamente perfeito num mundo de raízes quadradas. Vivendo num planeta anaeróbio, onde números e números completariam o espaço entre quatro dígitos de nascimento e os mais esperados dígitos da morte. Tudo é contável e virei o contador da minha própria história. Matemático. Contava as lágrimas na hora da insônia, cumpria meus exercícios intelectuais, jamais me distraí com essas bobagens de sofrimento. Fui feliz ao quadrado, até o dia em que resolvi que o mundo precisava de mim, precisava descobrir a chave da sabedoria numérica. Mas o mundo já tem número demais e um zero a esquerda é só um zero a esquerda. Decepcionado, quis ser professor. Ensinei a mim mesmo com quantas pizzas se faz um domingo de solidão, com quantos meses de gestação minha alma desgraçada entrou no corpo de um bebê que tudo tinha para ser promissor. Ensinei tudo a mim, mas ser aprendiz e mestre dá chance aos erros. Novos rumos, novos anos, novas profissões. Aprender a ignorar. Alcoólatra, bailarino, equilibrista, tudo ao mesmo tempo. Um artista circense dramático como um palhaço, metendo medo em olhares pequenos que ainda tem o mínimo de fé na vida. Um pintor capaz de reproduzir o som do silêncio, em mais profunda ausência de tinta. Um violinista encantador de serpentes cujo veneno eu aproveitava nas sopas diárias de melancolia e autopiedade. Dramaturgo, formado na Academia Brasileira de Artes Inúteis, salvando Julieta para ver morrer Romeu. Egoísmo pelo amor vindouro dos outros. Um contador de absurdos, um lunático, um sociólogo descrente, um mentiroso. Alguém sem experiência, contratado para bicos que não emendam uma torneira de casa. Ninguém se importa com um funcionário atrasado para a própria vida, porque há outros que querem a vaga de permanecer vivendo. Vivendo a minha vida. Mas eu não abro mão das humilhações, de ter que implorar por um crachá que diga que eu sou eu, que trabalho entalhando a minha cara, como um marceneiro de arte abstrata quase incompreensível. Ora brilhante, ora amontoado de carne, ossos e velharia. Eu não abro mão de bater de porta em porta, procurando resquícios de férias e décimo terceiro. Funcionário público de um coração privado. Engraxate, advogado, professor, matemático, filósofo, geólogo, decorador de ambientes, empresário, político, médico, enfermeiro, psicólogo. Cresci sendo. Mas o que eu quero ser quando cansar de crescer?

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